sexta-feira,29 março 2024
ColunaElite PenalLatrocínio contra casal: concurso formal ou crime único?

Latrocínio contra casal: concurso formal ou crime único?

Latrocínio contra casal: concurso formal ou crime único?
O crime de latrocínio é complexo, pois em sua figura típica abrange dois bens jurídicos: patrimônio e vida. O objetivo principal do agente é subtrair bens da vítima e o resultado morte, apenas consequência dessa conduta. Segundo o legislador, trata-se de crime contra o patrimônio, por este motivo, optou por inserir o delito no título dos crimes contra o patrimônio.
O latrocínio está tipificado na segunda parte do artigo. 157, § 3º, do CP, que cuida deste bem jurídico:

 

“§ 3º – Se da violência resulta lesão corporal grave, a pena é de reclusão, de sete a quinze anos, além da multa; se resulta morte, a reclusão é de vinte a trinta anos, sem prejuízo da multa.” (Grifo nosso)

 

Na doutrina, Cezar Roberto Bitencourt, in Tratado de Direito Penal, Parte Especial 3, Editora Saraiva, 8ª edição, pág. 126, tece as seguintes considerações sobre o tema:

 

“Apesar de o latrocínio ser um crime complexo, mantém sua unidade estrutural inalterada, mesmo com a ocorrência da morte de mais de uma das vítimas. A pluralidade de vítimas não configura continuidade delitiva e tampouco qualquer outra forma de concurso de crimes, havendo, na verdade, um único latrocínio. (…) A ocorrência de mais de uma morte não significa a produção de mais de um resultado, que, em tese, poderia configurar o concurso formal de crimes. Na verdade, a eventual quantidade de mortes produzidas em um único roubo representa a maior ou menor gravidade das consequências, cuja valoração tem sede na dosimetria da pena, por meio das operadoras do art. 59 do Código Penal.”

 

Em suma, havendo pluralidade de vítimas lesionadas pela conduta do agente, não há de se falar em concurso de crimes, a não ser que a ação tenha se dirigido contra a esfera patrimonial de mais de uma vítima.

 

Latrocínio contra casal

E quando o latrocínio é cometido contra casal? Estaríamos diante de dois crimes, em concurso formal, ou de um único crime de latrocínio?

Vamos analisar o entendimento jurisprudencial.

 

 

Entendimento do STJ:

 

Em um caso concreto, o agente invadiu a residência de um casal, subtraiu diversos bens mediante violência e grave ameaça, e que resultou na morte de um dos cônjuges, sendo que o outro ficou gravemente ferido.
Posteriormente, o agente foi condenado, em primeiro grau, à pena de 24 anos, 1 mês e 10 dias de reclusão, em regime inicial fechado e ao pagamento de 15 dias-multa, pela prática de latrocínio consumado (art. 157, § 3º, última parte, do CP), em concurso formal (com pena aumentada em 1/6 por força do art. 70 do CP) com latrocínio tentado (art. 157, § 3º, última parte, c/c art. 14, II, do CP).

Em sede superior, o TJ/RS manteve a condenação, pois entendeu tratar-se de dois delitos distintos cometidos por meio de uma só ação, tendo aplicado a regra do concurso formal de crimes, prevista no artigo 70 do Código Penal.

A defesa impetrou habeas corpus no STJ com o objetivo de reconhecimento de crime único, com a consequente exclusão do aumento de 1/6 referente ao concurso formal de crimes, tendo sido denegada a ordem pela Quinta Turma do STJ.

A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 03/05/2011, no julgamento do HC n.º 122.061/RS, entendeu que houve o cometimento de dois delitos de latrocínio – um consumado e outro tentado – perpetrados contra vítimas diversas, mediante uma só ação (desdobrada em diversos atos), e constatando-se que houve a subtração de mais de um patrimônio, resta caracterizado o concurso formal de crimes, e não crime único, ainda que as vítimas fossem marido e mulher. (Ver Informativo nº 471 do STJ)

Para o STJ, o fato de serem as vítimas casadas civilmente não leva obrigatoriamente à conclusão de que os bens deles subtraídos num mesmo contexto fático necessariamente constituíam um patrimônio comum indivisível, pois, mesmo no regime de comunhão universal – em que há a comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges (art. 1.667 do CC) – há os que por lei são considerados patrimônio exclusivo do cônjuge que o recebeu, os denominados bens personalíssimos.

