Uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a inadmissibilidade de recurso administrativo em matéria tributária pode ensejar desde logo a sua exigibilidade propõe que reflitamos hoje acerca do papel interpretativo do juiz.
Digo isso porque temos uma previsão legal no art. 151 do Código Tributário Nacional que confere a suspensão de exigibilidade ao crédito durante a tramitação de recurso na seara administrativa, sendo este o entendimento até então em voga. Ou seja, até então enquanto não esgotada a instância administrativa estaria suspensa a exigibilidade, até porque se o recurso não é admitido cabe o agravo às Câmaras do CARF-Conselho Administrativo de Recursos Federais. Mudança repentina de jurisprudência, inovação de entendimento precisa ser sopesada e refletida.
É um dilema definir até onde o Poder Judiciário detém a legitimidade para criar o Direito a partir de lacunas ou conflitos entre normas, se é fato que não pode deixar de julgar o caso, deve dar solução ao problema que se apresenta.
Nesse momento entra em tela a hermenêutica, do substantivo grego hermeneia em tradução literal para interpretação, sendo indissociável a ligação com Hermes, deus do Olimpo que, entre outras atribuições, era o mensageiro e porta-voz.
Disso, lembra Palmer que o significado da arte de interpretar é transformar em linguagem humana o conhecimento que ultrapassa a sua compreensão, ou, ainda, o conjunto das ferramentas e métodos que conduzem a esta descoberta.
Já no latim aproxima-se do vocábulo hermo, de sermo, cuja tradução é dizer, anunciar, afirmar, capacidade esta da qual eram dotados os sacerdotes encarregados de trazer ao terreno mundano as mensagens dos deuses.
Nesse momento repousamos em um complexo espiral: anuncia-se pela fala algo que foi interpretado, transforma-se em linguagem oral aquilo que a linguagem escrita limitou a inteligibilidade.
Dito de outro modo, o ato de interpretar pressupõe o ato de compreender. É um ato de expressão conforme destacava Eros Grau, chega a ser uma arte holográfica, no sentido de que o texto só ganha vida depois de compreendido e, doravante, reproduzida sua significância.
A interpretação foi o monstro que aterrorizou os pensamentos dos juristas até o dia em que um deles acordou do pesadelo e iniciou uma luta travada contra o indeterminismo. Refiro-me, é claro, ao mestre de Viena, Hans Kelsen.
A Teoria Pura do Direito se bem estudada e compreendida serve de escudo contra tendencionismos e decisionismos, importa dizer, retirar da norma qualquer indagação sobre sua justeza ou moralidade buscava retirar do aplicador o poder de interpretar além dos limites do texto.
Não se trata de defender um direito injusto ou (a)imoral, mas, sim defender que o Direito seja tudo, menos o que cada um quer que ele seja, um vetor que dispara em toda direção.
O problema parece estar em confundir o explicar com o criar, haja vista que desde sua origem terminológica e semântica, interpretar não convalida o ato de criação, mas, sim de explicação.
Richard Palmer aponta que o hermeneuein aponta a dimensão explicativa da interpretação, mais do que na sua expressão. As palavras não se limitam a dizer algo; elas explicam, racionalizam e clarificam algo.
De tal sorte, muito aquém de criar, a interpretação deveria se limitar em explicar o conteúdo da norma, sem nada lhe acrescentar além do sentido léxico das palavras que contém o texto.
As incertezas que agonizam os juristas atualmente diante das reviravoltas jurisprudenciais poderiam ser solucionadas se nos socorrêssemos ao ideal de Hermes, em apenas explicar o texto normativo.
Se de um lado o trabalho legislativo é imperfeito, por outro, muito menos perfeita pode se afigurar a atividade inovadora do judiciário, sendo curial recordarmos ao que já nos dizia a Águia de Haia, o imêmore Rui Barbosa: “A pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer”.
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.597.129.
PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Ed. 70, 2006.
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a interpretação e aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2003.