terça-feira,16 abril 2024
ArtigosJudicialização e ativismo judicial: diálogos entre o político e o judicial

Judicialização e ativismo judicial: diálogos entre o político e o judicial

Por Marco Curi Prais¹ e Jefferson Prado Sifuentes²

 

 

Resumo

Este artigo analisa o fenômeno do protagonismo judicial e suas duas principais decorrências: a judicialização da política e o ativismo judicial. Para isso, utiliza como paradigma o Estado Constitucional e democrático de direito, através da realização de reflexões a respeito da política, do direito – e suas relações – considerando, sobretudo, o elemento liberdade, que invoca para si a responsabilidade democrática de (re) definição das formas de convivência humana.

 

1   Introdução

O estudo das relações entre a Política e o Direito, por sua natural importância, tem merecido especial atenção por parte da doutrina, uma vez que o desenvolvimento científico, aliado à cada vez maior complexidade das relações sociais – que envolvem aspectos políticos, culturais, econômicos, (re) dimensionamento do papel do Estado, entre outros – nos convoca a refletir sobre o tema.

Para a realização do presente estudo, a liberdade fundamental do ser humano de decidir as formas de convivência apresentou-se como ponto crucial, na medida em que a política opera (considerado o paradigma democrático), com a possibilidade de que as sociedades possam fazer opções, alterando o modelo atual, sempre que o mesmo não corresponda mais aos anseios da coletividade. Isso porque, conforme será trabalhado no presente texto, a marca dos seres humanos é a Liberdade, uma vez que agimos através de decisões, de deliberações.

Nesse sentido, como forma de introduzir o termo “política” no presente trabalho, o passado – mesmo que brevemente – será revisitado através dos gregos, sem deixar de atentar para o fato de que, com o passar dos séculos, foi possível constatar a atribuição de uma multiplicidade de sentidos à política, razão pela qual podemos afirmar que o seu significado atual apresenta-se como resultado de um longo processo histórico, firmando-se como atividade em contínuo movimento, aberta a todo tempo para transformações. Há de se considerar, naturalmente, que, comparativamente aos gregos, os tempos são outros, e as sociedades também.

No que diz respeito ao plano do Direito, a Carta Magna brasileira é tida como fruto das decisões políticas, sendo considerada verdadeira modelagem jurídica do fenômeno político. Nesse sentido, há inegável relação entre o Direito e a Política, o que suscita na presente abordagem um enfoque direcionado às formas de interação entre esses dois elementos estruturantes da vida em sociedade, a partir fundamentalmente da força normativa das constituições, que apresenta-se absolutamente revigorada – sobretudo após a 2º guerra mundial – em que experiências terríveis afligiram a humanidade. E é exatamente a partir deste momento histórico (2º pós-guerra), que o Poder Judiciário surge como verdadeiro protagonista, assumindo posição institucional de destaque.

Diretamente decorrentes dessa ascensão, temos os fenômenos da judicialização da política e do ativismo judicial, que merecem estudo por sua relevância, tanto política, quanto jurídica. A partir disso, realizar-se-á no presente trabalho uma crítica hermenêutica por meio da realização de reflexões acerca de tais fenômenos, destacando-se sobretudo o modo de decidir de juízes e tribunais, o que, conforme veremos, ganha relevância no paradigma de Estado Constitucional e democrático de direito.

 

2  Relações entre a Política e o Direito

 

O termo Política, que se expandiu por influência de obra de mesmo nome escrita pelo filósofo grego antigo Aristóteles (ARISTÓTELES, 1985a), pode ser analisado pelos seus significados clássico e moderno (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1986. p. 954) . O termo foi utilizado durante séculos para designar obras que se referiam às atividades humanas ligadas de algum modo às coisas do Estado. Modernamente, foi gradativamente substituído por outras expressões tais como “ciência do Estado” e “ciência política”, passando a indicar a atividade ou conjunto de atividades que tem como termo de referência o Estado (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1986. p. 954).

A palavra Política é derivada de Pólis, que designa as cidades-Estado da Grécia antiga, organizadas por leis e instituições. Contrariamente ao Estado romano, que é sobretudo territorial, a Pólis grega não se definia pelo seu contexto geográfico, mas pelo corpo de cidadãos que a compunha (JAGUARIBE, 1982. p. 81), razão pela qual o entendimento do que seja uma cidade era diretamente ligada à ideia de cidadão.

