sexta-feira,19 abril 2024
ColunaDireito DigitalInteligência artificial e biopolítica digital

Inteligência artificial e biopolítica digital

Introdução
A era da 4ª revolução industrial, indústria 4.0 ou era do silício caracteriza-se, sobretudo, pela utilização da inteligência artificial em todos os setores de nossas vidas, com o aumento da intensidade de interconexões técnicas de todas as espécies, ocorrendo a aceleração do tempo. A linguagem escrita é substituída pela linguagem ciberoral, ocorrendo o perigo da perda da autopoiese, e, portanto, da substituição dos seres humanos por máquinas e robôs, muito mais eficientes e rápidos. Época da biopolítica digital, do fim do humanismo (Achille Mbembe) e do estado suicidário (Vladimir Safatle), da hipermodernidade e do transumanismo. Uma nova forma de soberania surge, sendo inútil a soberania baseada na manutenção das fronteiras entre os países. O soberano agora é aquele que dispõe de dados (Byung-Chul Han). Em tentativa de nos livrar da velhice e da morte, nos esquecemos de que sequer sabemos viver e morrer. Buscamos com isso a perfeição, mais beleza e mais juventude, e justamente a fragilidade do nosso ser humano irá desaparecendo, e com isso justamente o que nos tornava capazes das maiores maravilhas e dos piores horrores?

 

Biopolítica digital e a utilização da inteligência artificial no controle de pandemias

Vivemos na sociedade da informação, com excesso de informações e redução ou impossibilidade da comunicação, corroborada pela utilização em larga escala de fake news; acreditamos em imagens técnicas (Vilém Flusser) que se afastam dos conceitos e da realidade, e com isso distanciamo-nos de nós mesmos, em um labirinto em rota de colisão, deslocando do chão em busca do etéreo, em busca da liberdade sem limites, mas não temos mais como pousar, presos que estamos na pós-história e em prisões virtuais e digitais.

O corpo e a subjetividade, na sociedade digital pautada no controle microprotético e midiático-cibernético principalmente, são regulados por um conjunto de tecnologias biomoleculares, microprotéticas, digitais e de transmissão de informação. Surgem novas subjetividades digitalizadas e cada vez mais performáticas e superficiais, pois a empatia vai se perdendo a cada geração, a linguagem escrita vai se transformando em oralidade cibernética, e se distanciam o signo e o significante. Trata-se da era do “phylum maquínico”, termo forjado por Gilles Deleuze e Felix Guattari, mencionando o silício no agenciamento contemporâneo homem-natureza.

Somos dominados por conceitos alienantes e imagens técnicas que nos subjugam, pois nos fazem crer ainda mais serem a realidade, quando na verdade se distanciam ainda mais do que os conceitos. Representando assim como a abstração matemática um fim em si mesmo, e nos ajudando a cair na armadilha de estarmos presos no domínio técnico dos aparelhos, sem perceber. E. Husserl, em sua doutrina do conceito, entende que a representação própria e direta de um objeto somente seria alcançada pela intuição, enquanto que o conceito limitar-se-ia a fornecer uma representação imprópria, simbólica ou mediante símbolos, possuindo sempre um caráter intencional. Intencionar é tender por meio de conteúdos dados à consciência a outros conteúdos que não são dados. A questão da produção de “conhecimento” por meio da inteligência artificial, em uma forma de cálculo, traz a problemática da perigosa alienação na técnica trabalhada por Husserl, em seus textos reunidos sob a rubrica “Crise das Ciências (e Humanidade) Europeia(s)”, do final de seu percurso filosófico, já que há a construção de um universo simbólico apartado das evidências da intuição sensível, a qual está impossibilitada de ser produzida por uma máquina. A ciência se descola do mundo da vida, do mundo vivido, da vivência mundana, e logo, de nós seres humanos.