 

STJ, 5ª Turma, HC 122061 (03/05/2011):
Na espécie, o paciente foi condenado pela prática de dois crimes de latrocínio – um consumado e outro tentado – em concurso formal. Na impetração, sustentou-se que os delitos foram praticados contra um casal, o que caracterizaria violação de apenas um patrimônio, devendo ser reconhecido, portanto, o cometimento de crime único. Nesse contexto, a Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, denegou a ordem de habeas corpus por entender que o fato de as vítimas serem casadas não necessariamente significa que os objetos subtraídos de sua residência compunham um patrimônio comum indivisível. Segundo salientou o Min. Relator, mesmo nas hipóteses de os cônjuges adotarem o regime da comunhão universal, há bens que não se comunicam, como os do caso: foram subtraídos, entre outros itens, um par de alianças de ouro e quantia em dinheiro proveniente, ao que tudo indica, da aposentadoria por eles recebida. Concluiu, portanto, que, in casu, foram cometidos dois crimes contra duas vítimas diferentes mediante uma única ação e lesão a mais de um patrimônio, o que caracteriza o concurso formal nos termos do art. 70 do CP, ainda que as vítimas fossem casadas civilmente. Precedente citado: REsp 729.772-RS, DJ 7/11/2005.
HC 122.061-RS, Quinta Turma, Rel. originária Min. Laurita Vaz, Rel. para acórdão Min. Jorge Mussi, julgado em 3/5/2011.
Ver inteiro teor do acórdão

 

No caso analisado, houve na verdade o cometimento de dois crimes de latrocínio contra duas vítimas diversas, mediante uma só ação e o fato de as vítimas serem casadas não leva necessariamente à conclusão de que todos os bens havidos compõem o patrimônio comum do casal, até porque, ainda que casados sob o regime da comunhão universal, há bens que são excluídos da comunhão, os que por lei são considerados patrimônio exclusivo do cônjuge que o recebeu, os denominados bens personalíssimos, consoante o disposto nos incisos do art. 1.668 do Código Civil.

 

STJ – tem o entendimento que, havendo dois crimes de latrocínio contra duas vitimas diversas, mediante uma só ação, com lesão a mais de um patrimônio distintos, mesmo que as vitimas sejam casadas civilmente, configura concurso formal e não crime único.
Para o STJ, leva-se em conta a natureza civil dos bens subtraídos, analisando se constitui patrimônio comum do casal ou não.

 

Entendimento do STF:

 

Tese diversa foi defendida pela segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, em 07/05/2013, no julgamento do HC n.º 109.539/RS, de relatoria do Min. Gilmar Mendes.

O STF, decidiu de forma diversa, entendendo se tratar de crime único e não concurso formal. (Ver informativo nº 705 do STF)

 

STF, 2ª Turma, HC 109539, j. 07/05/2013:
A 2ª Turma iniciou análise de habeas corpus em que pleiteado o reconhecimento da prática de crime único pelo paciente, com a reforma do julgado que adotara a regra do concurso formal, com o consequente aumento de 1/6 na dosimetria da pena. Na espécie, alega-se que o paciente teria praticado o delito em detrimento de patrimônio comum, indivisível do casal. Assim, insurgia-se de condenação por 2 latrocínios — 1 tentado e outro consumado — em concurso formal. O Min. Gilmar Mendes, relator, concedeu, em parte, a ordem, para reconhecer a prática de crime único de latrocínio. Destacou que, ainda que se aceitasse a tese de patrimônio diferenciado das vítimas, em função das alianças matrimoniais subtraídas, o agente teria perpetrado um único latrocínio. Pontuou que o reconhecimento de crime único não significaria o integral acolhimento do pedido. Frisou que afastar-se o aumento de 1/6 da pena, relativo ao concurso de crimes, poderia levar à injustificável desconsideração do número de vítimas atingidas. Determinou, por fim, a baixa dos autos para nova dosimetria, respeitado o limite do non reformatio in pejus. A Turma, por unanimidade, concedeu parcialmente a ordem, para reconhecer a prática de crime único de latrocínio e determinar que o juízo de primeiro grau proceda à nova dosimetria da pena.
HC 109539/RS, Segunda Turma, rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 07.05.2013.
Ver inteiro teor do acórdão

 

No caso analisado, o STF considerou que o dolo do agente era o de subtrair patrimônio único e que o fato da legislação considerar a aliança como bem particular de cada cônjuge não serve, no direito penal, para afirmar que houve atingimento de patrimônios diversos. Desse modo, entendeu ter havido um único crime de latrocínio.