Exatamente por isso, defendia-se a concepção de que eram os homens que faziam uma cidade, e não as muralhas ou as naus vazias (TUCÍDIDES, 2001. p. 468.), tendo a cidade sido retratada por Aristóteles como uma “multidão de cidadãos” (ARISTÓTELES, 1985b, p. 1275).

À ideia de cidadania, os gregos associavam fortemente um dever de participação (que lançou as bases para o seu sistema democrático), eis que a postura política ativa permanecia como traço marcante da sociedade, estando tal prática enraizada na cultura de seus integrantes. Tal era a importância da participação, que em discurso proferido em 430 a. C – em oração aos mortos do primeiro ano da Guerra do Peloponeso – o general e estadista Péricles[i] – um dos principais líderes democráticos de Atenas – afirmou que o cidadão que mantivesse postura indiferente com relação à política era tido como um inútil para a sociedade e para a República (TUCÍDIDES, 2001, p. 110).

A Política foi inventada pelos gregos (CHAUÍ, 2000, p.31). Tal afirmação não significa dizer, em absoluto, que anteriormente não tenha havido exercício do poder. No entanto, o traço marcante nos tempos pretéritos à experiência grega era a identidade entre o poder e a figura do governante, encarnação do poder; em verdade, a sua vontade pessoal era a lei. Já os gregos, por outro lado, institucionalizaram práticas inovadoras, primeiramente porque desvincularam o poder político de duas outras formas tradicionais de autoridade – a do chefe de família e a do sacerdote; além disso, estabeleceram instituições públicas (tribunais e assembleias), criando a noção de justiça e de lei como expressões da vontade coletiva pública, ideia oposta à imposição da vontade de um só ou de um grupo, e finalmente porque as deliberações eram realizadas através do voto, a partir de debates públicos.

Diferentemente de outros locais, como na Pérsia ou no Egito, em que o governante comandava de maneira autocrática, a coletividade em direção aos objetivos por ele delineados, a forma de atuação na Pólis grega derivava da atividade social desempenhada por seus habitantes. Desta forma, ao lado das atribuições do soberano, a atividade política grega acrescentou como exemplo para os outros Estados a referência à cidade, à cidadania, ao coletivo da pólis (MAAR, 2013, p.36). Isso porque, na sistemática de funcionamento da Pólis, os cidadãos participavam dos negócios, nomeavam magistrados, elaboravam as leis, administravam a justiça, decidiam a guerra ou a paz.

Reunidos na Ágora, os cidadãos decidiam pessoalmente as questões públicas, através de debates, sendo esse o cenário edificado pela democracia grega, capitaneada por Atenas.

Naquela época, as atenções do cidadão ateniense se dirigiam tanto aos negócios privados quanto aos públicos, participando diretamente das questões que diziam respeito à coletividade. Os gregos, desta forma, submeteram o poder a um conjunto de instituições e práticas que o transformaram em algo público, criando, desta maneira, o que se denomina de esfera pública.

Com o passar dos séculos, no entanto, é possível constatar a atribuição de uma multiplicidade de sentidos ao termo política, razão pela qual podemos afirmar que o seu significado atual se apresenta como resultado de um longo processo histórico, firmando-se como atividade em contínuo movimento, aberta a todo tempo para transformações.

Se considerada em sua faceta “oficial”, pela qual se considera que a política opera institucionalmente através do Estado e de partidos políticos, constatamos a possibilidade – através do paradigma democrático – que as sociedades façam as suas opções, cedendo a forma atual a outras maneiras de convivência, sempre que o modelo atual não corresponda mais aos anseios da coletividade. Ocorre que, dentro da perspectiva de multiplicidade de sentidos do referido termo, a atividade política pode não se limitar ao Estado e aos partidos políticos, no sendo permitido citar como exemplos os movimentos sociais e a “política de base”, que adquiriram posição estratégica ao atuar paralelamente às instituições oficiais.

E é exatamente na possibilidade de rediscussão das bases da convivência humana que se situa a política, uma vez que a humanidade está em permanente transformação. Seres complexos, os homens são resultado de experiências irrepetíveis, não havendo verdades imutáveis, situações pré-definidas, metas já alcançadas e inalteráveis, que não possam ser discutidas e redefinidas. Há, desta forma, infinitas possibilidades reveladas pela política e incontáveis possibilidades de lançarmos, nós mesmos, as bases de nossa convivência.