Na modernidade ocorre o distanciamento dos fundamentos do saber antigo e medieval, de cunho aristotélico. Não distinguimos mais o que é forma e matéria, eficiência e finalidade, estando todas reduzidas a uma só causa, a causa formal. Para ter acesso ao conhecimento e o poder de dominar as coisas e assim influenciar o curso do universo, tem-se que adotar uma postura que não é mais a clássica, antiga ou medieval, objetiva, mas, sobretudo, formalista. A causa eficiente que permanece apenas como única na modernidade é aquela que leva ao formalismo.

O mais recente uso da inteligência artificial refere-se ao controle da pandemia do Coronavírus, quanto ao cumprimento pela população de medidas de quarentena, bem como ao monitoramento do surto e à aceleração de testes de medicamentos, envolvendo a área da vigilância global de doenças. Diversos países, tais como China, Coreia do Sul e EUA conseguem antecipar possíveis áreas de contaminação utilizando-se da localização de smartphones para verificar se as pessoas estão seguindo as diretrizes governamentais no tocante à quarentena e ao isolamento social. A Europa prevê a utilização do rastreamento Pan-Europeu de proximidade e preservação da privacidade (PEPP=PT) por meio da utilização de smartphones para o monitoramento da propagação do vírus e o cumprimento de ordens de quarentena. No Brasil, as operadoras de telecomunicação estão atuando em conjunto com o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), afirmando a preservação do anonimato dos clientes, com destaque para Rio de Janeiro, Recife e São Paulo, no que se refere ao mapeamento de dados de geolocalização, criando-se sistemas de monitoramento inteligente, com acesso irrestrito às informações georreferenciadas de mobilidade urbana em tempo real. Em artigo publicado no site do Jornal Estadão [1], Ricardo Campos, Juliana Abrusio e Juliano Maranhão destacam a diferença na utilização de aplicativos utilizados no programa de monitoramento do cidadão desenvolvidos na Áustria e Alemanha, com destaque para os aplicativos dos Institutos Robert Koch (RKI) e Heinrich Hertz (HHI) da Alemanha em comparação com aqueles de Singapura e China, no que se refere à proteção de dados pessoais, ressaltando a importância do respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos, sob pena da crise sanitária se tornar uma crise democrática, e o prenúncio do um estado de exceção.

A crise sanitária é indissociável da discussão de questões eminentemente éticas, em especial no tocante à triagem e ao momento apropriado para a suspensão do confinamento social. Tal crise se relaciona com a crise ecológica e somente poderá ser resolvida com a realização de reformas estruturais imprescindíveis, como o aumento da proteção ambiental, a redução do aquecimento global, a proteção da Amazônia, a reorganização da economia global de forma independente dos mecanismos de mercado, a melhora da condição de vida da população em estado de vulnerabilidade, a redução do consumismo desenfreado, e a criação e impostos realmente progressivos, e do imposto sobre grandes fortunas.

Habermas, no artigo Fios do tempo. Precisamos agir como o saber explícito do nosso não saber (publicado no site Ateliê de humanidades e no Le monde, de 11.04.2020), ressalta a questão ética acerca da escolha trágica, a ser realizada pelo médico ou por meio da inteligência artificial, entre uma vida e outra, no caso da pandemia do covid, ressaltando, outrossim, que a restrição de um grande número de importantes direitos à liberdade jamais poderá perdurar no tempo, devendo haver uma duração muito determinada.

A utilização da inteligência artificial no combate a pandemias, bem como a determinação de quarentena e isolamento social de forma obrigatória envolvem necessariamente a análise do conflito de direitos fundamentais, envolvendo, pois, a ponderação via princípio da proporcionalidade, dando ensejo à possibilidade de ser instaurado, nos dizeres do jurista alemão, Carsten Bäcker, de um “estado de exceção discursivo” [2].

No entender de Byung-Chul Han (O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã, El pais) os países asiáticos estão lidando melhor com tal crise do que o Ocidente, já que trabalham com dados e máscaras. Estados asiáticos como Japão, Coreia, China, Hong Kong, Taiwan e Singapura possuem uma mentalidade coletivista e respeitosa à autoridade, de inspiração confucionista, o que facilita a obediência pela população, apostando, sobretudo na vigilância digital (big data), sem qualquer quase consciência crítica, seguindo-se a dinâmica de uma biopolítica digital, uma nova forma de soberania.

