quinta-feira,28 março 2024
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Liberdade religiosa no ambiente corporativo

No Estado de Bem-estar social, este assegurado pelo constituinte quando da promulgação da Constituição, há firmado expressamente o compromisso do ente estatal em garantir a proteção à dignidade da pessoa humana, buscando tutelar os direitos fundamentais, sejam eles individuais, sejam eles sociais. A essência de proteção é a mesma, contudo, apesar de conectados entre si e darem a sensação de serem semelhantes, é necessário diferenciá-los.

Os direitos individuais como o próprio nome sugere, são aqueles inerentes ao indivíduo, ligado ao conceito da pessoa humana e sua personalidade. É o direito à vida, à liberdade, à intimidade, etc.

Já os direitos sociais, são os que buscam melhorar as condições de uma coletividade, sendo o Estado o ente responsável por salvaguardar esse direito, tais como direitos trabalhistas, o direito à saúde, à previdência social, etc. Segundo a magistrada Oriana Piske de Azevedo Magalhães Pinto, é

“o conjunto das pretensões ou exigências das quais derivam expectativas legítimas que os cidadãos têm, não como indivíduos isolados, uns independentes dos outros, mas como indivíduos sociais que vivem, e não podem deixar de viver, em sociedade com outros indivíduos” [1].

A Constituição Federal eleva a liberdade religiosa ao patamar de direitos fundamentais, o que significa dizer que, assim como o direito à saúde, à dignidade, à alimentação, ao trabalho, a promoção da defesa da crença religiosa deve ser vista, de fato, como sendo um direito fundamental, passando a ser dever do Estado promovê-lo, respaldado nos princípios da pessoa dignidade humana e da laicidade estatal.

É o que se depreende do art. 5º, inc. VI da Carta Magna, que, sendo um direito imprescritível e inalienável, confere a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país a “liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”

e do art. 7º CF/88, que confere aos trabalhadores urbanos e rurais, direitos que visem a melhoria de sua condição social, tais como, o valor social do trabalho, a livre iniciativa, a construção de uma sociedade livre, justa e igualitária e a prevalência dos direitos humanos [2].

O direito ao trabalho como direito fundamental é importante ao desenvolvimento do indivíduo, posto que assegura a dignidade cabível a cada ser humano, seja individualmente, seja na convivência em sociedade, sendo também dever do Estado, leia-se em sentido latu sensu como sociedade, ofertar mecanismos que assegurem e concretizem o cumprimento desses direitos e, por conseguinte, das imposições constitucionais.

Dessa maneira, o empregador é responsável por seus funcionários no exercício de suas funções, de modo que qualquer conduta que afete a integridade de qualquer dos seus trabalhadores no ambiente de trabalho é de responsabilidade da empresa. É o chamado direito à incolumidade dentro das relações do trabalho, isto é, é dever do empregador promover a proteção integral dos empregados, sob pena de violação da dignidade da pessoa humana e, nesse universo, está englobada a proteção e o respeito a religião.

Já a legislação infraconstitucional, esta recepcionada pela Constituição Federal, atribui ao empregador o dever de zelar pela higidez física e mental do trabalhador, atribuindo-lhe inúmeros “deveres de cuidado”, os quais chamados também de obrigações acessórias ao contrato de trabalho.

A CLT estabelece alguns exemplos desses deveres, tais como, cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho, instruir os empregados no sentido de evitar acidentes ou doenças ocupacionais, adotar medidas de segurança e higiene no ambiente de trabalho, promover e facilitar a fiscalização pelo órgão competente, conferir aos trabalhadores ambiente de trabalho saudável, adotar medidas de promoção a liberdade, igualdade e respeito as diferenças, buscando diminuir ou mesmo neutralizar a ação de agentes insalubres e perigosos e qualquer prática discriminatória, seja em razão da raça, cor, orientação sexual ou religiosa do trabalhador.

Imagino que qualquer cidadão brasileiro, em algum momento da vida, já ouviu falar que o Brasil é um Estado laico, mesmo que não saiba o exato significado da palavra. Basicamente, entende-se como Estado laico aquele em que o poder estatal não adota uma religião oficial para o país e não interfere na crença religiosa dos indivíduos, que são livres para escolher e adotar uma religião ou mesmo se declarar ateu (não acredita em Deus/Deuses) ou sem religião específica.

O direito à liberdade religiosa como direito fundamental é importante ao desenvolvimento do indivíduo, posto que assegura a dignidade cabível a cada ser humano, seja individualmente, seja na convivência em sociedade, sendo dever do Estado – e em sentido estrito, do empregador – ofertar mecanismos que assegurem e concretizem o cumprimento desses direitos e, por conseguinte, das imposições constitucionais.

A desigualdade com sua força e repercussão devastadora afeta a sociedade em larga escala o que acaba por afetar também o ambiente coorporativo e, embora o Brasil seja um Estado Laico, é muito comum empresas avaliarem os indivíduos, sobretudo no momento da contratação, e a orientação religiosa dos mesmos, questionando a sua fé e crença, o que leva grande parte de empregadores a esconder para chefes e colegas de trabalho a sua religião, seja ela católica, evangélica, espírita ou de matriz africana, dentre outras.

A Organização Internacional do Trabalho através da Convenção nº 111, ratificada pelo Brasil, aduz em seu primeiro artigo o conceito de discriminação no ambiente de trabalho, esclarecendo ser

“toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão” [3].