Muito embora até aqui tenha se defendido essa valiosa liberdade humana, devemos pontuar – por mais paradoxal que possa parecer – o imprescindível papel do Direito. Isso porque, na política, vigoram a soberania popular e o governo da maioria, revelando-se como o universo da vontade, o que significa em uma democracia a vontade da maioria; no Direito, por outro lado, vigoram a supremacia da Lei (the rule of law), o domínio da razão e o respeito aos direitos fundamentais. (BARROSO, 2015, p. 448)

Necessário pontuar que nesta quadra da história da humanidade (sobretudo a partir do 2º pós-guerra), assistiu-se à um movimento de vinculação às normas fundamentais, às constituições, com a firme decisão de efetivarmos os estados constitucionais e democráticos de direito. Dessa maneira, o Estado Constitucional de Direito se consolida na Europa, que até então assistia à um Estado Legislativo de Direito (BARROSO, 2015, p. 436).

Nesse cenário, a Carta Magna é tida como fruto das decisões políticas, sendo considerada a modelagem jurídica do fenômeno político (COELHO, 2006, P.11), havendo inegável relação entre o Direito e a Política, sobretudo quando se pensa no plano da criação das normas jurídicas. Muito embora sejam fenômenos distintos, não há como negar a ocorrência dessa interação, restando-nos a tarefa de refletir a respeito de como ela tem ocorrido, bem como quais as suas possíveis consequências.

Pela própria teoria da separação dos poderes, consagrada no artigo segundo da Constituição da República, há a clara determinação que os poderes Legislativo e Judiciário (em também o Executivo), são independentes e harmônicos entre si.

Entendendo que o parlamento representa o povo politicamente, o tribunal constitucional, argumentativamente. (ALEXY, 2015, p. 54), é certo este liame entre Direito e Política, indiscutível a associação.

É claro, que num Estado Democrático hodierno, mister separar as delegações do poder. A concentração do poder, com o exercício deste de forma ilimitada e sem fiscalização pode ser danoso, como a história já provou. Portanto, límpida a necessidade da “independência” entre os Poderes.

Não se pode olvidar, contudo, que o próprio texto constitucional crava que estes poderes são harmônicos entre si. Esta harmonia, então, consagrada por representantes do povo, determina a relação, não de dependência, mas de interação entre os poderes, para sequenciar a vida dos cidadãos, desde seus anseios intimamente particulares, bem como os interesses do Estado.

 

3 Protagonismo judicial e os fenômenos da judicialização e do ativismo

 

Para que seja possível tratar a respeito do protagonismo judicial, é preciso que antes se entenda qual o sentido original da palavra protagonista. Do grego, Prótos, significa “primeiro” e agonistès quer dizer “ator”. Desta forma, o protagonista é o primeiro ator, o personagem principal de uma peça, a pessoa que desempenha ou ocupa o primeiro lugar num acontecimento (BUENO, 1973, p. 1082).

No presente artigo, a ideia empregada para o termo protagonismo judicial refere-se a um movimento de ascensão do Poder Judiciário, que assume, sobretudo a partir do 2º pós-guerra, uma posição de destaque, de verdadeiro agigantamento, tanto na Europa quanto em países da América Latina (BARROSO, 2015, p. 439), o que naturalmente inclui, de maneira irrefutável, o Brasil.

Muito embora o contexto atual nos apresente um Judiciário protagonista, é preciso refletir a respeito de um movimento histórico quase que pendular com relação à atuação dos poderes constituídos, no que tange à ocupação do papel de primeiro ator. Isso porque, no século XIX, verificou-se que o Estado Liberal se apresentou como um estado cujo ator principal era o Poder Legislativo.

Com as crises do final do século XIX e do século XX (como a quebra da bolsa por exemplo), o Executivo é que passou a ocupar papel destaque, em razão da necessidade de realização das políticas públicas. Em continuidade ao movimento pendular referido, observamos a vez do Poder Judiciário assumir o papel de primeiro ator, sobretudo a partir do 2º pós-guerra, uma vez que, por meio do somatório de vários fatores, este poder passou a ocupar um espaço que lhe tem conferido a posição do que podemos chamar de “fiador” dos direitos fundamentais.

Esse movimento pendular abrange os três poderes, ora o Executivo exerceu este protagonismo, outrora o Judiciário e, outras vezes o Legislativo.

O primeiro destaque é do legislativo, que assume o status de representante do povo. O modelo de democracia ateniense de reunir a população para deliberar as questões públicas, não mais subsiste nem consegue se manter com a evolução da civilização. Assim destarte indicar representantes do povo, que se afiguram hodiernamente como Poder Legislativo, para regulamentar a vida em sociedade e pautar interesses do Estado e do cidadão. O legislador deve ser visto como um engenheiro social, apto a construir ou reconstruir a sociedade (WALDRON, 2003, p. 27-28).