Byung-Chul Han destaca, outrossim, a reação desproporcional e desmedida do pânico desatado pela nova pandemia, majorado pela digitalização por eliminar a realidade, suprimindo a negatividade da resistência, surgindo uma apatia frente à realidade, sendo esta uma reação imunitária social e global face ao novo inimigo. Trata-se do desdobramento da crise automunitária que já temos anunciado desde há tempos, como na tese de filosofia do direito que defendemos em 2017 na Università del Salento (Itália), intitulada “Princípio da Proporcionalidade como resposta à Crise Autoimunitária do Direito”, desenvolvendo ideias avançadas em congressos e publicações desde a década anterior por Willis Santiago Guerra Filho, em diversas ocasiões, no Brasil e também, com anterioridade, no exterior.

Na era da biopolítica digital o conhecimento é definido como conhecimento para o mercado, sendo este o mecanismo principal de validação da verdade. Os mercados se transformam cada vez mais em estruturas e tecnologias algorítmicas, considerando como o único conhecimento útil o algorítmico, donde a conclusão de Byung-Chul Han, de que agora o soberano é aquele que dispõe de (e sobre os) dados.

O estado de exceção, como é bem notório, foi trabalhado em diversos livros pelo filósofo italiano G. Agamben, o qual em dois recentes artigos, La invención de uma epidemia e Contagio (publicados respectivamente em 11.03.2020 e em 26.02.2020, livro “Sopa de Wuhan”, editorial ASPO, 2020) associa tal questão à atual pandemia do coronavírus, por terem sido adotadas medidas excepcionais de emergência pelo governo italiano, trazendo ele também um alerta acerca da possível desproporcionalidade das medidas tomadas, afirmando a presença de um estado de exceção generalizado. Em suas palavras: “É perigoso aceitar qualquer limitação da liberdade em nome da segurança (Jornal La Repubblica, 24.11.2015), típico dos estados de exceção que não seriam estados de direito, mas um estado de controles cada vez mais generalizados”. Em tal estado, o pacto social se altera, cria-se um pânico generalizado e uma situação de stress permanente, permitindo que as pessoas abram mão de sua liberdade sem qualquer limite.

A resolução 1-2020 da CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos denominada “Pandemia y derechos humanos em las Américas” de 10.04.2020 destaca o princípio da proporcionalidade como forma de evitar a generalização do estado de exceção em tempos de pandemia, ressalvando sua limitação temporal e a obrigatoriedade de observância do princípio da proporcionalidade em seus três sub-princípios, proporcionalidade em sentido estrito, adequação e necessidade (item 21). Enfatiza que o estado de exceção cumpra e respeite os direitos humanos (item 20).

Ocorre aqui uma contradição ou paradoxo, pois o estado de exceção se caracteriza justamente por ser contrário ao Estado de direito, o qual pressupõe o respeito aos direitos fundamentais. O importante é nos assegurarmos da limitação no tempo de eventual concretização do estado de exceção e das limitações necessárias quando da suspensão ou restrição de direitos fundamentais, com base nos três subprincípios da proporcionalidade, em especial tendo-se em vista o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, que em nosso entender, alinhado com aquele de Willis Santiago Guerra Filho, diverso de autores que se consagraram tratando do assunto, como Robert Alexy, determinaria que tal limitação ou restrição jamais possa ocorrer, não importa o quanto resulte em benefício para outro princípio ou direito fundamental, a ponto de ferir o núcleo essencial de todo direito fundamental e, porque não dizer, de todo verdadeiro Estado Democrático de Direito, a saber, a dignidade humana.

 


Referências:

[1]https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/covid-19-como-promover-a-saude-publica-e-proteger-a-privacidade/
[2] https://verfassungsblog.de/corona-in-karlsruhe/

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