A Convenção ainda traz como ilícita qualquer tipo de discriminação, independente da vontade do agente em discriminar, se o fez direta ou indiretamente, de forma culposa ou não, tendo como objetivo primordial o de abolir todos os tipos de discriminações no cenário laboral, resguardando os direitos sociais quanto ao tipo de condições no qual se encontram os trabalhadores e prestando a eles um tratamento digno.

Em um mundo heterogêneo como o atual e em um país de dimensões continentais, colonizado por povos de diversas culturas e crenças como o Brasil, não se pode admitir qualquer diferença de tratamento em razão da religião de qualquer indivíduo, em qualquer local de convivência e, principalmente, no ambiente coorporativo que, por si só, traz consigo diversos outros problemas que podem ter relação direta com a saúde – física e mental – do empregado, servindo o preconceito religioso como um plus a possíveis adoecimentos.

Importante lembrar que os direitos previstos na Carta Magna são resultados de uma demanda social e democrática, expressos através de movimentos sociais em busca de uma sociedade justa, livre e solidária e de proteção aos direitos fundamentais nela elencados, assim é fácil concluir que

“a liberdade de religião, crença ou culto, é livre, dessa forma o direito individual de liberdade de pensamento deriva da chamada escusa de consciência assim podendo o indivíduo ter a liberdade para determinar as imposições a determinadas atividades no qual entra em atrito com suas ideologias religiosas tendo sua vedação somente quando a sua invocação pelo individuo é de omissão, pois quando se faz presente uma obrigação legalmente imposta a todos, ou seja, naqueles casos de serviço militar obrigatório, mas nesses casos a lei traz que o recusante de prestar serviço militar será imposto prestação de maneira alternativa, desta forma, o recusante cumpre conforme traz o (artigo 143, § 2º da CF), nesse caso o indivíduo fica obrigado a cumprir com a lei” [4].

Ora, a essência da Constituição Federal é a valorização do indivíduo em todas as suas dimensões, estando presentes o trabalho e o emprego e a garantia ao não retrocesso social, consubstanciando o direito do cidadão frente a ações contrárias às garantias sociais já estipuladas, devendo servir de instrumento para combater a intolerância com as religiões, seja qual for ela, e a discriminação de seus seguidores e líderes.

Gilmar Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco se manifestaram acerca da importância de respeitar a liberdade de religião trazendo argumentos brilhantes e necessários sobre o tema:

“O reconhecimento da liberdade religiosa pela Constituição denota haver o sistema jurídico tomado a religiosidade como um bem em si mesmo, como um valor a ser preservado e fomentado. Afinal, as normas jusfundamentais apontam para valores tidos como capitais para a coletividade, que devem não somente ser conservados e protegidos, como também ser promovidos e estimulados.

A Constituição protege a liberdade de religião para facilitar que as pessoas possam viver a sua fé. Daí a Constituição chegar a prever a assistência religiosa para os que estejam submetidos a internação coletiva (art. 5º, VII). O reconhecimento da liberdade religiosa decerto que contribui para prevenir tensões sociais, na medida em que, por ela, o pluralismo se instala e se neutralizam rancores e desavenças decorrentes do veto oficial a crenças quaisquer. O reconhecimento da liberdade religiosa também tem por si o argumento de que tantas vezes a formação moral contribui para moldar o bom cidadão. Essas razões, contudo, não são suficientes em si para explicar a razão de ser da liberdade de crença. A Constituição assegura a liberdade dos crentes, porque toma a religião como um bem valioso por si mesmo, e quer resguardar os que buscam a Deus de obstáculos para que pratiquem os seus deveres religiosos” [5].

O direito subjetivo do cidadão à saúde implica na obrigação do Estado (União, estados, Distrito Federal e municípios) de fornecer-lhe todas as ações e serviços indispensáveis à concretização desse direito, sendo legítima a imposição de normas legais e medidas efetivas para garantir a liberdade religiosa e a crença de todos os fiéis.

Os direitos previstos na Carta Magna são resultados de uma demanda social e democrática, expressos através de movimentos sociais em busca de uma sociedade justa, livre e solidária e de proteção aos direitos fundamentais nela elencados, que não permite, mesmo nos casos de decretação de Estado de Calamidade Pública, que qualquer legislação infraconstitucional mitigue direitos fundamentais.

 


REFERÊNCIAS:

[1] PINTO, Oriana Piske de Azevedo Magalhães. Direitos Individuais, Coletivos e Sociais? Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/artigos-discursos-e-entrevistas/artigos/2008/direitos-individuais-coletivos-e-sociais-juiza-oriana-piske-de-azevedo-magalhaes-pinto. Acesso em: 07/08/2020.

[2] Constituição Federal de 1988, art. 5º, inc. VI. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 05/04/2021.

[3] Convenção nº 111 da OIT. Disponível em: https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235325/lang–pt/index.htm. Acesso em 13/07/2021.

[4] Disponível em: http://www.anima-opet.com.br/pdf/anima8/8-Discriminacao-Religiosa-no-Ambiente-de-Trabalho.pdf. Acesso em 13/07/2021.

[5] MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet apud Ana Maria Espi Cavalcanti. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Ed. Saraiva. 2008, págs. 419/420.

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