Ao poder legiferante cabe a árdua tarefa de criar e regulamentar o direito numa ótica individual, social e estatal. Cabe ao legislativo prever e garantir o exercício de direitos. No entanto, nem todas as normas contém todas as peculiaridades regulamentares para o imediato exercício de um direito. Se a norma não dispõe de todos os requisitos para sua aplicação aos casos concretos, falta-lhe eficácia, não dispõe de aplicabilidade (SILVA, 2004, p. 60). Ante a uma ausência de aplicabilidade, a norma não atinge seu objetivo, ficando apenas abstratamente no mundo das ideias. A norma viciada é politicamente não conforme a finalidade (ALEXY, 2015, p. 22).

E diante da não aplicabilidade de um direito por ausência de regulamentação, é viável democraticamente deixar com que as letras garantidoras de direitos fundamentais repouse em berço esplêndido? Uma norma com eficácia limitada depende de regulamentação e intervenção estatal para iniciar seus efeitos SILVA, 2006, p.47). Se esta regulamentação não vem do Legislativo ou do Executivo, o pêndulo do protagonismo regressa ao judiciário.

Diante da não autoaplicabilidade das normas, às vezes dependentes de regulamentações inexistentes, o Poder Judiciários é convidado a interpretar e, às vezes, viabilizar exercícios de direitos. Normas sem eficácia convidam cada vez mais o poder judiciário, o que explica esta ascensão pendular do poder judicante.

Diretamente decorrentes da ascensão institucional do Poder Judiciário, temos os fenômenos da judicialização da política e do ativismo judicial, que chamam a atenção para o fato de haver importante divergência doutrinária com relação à sua conceituação. Isso porque, ora são caracterizados como provenientes de uma mesma família (BARROSO, 2012) (havendo, portanto, uma espécie de identidade genética entre eles), ou pelo contrário, são caracterizados como sendo fenômenos distintos (TASSINARI, 2015, p. 29), possuindo singularidades que não nos autorizariam conceituá-los como similares, análogos.

Ao analisar especificamente a questão da Judicialização, Luis Roberto Barroso entende que no Brasil tal fenômeno seria um fato, caracterizado pela decisão de questões de larga repercussão política ou social por parte de órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais, compostas por membros eleitos, integrantes dos Poderes Legislativo e Executivo.

A judicialização possuiria, portanto, múltiplas causas, dentre elas a redemocratização do país, a ocorrência de uma constitucionalização abrangente, aliado ao controle de constitucionalidade brasileiro (um dos mais abrangentes do mundo), além do que, com o advento da constituição de 1988, o Judiciário teria deixado de ser um departamento técnico-especializado, se transformando em um verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto com os outros Poderes. Para o autor, na maior parte dos países ocidentais, observa-se, a partir, sobretudo, do segundo pós-guerra, uma espécie de avanço da justiça constitucional sobre o espaço da política majoritária (BARROSO, 2012).

Já no que diz respeito ao ativismo, Barroso entende que tal fenômeno seria uma atitude, um modo de agir do Judiciário, que através de um modo proativo, interpretaria a constituição expandindo o seu sentido e alcance. A referida proatividade ocorreria, segundo o autor, em situações de retração do Poder Legislativo, em um quadro de descolamento entre a classe política e a sociedade civil, o que impediria que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva.

Nesse sentido, a ideia de ativismo judicial estaria associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais. Dessa forma, o ativismo judicial dependeria da judicialização, uma vez que seria preciso judicializar uma matéria para que houvesse essa atuação proativa por parte do Judiciário. O contrário, porém, não ocorreria, uma vez que nem sempre que há judicialização, haveria ativismo judicial (atuação proativa). Dito isto, judicialização e ativismo seriam fenômenos primos (BARROSO, 2012), eis que criados no mesmo ambiente.

Pode-se dizer, portanto, que a judicialização é um caminho, de certa forma, natural no Estado Democrático de Direito. É aliás, exercício de direito fundamental (artigo 5º, XXXV da Constituição da República de 1988). O ativismo, por outro lado, é o uso imoderado da judicialização, de forma a transitar na esfera constitucional de poder de outro órgão democrático. É necessário, portanto, observar limites para “prevenir o perigo da transformação perversa do judiciário em outro poder político” (CAPPELLETTI, 1993, p. 50).

