quinta-feira,28 março 2024
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Justiça com as próprias mãos: Até onde é justa?

Século XXI, Abril de 2014, princípios consolidados e sociedade teleologicamente preparada para dirimir conflitos sociais. Ledo engano. Mas quem não deve, não teme. 

 

Ultimamente a onda de vingança popular, ou rebeldia, ou insatisfação com a impunidade do Estado ou como qualquer outra forma que você conceitue ganha cada vez mais espaço nos noticiários e nas mídias sociais. Alguns creditam isso ao posicionamento de uma certa jornalista que ora é criticada, ora é ovacionada como a verdadeira voz do jornalismo. Escolha o seu time. Ledo engano também.

Não é a primeira vez que ondas de ódio popular manifestam-se através da famosa justiça com as próprias mãos. Se não temos um Estado forte, punível, justo, célere e capaz de usar a jurisdição para resolver todos os conflitos como a sociedade deseja, por que não dar à sociedade o direito de resolver os seus problemas sem o dedo do Estado? Simples, porque isso nos remete ao estágio dos primórdios humanos onde o famoso olho por olho e dente por dente era muito mais importante e eficaz que os 250 Artigos da Constituição e os 97 da ADCT. Mas afinal, por que isso é preocupante?

Diferentemente da justiça aplicada pelo Estado, a “justiça” aplicada pelo povo diretamente não comporta princípios e leis que são responsáveis por toda a evolução jurídica e social até o presente momento. Essa autotutela popular é perigosa porque princípio nenhum é capaz de parar o sangue na garganta de um pai que acabou de ver seu filho ser morto, sua mulher  e filha ser estuprada, seu carro comprado com todo o esforço dividido em milhões de prestações ser levado por um irresponsável que quer que tudo venha fácil pra si. E não é pra ser diferente.

Aqui, o desejo é uníssono: Vingança, fazer com que ele pague pelo que  fez e que sinta dor por conta disso. Logo, o melhor a se fazer é espancar, apedrejar, torturar até a morte pois isso é a melhor maneira de fazer com que ele aprenda que o que ele fez é errado, como se ele não soubesse. O propósito aqui é saciar a sede de vingança. Sendo assim, a justiça não está presente e torna-se desnecessária.

A punibilidade pelo Estado é moderada e amarrada por diversos princípios e não poderia ser diferente. Apesar de muitas e merecidas reclamações, estamos muito melhores do que há séculos atrás em quesito Brasil e Mundo. A burocracia é um preço caro a ser pago por um sistema democrático. O Estado democrático de direito, a dignidade da pessoa humana, a presunção de inocência, o fim de regimes imperiais absolutistas foram grandes conquistas para TODOS e que hoje são jogadas como Direitos humanos para bandido ou semelhante, resumindo conquistas imensuráveis para a sociedade e para o mundo como formas de ajudar quem não obedecer o bons costumes sociais.

É errado pensar assim? Depende, uai. Se você acaba de ver um parente seu ser morto  vai ter tempo pra pensar no fim do absolutismo, na isonomia, na dignidade da pessoa humana? É lógico que não, somos humanos, temos instintos antes das leis. O que parece mais correto é matar quem matou também, pois nada melhor que devolver o troco no valor exato.

Como podemos ver, o real problema não está ai. O problema é até onde essa justiça pode chegar. Vingança, quando você tem certeza de quem foi, sempre foi um costume adotado pela humanidade. Mas porque chamar algo pautado apenas no instinto humano de justiça? Onde a justiça entra na jogada? Essa tal justiça com as próprias mãos não precisa de provas cabais para ser executada, o que abre um precedente infinito de possibilidades de ocorrência de injustiças bem pior que a “verdadeira justiça” que tanto reclamam, ou seja, um sujo está falando do mal lavado. A justiça judiciária é burocrática porque precisa e deve garantir que o que se discute seja realmente real para pesar sua mão. Infelizmente, a justiça do povo, apesar da vingança, que de forma nenhuma é justiça, nem sempre espera defesa. Assim como um assassino não espera também.

O caso mencionado acima é um exemplo de justiça popular onde não há dúvidas de que a lei de talião foi aplicada, que uma forma ou de outra realmente ERA legal. Mas e quando a vingança se baseia em hipóteses como no caso de um menino negro com problemas mentais que foi morto por acharem que ele era estuprador? A mãe, uma empregada doméstica de um bairro pobre, pode sair por ai batendo em quem matou ele mesmo sabendo que não existiam provas contra o garoto? Diferente de quem matou ele, ela tem certeza dos autores do crime, e agora? Percebe onde quero chegar? É um ciclo vicioso.

Mas, paremos um pouco para raciocinar. Na justiça do judiciário, injustiças acontecem mesmo com todos os princípios e defesas, na “Justiça” popular acontece a mesma coisa; Na justiça judiciária, segundo as más línguas, a maioria dos punidos são pobres, na “justiça” popular também; Na justiça judiciária uma prova mal colhida gera impunidade, Na “justiça” popular a mera desconfiança já é suficiente pra executar a punição; Na Justiça judiciária a punição demora bastante, na “justiça” popular a punição é rápida, imediata e eficaz pois sacia muito mais a sede de vingança matando o indivíduo do que prendendo por meia dúzia de anos, não é mesmo? Pra quê precisamos do Estado para tomar conta das relações e organizações da sociedade se nós somos capazes de resolver isso com as próprias mãos e o Estado sempre é tido como ineficaz? Pra que Estado democrático de direito se só serve pra bandido? Pra que dignidade da pessoa humana se só quem é errado é beneficiado?

Então não precisamos mais saber até onde a justiça popular é justa, uma vez que esse limite nunca existiu e nem vai existir. É como dizem os mais velhos: Falar é fácil quando o nosso não está na reta. Quando eles disseram isso aposto que não faziam ideia da proporção que isso tomaria mais tarde. Já imaginou se a justiça judiciária pautasse-se apenas em vingança? Não, é melhor não.

Sergipano; Componente do grupo de pesquisa Educação, sociedade e Direito (CAPES/CNPQ); Advogado; Eterno estudante de Direito; Coautor do livro: Ensaios de Direito Constitucional - Uma homenagem a Tobias Barreto; Fã de xadrez e ficção científica.

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