sexta-feira,29 março 2024
ColunaElite PenalO destino dos instrumentos do crime após a transação penal

O destino dos instrumentos do crime após a transação penal

Imaginemos alguém que teve seu aparelho de som apreendido por perturbação à tranquilidade. Essa pessoa responderá à contravenção penal específica prevista no artigo 42, inciso III da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei n.º 3.688/41), cujo processamento se dará sob o rito dos juizados especiais, dado o menor grau da pena cominada ao delito-anão.

Por serem as contravenções delitos que exigem a deflagração de ação penal pública incondicionada, nos termos do artigo 17 do Decreto-Lei n.º 3.688/41, o Ministério Público deverá[1] propor transação penal.

Aceita a proposta de transação penal e cumprida, o que deve ocorrer com o aparelho apreendido. Questão tormentosa tem permeado nos Tribunais, costumeiramente sustentada pela fronteira ministerial, no sentido de que os objetos apreendidos pelas circunstâncias do crime deveriam ser confiscados, indo assim a leilão.

Divergimos. E explicamos a razão.

O confisco previsto no artigo 91, inciso II, do Código Penal, só é aplicável nas hipóteses de condenação do réu, o que não se constitui o caso quando o acusado aceita a transação penal, primeiro porque não se pode sequer falar em réu, quiçá em condenação. Não havendo proposição da peça acusatória – a qual só terá seu momento caso rejeitada a proposta de transação penal – não estamos diante de réu (mas de autor do fato ou da infração, conforme termos utilizados de forma tecnicamente correta pela Lei n.º 9.099/95), uma vez que inexiste ação penal e triangularizada não está a relação processual. Segundo porque a homologação de transação penal não resulta de forma alguma numa condenação. Como leciona Cezar Roberto Bittencourt:

“A essência do ato em que o Ministério Público propõe a aplicação imediata de pena não privativa de liberdade, quando é aceita pelo autor e seu defensor, caracteriza uma conciliação, um acordo, uma “transação penal”, como o próprio texto constitucional (art. 98) sugere. E na tradição do direito brasileiro, sempre que as partes transigem, pondo fim à relação processual, a decisão judicial que legitima jurisdicionalmente essa convergência de vontades, tem caráter homologatório, jamais condenatório. Por isso, a nosso juízo, essa decisão é uma sentença declaratória constitutiva. Aliás, o próprio texto legal encarrega-se de excluir qualquer caráter condenatório, afastando a reincidência, a constituição de título executivo civil, de antecedentes criminais, etc.” (Juizados Especiais Criminais e Alternativas à Pena de Prisão, 3a ed., l997, p. 107).

 

Se não há condenação, não há confisco. A interpretação é gramaticalmente literal ao artigo 91, inciso II, do Código Penal, o qual dita que:

Art. 91 – São efeitos da condenação: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

II – a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

a) dos instrumentos do crime, desde que consistam em coisas cujo fabrico, alienação, uso, porte ou detenção constitua fato ilícito;

 

Se a lei redige o confisco como efeito da condenação, não cabe analogia desfavorável ao acusado, vedada que é na seara penal.

Também não cabe interpretação ampliativa, pois “onde a lei não restringiu, não cabe ao intérprete fazer”. A interpretação da lei penal deve ser sempre o menos criminalizante possível e isso inclui ser fiel à lei, sem realizar os usos elásticos de sua expansão. A interpretação “deve advir da lei, sendo, preferencialmente, fiel ao extremo dessa. Feliz é a expressão de Pontes de Miranda ao se referir a esse luminar como princípio da legaliteralidade, ensinando-nos o que é óbvio, mas por vezes olvidamos: a literalidade da lei ao sistema penal, nunca é exagero, mas afirmativa indispensável para manter a segurança jurídica e pessoal do cidadão frente às arbitrariedades do Estado como gozador exclusivo da prerrogativa legiferante penal” (BEZERRA; LIMA, 2014). Como já tivemos a oportunidade de concluir, “cabe ponderar na interpretação da lei penal, principalmente quando o resultado a se alcançar seja de viés a agravar o punitivismo, num entusiasmo exacerbado pelo rigor da sanção e pela restrição de direitos assegurados” (Op. Cit.). Nesse processo de ponderação, leciona o eminente Zaffaroni uma importante técnica no encontro com eventuais dúvidas interpretativas:

O princípio de interpretação restritiva também se expressa em uma segunda etapa que, sem dúvida, é puramente interpretativa: dentro do alcance semântico das palavras da lei pode haver um sentido mais amplo para a criminalização ou um mais limitado ou restrito. As dúvidas interpretativas dessa natureza devem ser dirimidas na forma mais limitada da criminalização (Direito Penal Brasileiro, 2003, p. 208-210).

Importante observação ainda faz Mirabete ao ir mais além ao se pronunciar no sentido de que a alínea “a”, do inciso II, do artigo 91 do CP fala em “instrumentos do crime”, nada esboçando acerca dos instrumentos de contravenção, como a do caso exemplificado.

