quinta-feira,18 abril 2024
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O desrespeito ao artigo 212 do CPP gera a nulidade da audiência de instrução e julgamento?

O título do presente artigo também poderia ser o “Artigo 212 do CPP, de Nucci a Aury e o entendimento da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal”, pois é esse embate doutrinário e jurisprudencial que será apresentado neste arrazoado:

“Forma é garantia e limite de poder”, sempre destaco essa frase do Advogado Aury Lopes Jr., pois considero que um preceito imprescindível para compreender o Processo Penal é ter o conhecimento de que a norma e as formas processuais possuem uma razão histórica para a sua existência. Sempre com o fim de limitar o poder de punir, bem como diminuir o arbítrio do julgador e proteger as garantias do acusado.

Sobretudo para afastar um passado sombrio do Direito Penal, marcado pela tortura e pela imparcialidade, que não se cansa de tentar retornar à realidade jurídica do Brasil. De modo que o disposto em nossa legislação não representa um mero formalismo e deve ser aplicado e respeitado com afinco, sob pena de obstruir o nosso Estado Democrático e a autonomia do Direito “compreendida como a sua dimensão de subsistência autônoma em face à política, à economia e à moral”. [1]

A “forma” processual penal garante que todos terão tratamento igualitário, que serão tratados como inocentes até o trânsito em julgado da sentença condenatório, que terão direito de se defender, mediante ampla defesa e contraditório, que serão acusados por um Ministério Público isento (ver aqui), julgados por um juiz imparcial, dentre outras garantias igualmente imprescindíveis.

Num todo, a presente coluna é formada por arrazoados em que sua síntese busca a cumprimento das garantias do processo penal, dos direitos e deveres dos operadores do direito. Tal como a análise da imparcialidade do magistrado (ver aqui), sobre a importância do sistema acusatório (ver aqui) e (aqui).

Além disto, é importante salientar sobre a interpretação dos artigos do CPP que são, reiteradamente, aviltados pelos tribunais do país. Já tratei sobre o artigo 311 do CPP, ao versar sobre a impossibilidade de conversão, de ofício, da prisão em flagrante em prisão preventiva (ver aqui). Sobre o artigo 316, parágrafo único, também do CPP, ao tratar sobre a acertada decisão do Ministro Marco Aurélio do STF, no caso do paciente “André do Rap” (ver aqui). Sobre o artigo 283 do CPP, ao abordar sobre a prisão após condenação no tribunal do júri (ver aqui).

Diante dessas analises da legislação processual, chegamos ao artigo 212 do nosso código de Processo Penal, o qual possui a seguinte redação, apresentada pela lei 11.690/2008, “As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.”

O referido dispositivo “retira do juiz o papel de protagonista da instrução” [2], trazendo às partes, acusação e defesa, o direito de formular as perguntas às testemunhas, produzindo a prova testemunhal que instruirá o processo. Cabendo ao magistrado a função fiscalizadora, mantendo a legalidade e a ordem na audiência de instrução.

Somente sobre os pontos não esclarecidos nas perguntas realizadas pelas partes é que o magistrado poderá complementar a inquirição; conforme dispõe o parágrafo único do referido dispositivo, o que vai na oposição do antigo artigo 212, antes da alteração legislativa de 2008, que destacava que “As perguntas das partes serão requeridas ao juiz, que as formulará à testemunha. O juiz não poderá recusar as perguntas da parte, salvo se não tiverem relação com o processo ou importarem repetição de outra já respondida.”

Nesse diapasão, Aury Lopes Jr. afirma que o juiz apresenta uma “função completiva”, de maneira que o artigo 212 do CPP vem exatamente para se adequar a Constituição Federal, dispondo de um processo penal acusatório. Visto que com a antiga redação, o juiz era quem produzia, inicialmente e principalmente, a prova testemunhal com suas perguntas direcionadas a testemunha.

Nesse diapasão o juiz poderia se contaminar, se tornando parcial, na medida em que o direcionamento de suas perguntas poderia ser mais favorável a uma das teses, defensiva ou acusatória, o que representava um entrave a qualidade da decisão judicial, conforme destaca Aury:

“A luta pela qualidade da decisão judicial passa pela melhor prova possível. Nesse terreno, a estrita observância do acusatório, com claro afastamento das funções de acusar e julgar, mas, principalmente, pela imposição de que a iniciativa probatória seja das partes e não do juiz (recusa ao ativismo judicial), bem como pela maximização do contraditório, são fundamentais.” [3]

De modo diverso entende Guilherme de Souza Nucci, em sua doutrina, no que tange a atuação do magistrado frente ao artigo 212 do Código de Processo Penal, ao destacar que o magistrado continua a abrir o depoimento e formulando perguntas, conforme abaixo destacado:

“O juiz, como presidente da instrução e destinatário da prova, continua a abrir o depoimento, formulando, como sempre fez, as suas perguntas às testemunhas de acusação, de defesa ou do juízo. Somente após esgotar o seu esclarecimento, passa a palavra às partes para que, diretamente, reperguntem. Primeiramente, a acusação repergunta às suas testemunhas, para, na sequência fazer o mesmo a defesa. Em segunda fase, a defesa repergunta diretamente às suas testemunhas para, depois, fazer o mesmo a acusação.” [4]

Logo, para Nucci, o magistrado mantém a sua atuação do mesmo modo como era realizada durante a vigência do antigo artigo 212 que permitia a inquirição direta pelo magistrado, visto que destacou que o juiz “continua a abrir o depoimento, formulando, como sempre fez, as suas perguntas às testemunhas de acusação”.

