sexta-feira,29 março 2024
ColunaElite PenalInjúria racial à luz da Lei 14.532/23

Injúria racial à luz da Lei 14.532/23

Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia aposentado, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia e Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós – graduação e cursos preparatórios.

1-INTRODUÇÃO

Neste texto será estudada a Lei 14.532/23, que altera o tratamento legal da chamada “Injúria Racial” e também o crime de Apologia ao Racismo, previsto na Lei 7.716/89, afora outros subtemas.
Um breve histórico do tratamento legal e jurisprudencial dado à questão da Injúria Racial será exposto, seguindo-se uma determinação terminológica para adentrar com mais segurança na discussão das alterações promovidas e do quadro jurídico – penal que agora se desenha.
Ao final, os principais pontos discutidos serão retomados em apresentação de uma síntese conclusiva.

2-BREVE HISTÓRICO DA INJÚRIA RACIAL NA LEI E NA JURISPRUDÊNCIA

O crime de Injúria é previsto em nosso Código Penal dentre os “Crimes Contra a Honra” desde 1940. Inicialmente não havia uma distinção para ofensas proferidas em razão de preconceito de qualquer natureza.
Já o tema do racismo ganha sua primeira previsão legal de repressão com a conhecida “Lei Afonso Arinos” (Lei 7.437/85). Entretanto, as condutas ali previstas eram consideradas meras “Contravenções Penais” (vide artigo 1º. do diploma).
Vale lembrar que o Brasil, no cenário internacional, aderiu à “Convenção Internacional Sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial” assinada em 1966 e ratificada por intermédio do Decreto 65.810/69, de forma a internalizar suas normas em nosso arcabouço jurídico.
Com o advento da Constituição Federal de 1988 e o estabelecimento como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil da busca pela “promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (artigo 3º. IV, CF), decorre expressa condenação ao racismo e, mais que isso, a determinação de que seja “crime” inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão (artigo 5º., XLII, CF).
Embora até hoje a Lei Afonso Arinos não tenha sido revogada expressamente, é evidente que a partir de 1988 não estava devidamente recepcionada pela Constituição Federal. Pode-se dizer que no que tange ao combate aos preconceitos em geral e ao racismo em particular havia coerência entre aquela lei ordinária e a Constituição. Mas, não se sustentava mais o tratamento do racismo como mera “Contravenção Penal” com pena de “Prisão simples”. Afinal, a Lei Magna determinava que o racismo deveria ser erigido a “crime” com pena de “reclusão”. Havia um óbvio descompasso entre o “Mandado Constitucional de Criminalização” e a Lei Afonso Arinos.
É nesse contexto que se elabora e aprova a Lei do Racismo, também conhecida como “Lei Caó” (Lei 7.716/89).
No ano de 1997 ocorre uma primeira situação em que a injúria se mescla com a questão do racismo. A Lei 9.459/97 aumenta o rol protetivo da Lei 7.716/89 que, inicialmente, somente se referia aos “preconceitos de raça e cor”, para adicionar motivações de “etnia, religião e procedência nacional”. Além disso, deu nova redação mais abrangente ao artigo 20 da Lei do Racismo, que trata do crime de “Apologia ao Racismo”. Também alterou o Código Penal para incluir no crime de injúria uma forma qualificada referente a ofensas envolvendo preconceito ou raça, a conhecida “Injúria – Preconceito ou Injúria Racial”, prevista no artigo 140, § 3º., CP.
No seguimento, vem o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03) e inclui no § 3º., do artigo 140, CP, além das ofensas ligadas aos preconceitos de raça, cor, etnia, religião e origem, também as questões relativas a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.
O crime de Injúria Racial inicialmente, tal qual todos os demais crimes contra a honra era, em regra, de ação penal privada (inteligência do artigo 145, CP). No entanto, com o advento da Lei 12.033/09, a ação penal passou a ser pública condicionada à representação do ofendido, dando-se nova redação ao artigo 145, Parágrafo Único, CP.