Para o STF, a existência ou não de pluralidade de delitos, somente pode ser atestada mediante a análise das circunstâncias que envolvem a prática da ação delitiva. Deve-se levar em consideração a conduta perpetrada pelo agente, analisando o dolo do agente, observando se sua intenção era roubar algum bem em específico ou o conjunto de bens encontrados com o casal.

A multiplicidade de mortes (ou lesões graves) não leva à prática de vários latrocínios, caso o patrimônio atingido seja unitariamente lesado.
Havendo atingimento de patrimônio único, haverá apenas um latrocínio, independentemente do número de vítimas.

Se o agente deseja subtrair patrimônio único e causa pluralidade de mortes haverá um só crime de latrocínio. O fato de ter havido mais de uma morte servirá para agravar a pena na 1° fase da dosimetria, com base nas “consequências do crime”, circunstância judicial prevista no art. 59 do CP.

Tome-se como exemplo um roubo à mão armada em via pública a um casal que resulta na morte de ambos. Neste caso o bem subtraído foi o automóvel da família, que vinha sendo guiado pelo marido, estando a esposa no banco do passageiro, haverá crime único, pois a ação do agente foi dirigida a atingir um único patrimônio, objetivamente considerado, sendo desinfluente para se chegar a essa conclusão qualquer discussão quanto ao regime de bens do casal.

 

STF –  Entende que há crime único de latrocínio, quando resta demonstrado que há o dolo do agente em lesionar patrimônio único do casal.

 

Para memorizar o entendimento dos tribunais, vejamos o quadro comparativo:

 

Superior Tribunal de Justiça
Supremo Tribunal Federal
Entende que, quando cometidos dois crimes, mediante uma só ação, ocorre lesão a mais de um patrimônio distintos, contra duas vítimas diversas, mesmo que  sejam casadas civilmente, configura concurso formal e não crime único. Entende que, quando resta demonstrado o dolo do agente em lesionar patrimônio único do casal, mesmo que haja ocorrência da morte de mais de 1 vítima, há crime único de latrocínio e não concurso formal.

 

Cabe ressaltar que em relação ao latrocínio tentado, esta modalidade não encontra amparo na jurisprudência do STF, para o qual o resultado morte é indispensável, inexistindo a forma tentada do crime. Súmula n.º 610/STF.
Já para o STJ, o latrocínio tentado é possível, bastando a comprovação de que o agente atentou contra a vida da vítima, não atingindo o resultado morte por circunstâncias alheias à sua vontade.

 

 


Referências:
Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial 3. Editora Saraiva. 8ª edição.
HC 122.061-RS, Quinta Turma, Rel. originária Min. Laurita Vaz, Rel. para acórdão Min. Jorge Mussi, julgado em 3/5/2011.
HC 109539/RS, Segunda Turma, rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 07.05.2013.

 

 

Como citar este texto (NBR 6023:2002 ABNT):
TELES, Vanessa. Latrocínio contra casal: concurso formal ou crime único? MegaJurídico. Disponível em:<http://www.megajuridico.com/latrocinio-contra-casal-concurso-formal-ou-crime-unico/>.Acesso em __
CEO / Diretora Executiva do Megajuridico. | Website

Advogada com atuação especializada em Direito de família e sucessões. Designer. Apaixonada por tecnologia e inovação, gosta de descomplicar o direito através do Legal Design e Visual Law.
Diretora de Inovação da OAB/RJ NI. Presidente da Comissão Especial de Legal Design e Inovação Jurídica da OAB/RJ NI. Diretora adjunta de Comunicação da ANACRIM/Baixada.
Mediadora judicial certificada pelo TJRJ e CNJ. Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil.

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1 COMENTÁRIO

  1. Muito interessante o que expõe a jurisprudência e decisão do STJ e STF, entretanto, noto que o STJ está mais afinado com a realidade e as consequências do ato em apreço, parabéns pela pesquisa, belo trabalho!

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