Se por um lado se concorda que a judicialização se apresenta como um fato, que surge a partir de um contexto social, em que a conjugação de vários fatores (implantação de tribunais constitucionais, expansão do texto constitucional e a própria ampliação do acesso à justiça) impulsionaram este fenômeno, o mesmo não se pode dizer em relação ao ativismo judicial, que longe de ser um fato, liga-se à atividade interpretativa de juízes e tribunais. Nesse sentido, judicialização e ativismo apresentam-se como fenômenos distintos, com característica peculiares, a partir das quais não é possível conceituá-los como similares ou como sendo da mesma família.

Para o desenvolvimento do assunto, ponto fundamental a ser trabalhado é que se proceda a uma reflexão a respeito de como as demandas estão sendo decididas, deslocando-se a esfera de análise para o problema interpretativo, hermenêutico. Nesse sentido, o ativismo judicial é caracterizado por ser um comportamento manifestado por parte dos julgadores, que através de verdadeiros atos de vontade, extrapolam os limites de sua atuação. Antoine Garapon, em sua obra intitulada O Guardador de Promessas, reforça a ideia de que o ativismo esteja ligado tanto a escolhas, quanto a desejos do julgador: “O Activismo começa quando, entre várias soluções possíveis, a escolha do juiz é dependente do desejo de acelerar a mudança social ou, pelo contrário, de a travar.” (GARAPON, 1996, p. 54)

Partindo dessas considerações, é possível constatar a necessidade de que juízes e tribunais (assim como os demais atores sociais) se mantenham dentro dos limites constitucionalmente estabelecidos para o exercício do poder, questão importantíssima em um estado democrático de direito. Isso porque, o extrapolamento no exercício da jurisdição, caracterizado por um decidir que acaba impondo conteúdos, apresenta-se como constitucionalmente inadequado, uma vez que as decisões, em um estado de direito, não podem ser frutos da apreciação individual-subjetivista dos julgadores.

Essa análise parte do princípio de que os conteúdos, muitas vezes impostos durante o ato de decidir, ou seja, durante o ato interpretativo praticado por juízes e tribunais, deveriam em verdade ser debatidos e decididos pelas instâncias majoritárias, eleitas pelos cidadãos para a realização de tal mister.

Assim, deve-se ressaltar que a construção de decisões judiciais vinculadas a escolhas e desejos dos julgadores, baseadas em convicções individuais e análises pessoais – que, desta forma, claramente impõem conteúdo – não podem se sobrepor àquilo que se denomina de produção democrática do direito.

Além disso, é inegável que o momento atual demanda, cada vez mais, um Direito construído como produto do coletivo, e não como fruto do trabalho individual. Há, dessa forma, uma crescente necessidade de que as instituições se pautem pela Constituição vigente, e (re) orientem a sua atuação através dos marcos oferecidos pela carta magna, que conforme dito, apresenta-se como verdadeira modelagem jurídica do fenômeno político (COELHO, 2006, p. 11).

 

4 Conclusão

Em um Estado Democrático, a Política nos apresenta um universo de possibilidades de deliberação a respeito das formas de convivência e organização da convivência humana. A sociedade, diretamente ou através de seus representantes, tem o poder político de definir o que deseja para seu futuro, na medida que deve fazê-lo livremente.  A vida, portanto, nesse cenário, assume uma posição contingencial (no sentido filosófico da palavra), uma vez que não está previamente definida.

Há na atividade política, considerado o Estado Constitucional e Democrático de direito, uma necessária atividade de escolha. Nesse cenário, se opta por escolhas democráticas, elege-se entre opções possíveis, o que significa que o cidadão seleciona a alternativa por seu valor, seja diretamente, ou através de representantes eleitos.

No entanto, o universo das decisões políticas, o universo das escolhas, não é ilimitado.  Isso porque o universo da política, do majoritário, não está autorizado a fazer escolhas aleatórias, agindo à revelia do ordenamento constitucional instituído. Há um Direito anterior, há uma constituição, que possui força normativa.

Nesse sentido, em um eventual choque entre o político e o judicial, a comunidade – que delibera diretamente ou através de seus representantes eleitos – não pode se sobrepor ao direito posto. Na eventualidade de haver deliberação popular que afronte a ordem constitucional, cabe às cortes constitucionais, a quem normalmente cabem o controle de constitucionalidade, exercer um papel contra majoritário em defesa da Constituição e da democracia, sem, no entanto, que para isso exerça o papel de legislador positivo, uma vez que deve atuar nos limites estabelecidos pela própria Constituição. Ao judiciário cabe a tarefa de atuar, com a independência e as prerrogativas que lhe são outorgadas pelo próprio sistema, no sentido de fazer valer o Direito.