Logo estamos diante de dois entendimentos diversos de duas das mais renomadas doutrinas do ramo do Direito Processual Penal. De um lado Aury Lopes Jr., que destaca que com a nova redação do 212, o magistrado abre a audiência, compromissa a testemunha, e a passa para a que a parte que a arrolou possa realizar as perguntas, de modo que o juiz somente atuará mediante “função completiva” e não de protagonismo.

E do outro lado Guilherme de Souza Nucci, que salienta que o magistrado não pode ser o último a perguntar e que as partes não possuem domínio sobre a instrução, nesse sentido sua doutrina destaca que:

“Olvida-se, afinal, poder o magistrado produzir tantas provas quantas ele desejar, de ofício, sem que nenhuma das partes manifeste interesse. Olvida-se que, no cenário das testemunhas, o juiz do feito pode arrolar quem bem quiser, sem prestar contas às partes. Enfim, o julgador, mesmo após a reforma de 2008, continua o presidente da instrução, não sendo cabível que se diga ser o último a perguntar. As partes não passam a ter o domínio da instrução ou da audiência; apenas reperguntam, isto é, dirigem indagações às testemunhas, quando não houver pergunta formulada pelo magistrado.” [5]

Entendimentos antagônicos que influenciam nos julgamentos dos tribunais pelo país. E que certamente produzem decisões igualmente antagônicas sobre a nulidade da audiência de instrução processual que desrespeita o artigo 212 do CPP, visto que não haveria um norte sobre a devida atuação do magistrado, sua função seria completiva ou continuaria sendo principal?

Enfim, essa discussão chegou ao Supremo Tribunal Federal, mediante o julgamento do habeas corpus de nº 187.035 analisado pela Primeira Turma do STF. Onde fora reconhecida a nulidade do processo-crime a partir da audiência de instrução, determinando a necessária renovação do ato, seguindo o entendimento do Relator Ministro Marco Aurélio.

No dito habeas corpus, o Ministro Alexandre de Morais destacou e reiterou o entendimento apresentado pelo Guilherme de Souza Nucci, protestando pela denegação do HC, entendimento que fora acompanhado pelo Ministro Luís Roberto Barroso.

Já a Ministra Rosa Weber seguiu o entendimento de que o artigo 212 do CPP, impõe ao magistrado uma atuação subsidiária, suplementar ou acessória, ao devido cumprimento do devido processo legal, sem substituir a atividade das partes, acusação e defesa:

“A atividade instrutória do juiz, legítima e autorizada pela legislação em vigor – buscando conferir equilíbrio àquelas posições extremadas já explicitadas –, está vinculada à omissão das partes na produção probatória, ou seja, longe de agir como mero árbitro e/ou espectador do duelo judicial das partes, o magistrado pode, de forma subsidiária, suplementar, acessória, sem substituir a atividade das partes, para elucidação do thema probandum, determinar a produção de provas. Inadmissível, todavia, a atribuição de poderes investigatórios, o que transformaria o juiz em verdadeiro inquisidor.”

Afirmando também que a “atribuição de poderes amplos e ilimitados ao juiz para produção probatória compromete, inequivocamente, a imparcialidade, conditio sine qua non da jurisdição”. Logo o respeito ao disposto no artigo 212 do CPP é condição para a manutenção da imparcialidade do magistrado. E nesse sentido acatou o voto do Relator Ministro Marco Aurélio para conceder a ordem de habeas corpus, nesse mesmo entendimento seguiu o Ministro presidente da primeira turma, Dias Toffoli.

Desta maneira a primeira turma do STF formou maioria para conceder o habeas corpus, reconhecendo a nulidade do processo-crime a partir da audiência de instrução, determinando a necessária renovação do ato, diante do desrespeito do artigo 212 do CPP pelo magistrado que dirigiu a audiência anulada.

Por conseguinte, transparece que a Primeira turma do STF se adequou mais ao entendimento do Aury Lopes Jr., enquanto os ministros vencidos, Alexandre de Morais e Luís Roberto Barroso, estão mais alinhados com a doutrina do Guilherme de Souza Nucci.

A presente temática ainda não está pacificada, é provável que esse tema volte a aparecer inclusive em julgamento no Plenário do Supremo Tribunal Federal. No entanto, julgo acertado o entendimento exarado pela primeira turma do STF, sob relatoria do Ministro Marco Aurélio; pois compreendo que ao Processo Penal, em um Estado Democrático de Direito como o Brasil, é imprescindível a limitação do agir de ofício do magistrado, deixando o ônus probante para as partes do processo, mantendo uma atuação voltada somente à fiscalização do Devido Processo Legal.

“post scriptum”: Aproveito esta oportunidade para prestar minhas homenagens ao Ministro Marco Aurélio que atuou com excelência em sua função como ministro do Supremo Tribunal Federal, com sua atuação em respeito às garantias do devido Processo Penal e em defesa da Constituição durante 31 anos de história junto a Suprema Corte e se aposentará no dia 12 de julho de 2021.


Referências Bibliográficas

[1] Dicionário de Hermenêutica, Lenio Luiz Streck, página 25, ano 2020.

[2] Direito Processual Penal, Aury Lopes Jr., página 517, 17ª edição, 2020, editora Saraiva Jur.

[3] Op. Cit.  Aury Lopes Jr., página 458.

[4] Curso de Direito Processual Penal, Guilherme de Souza Nucci, página 810, 17ª edição, 2020, Editora Gen.

[5] Op. Cit. Guilherme de Souza Nucci, página 812.

[6] HABEAS CORPUS 187.035 SÃO PAULO, Brasília, 6 de abril de 2021, PRIMEIRA TURMA do STF.

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