(…) o confisco somente ocorre quando a infração pela qual o réu foi condenado (o que na espécie, como se viu, não acontece) constitui crime; a expressão contida no art. 91, inciso II, do Código Penal, deve ser interpretada restritivamente, não abrangendo a contravenção. (Código de Processo Penal Interpretado, 5a ed., Atlas, p. 205).

Por tudo isso, tratando-se os instrumentos de uma infração de menor potencial ofensivo objetos úteis ao desvendamento do crime, a ausência de condenação do autor do fato resulta na necessária devolução desses bens ao seu dono, visto que não haverá necessidade de persecução penal onde tais objetos sejam necessários como provas, tampouco condenação que legalmente justifique seu confisco.

A tese, verdade seja dita, não é nova. Vide ementas abaixo:

 

MANDADO DE SEGURANÇA. TERMO CIRCUNSTANCIADO. TRANSAÇÃO PENAL. ACEITAÇÃO E CUMPRIMENTO DA PROPOSTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PAGAMENTO DE PRESTAÇÃO PECUNIÁRIA. DETERMINAÇÃO JUDICIAL DE PERDA DOS BENS APREENDIDOS EM DESACORDO COM O QUANTO TRANSACIONADO. IMPOSSIBILIDADE. VIOLAÇÃO A DIREITO LÍQUIDO E CERTO DO IMPETRANTE. CONCESSÃO DA ORDEM.

– “Extinta a punibilidade do autor do fato por cumprimento de transação penal, descabe decretar-se o perdimento do bem, já que a apreensão tinha como objetivo permitir realização de eventual prova da contravenção penal imputada ao recorrente”. (…)

ORDEM CONCEDIDA.

(Classe: Mandado de Segurança, Número do Processo: 0024243-71.2015.8.05.0000, Relator(a): Mário Alberto Simões Hirs, Segunda Câmara Criminal, Publicado em: 30/01/2016 )

A perda dos instrumentos do crime é automática, decorrendo do trânsito em julgado da sentença condenatória. Não pode ser aplicada, pois, quando celebrada a transação penal homologada na forma da Lei n.º 9.099/955. O confisco previsto no art. 91, II, do CP é efeito automático da condenação, não prevendo a lei essa modalidade de perdimento de bens para os casos de arquivamento, absolvição ou extinção da punibilidade. (…)

(TRF da 4.ª Região, RT 750/746).

Havendo abuso pela persistência do intento estatal no confisco do bem apreendido, o manejo de mandado de segurança será indispensável para assegurar o direito líquido e certo ao bem apreendido, o qual deveria ter sido devolvido após o cumprimento da transação penal homologada.

 


REFERENCIAS

BEZERRA, C. J. M., LIMA, L. C. O DIREITO A QUEM É DE DIREITO: A (im)possibilidade de arbitramento de fiança aos crimes de violência doméstica e familiar pela autoridade policial. Artigo científico. Salvador: Ministério Público do Estado da Bahia, 2014.

BITTENCOURT, C. R. Juizados Especiais Criminais e Alternativas à Pena de Prisão, 3a ed., 1997.

GRINOVER, A. P. et al. Juizados Especiais Criminais: Comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. 3. ed. rev. e atual., 2. tir. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.

MIRABETE, J. F. Código de Processo Penal Interpretado, 5a ed., Atlas.

NUCCI, G. S. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

ZAFFARONI, E. R.; BATISTA, N; et al. Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, 3ª ed.

 

NOTAS:

[1] O dever da proposta é o entendimento da jurista Ada Grinover, do qual compartilhamos: “O dispositivo em exame afirma que o Ministério Público (e, por analogia, o querelante na queixa-crime das infrações penais de menor potencial ofensivo: v. n. 3 supra) “poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multa”. […] No entanto, permitir ao Ministério Público (ou ao acusador privado) que deixe de formular a proposta de transação penal, na hipótese de presença dos requisitos do § 2º do art. 76, poderia redundar em odiosa discriminação, a ferir o princípio da isonomia e a reaproximar a atuação do acusador que assim se pautasse ao princípio de oportunidade pura, que não foi acolhido pela lei. Pensamos, portanto, que o “poderá” em questão não indica mera faculdade, mas um poder-dever, a ser exercido pelo acusador em todas as hipóteses em que não se configurem as condições do § 2º do dispositivo”. (GRINOVER et al, 2000, p. 140). Há doutrina, minoritária, porém, no sentido contrário. Por todos esses vencidos, citamos Nucci: “Em nosso entendimento, vigendo, ainda, no Brasil, o critério da obrigatoriedade da ação penal pública, apenas mitigado pela possibilidade de oferta de transação penal, não se pode obrigar o Ministério Público a fazer a proposta. Aliás, como não se pode obrigar a instituição a propor ação penal”. (NUCCI, 2008, p. 760)

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