Ao procedermos a um exame cuidadoso e hermenêutico do texto constitucional, constatamos que não há dúvidas a respeito do fato de que a própria constituição ter estabelecido os limites de atuação das instituições. A extrapolação de tais prerrogativas pelas instituições é extremamente maléfica, tanto à democracia quanto à própria comunidade, uma vez que a cada um dos atores institucionais cabe um papel, anteriormente definido pela carta magna. Está em pauta, certamente, a defesa das regras do jogo democrático.

Considerado o paradigma democrático, a ocorrência de uma invasão do Poder Judiciário, que através de suas decisões, avança sobre o espaço reservado constitucionalmente à política majoritária (praticada pelo Legislativo e pelo Executivo), além de inadequada, figura-se como absolutamente ilegítima do ponto de vista democrático e constitucional. Primeiramente porque o Poder emana do Povo, e não dos juízes, que, como é cediço, não possuem mandato, tampouco são eleitos por voto popular. Decorrência quase que imediata da primeira razão anteriormente, não cabe à atividade jurisdicional a realização de escolhas democráticas, cabendo aos membros do Judiciário a atividade precípua de decidir as questões postas, sempre em conformidade com o direito vigente.

Fato importante a ser ressaltado, é que a realização de escolhas – em um modelo democrático – apresenta-se como tarefa reservada à sociedade, que através dos seus representantes eleitos definem as políticas públicas, elaboram a legislação, bem como as regras que ordenam a vida em coletivo. Ponto fundamental e de grande importância é que tais membros são elevados ao posto de representantes através de eleições periódicas, cabendo à população a sua avaliação política. Tal fato não ocorre, como bem se sabe, com os membros do Poder Judiciário, que não à toa gozam de garantias como a vitaliciedade, irredutibilidade salarial e inamovibilidade, aos quais cabe a importantíssima tarefa de decidirem os casos colocados à sua apreciação, fazendo valer, em última análise, o Direito.

 

5  Referências Bibliográficas

 

ALEXY, Robert. Constitucionalismo discursivo. Trad. Luís Afonso Heck. 4. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2015.

ARISTÓTELES (1985a).  Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1985.

______ (1985b). Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985. Livro III, Cap. I

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Editora Saraiva, 2015.

______. Judicialização, ativismo e legitimidade democrática. [Syn]Thesis, Rio de Janeiro, v. 05, n. 01, 2012, p. 23-32

BOBBIO, Norberto. MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1986. p. 954.

BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário Escolar da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Fename – Fundação Nacional de Material Escolar, 1973.

CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Trad. Carlos Alberto de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 8.ed. São Paulo: Ática, 2000.

COELHO, Inocêncio Mártires in Constituição e Política. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2006

GARAPON, Antoine. O guardador de promessas – justiça e democracia. Lisboa-PT: Instituto Piaget, 1996.

JAGUARIBE, Helio. A Democracia Grega. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982.

MAAR, Wolfgang Leo. O que é Política. 30.ed. São Paulo: Brasiliense, 2013.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 60.

SILVA, Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. Revista de Direito do Estado 4 (2006): 23-51.

TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e Ativismo Judicial – Limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2015.

TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso, Livro II. Trad. do grego de Mário da Gama Kury. – 4′. edição – Brasília: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001, XLVII, 584 p., 23 em – (Clássicos IPRI, 2)

WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003

 

[i] Os que participam do governo da cidade mantêm também as suas ocupações privadas, e os que se dedicam às suas atividades profissionais podem manter-se perfeitamente a par das questões públicas. Nós somos, de fato, os únicos a pensar que aquele que não se ocupa da política merece ser considerado não como um cidadão tranquilo, mas como um cidadão inútil. Tucídides. História da Guerra do Peloponeso, Livro II, § 40.

 

¹Marco Curi Prais. Mestre em Direito pela FDSM – Faculdade de Direito do Sul de Minas. Professor e pesquisador.²Jefferson Prado Sifuentes. Mestre em direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM);. Membro acadêmico efetivo da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC); Membro regular da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional (ABDPC); Advogado e professor.

Ambos colaboraram com nosso site por meio de publicação de conteúdo.

 

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