O consenso inicial sobre a questão da “Injúria Racial” era o de que não se tratava de um crime de racismo, mas de um crime contra a honra qualificado, já que não previsto na Lei 7.716/89 e sim no Código Penal, sendo fato que a legislação responsável pela criação de tal figura (Lei 9.459/97) poderia perfeitamente a ter incluído na Lei do Racismo e optou por sua alocação como uma espécie de “Injúria Qualificada”.
Contudo o STJ proferiu decisão polêmica a respeito da chamada “Injúria Racial”, promovendo, embora de maneira isolada na época, sua equiparação ao “Crime de Racismo”.
A E. Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, contra a doutrina e a jurisprudência absolutamente dominantes na ocasião, que o crime de Injúria Racial ou Injúria Preconceito, previsto no artigo 140, § 3º., CP seria uma modalidade de “crime de racismo”, tal qual os crimes previstos na Lei 7.716/89.
É preciso dizer que naquela ocasião e diante do quadro legal existente, pretender equiparar, em conduta de ativismo judicial, a injúria racial a crime de racismo, não elencado na Lei 7716/89 foi uma flagrante violação ao Princípio da Legalidade e uma manifestação de analogia prejudicial ao réu, inviável no Estado Democrático e de acordo com os mais comezinhos princípios do Direito Penal hodierno. Além disso, criava uma espécie de quimera autofágica em que um crime considerado imprescritível poderia ter sua extinção de punibilidade decretada devido ao fenômeno jurídico da decadência, considerando que a “Injúria Racial” era crime de ação penal pública condicionada.
Não obstante tudo isso, fato é que a questão chegou ao STF. Houve um HC n. 142.583/DF e um ARE 983.531/DF, ambos de relatoria do Ministro Roberto Barroso, além de outro HC n. 130.104/DF, este de relatoria da Ministra Carmen Lúcia. Em todos os casos o STF não entrou no mérito da questão. Apenas foi afirmado tratar-se de problema atinente à violação indireta à constituição por via de norma ordinária, sendo então impossível alterar a decisão do STJ, que seria a corte competente para a palavra final do caso. Percebe-se que, mesmo sem entrar no mérito, acaba o STF corroborando a decisão, a nosso ver equivocada, do STJ. Considera-se lamentável que o chamado “Pretório Excelso” tenha perdido por três ocasiões, a chance de se manifestar conclusivamente sobre tal tema, consignando sua posição sobre ser ou não a injúria racial um crime de racismo. De qualquer forma, embora se enxergue uma “evasão” do tema nas decisões, é preciso ressaltar que o Ministro Barroso acaba, em uma passagem, dando seu aval ao entendimento do STJ. Senão vejamos:
Não cabe, na via do recurso especial, a análise de suposta violação de artigos da Constituição Federal. De acordo com o magistério de Guilherme de Souza Nucci, com o advento da Lei n. 9.459/97, introduzindo a denominada injúria racial, criou-se mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão (ARE 983.531/DF).
Assim sendo é de se concordar com as manifestações de Ribeiro e Goulart ao afirmarem que
Consoante disciplina o Código Penal, a pretensão punitiva da injúria racial prescreve em 08 (oito) anos (art. 109, IV, Código Penal). Todavia a lei penal sofreu violenta agressão com a decisão do Superior Tribunal de Justiça do Agravo em Recurso Especial 686.965 (DF 2015/0082290-3), decidindo ser o crime de injúria racial imprescritível, ratificada recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a admissibilidade do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo 983.531, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, da Primeira Turma.
Considerando que o Supremo Tribunal Federal, diante da natureza e rigidez do recurso interposto, limitou-se a um provimento jurisdicional eminentemente processual, a convalidação da decisão do Superior Tribunal de Justiça, que considerou imprescritível o crime de injúria racial, não ocorreu em razão da análise meritória pela Corte Suprema, mas tão somente pela inadmissibilidade do recurso, mantendo, desta forma, inalterada a decisão do STJ.
Os autores em comento discordam veementemente e apresentam sérios argumentos contrários à decisão proferida pelo STJ. Para Ribeiro e Goulart “a injúria racial é prescritível” e a decisão do STJ “ocorreu de forma equivocada”, inobservando “os regramentos mínimos que norteiam a instrumentalização do Direito Penal”. Também destacam que a questão da imprescritibilidade e da natureza do crime de injúria racial não chegou a ser enfrentada de forma substancial pelo STF, mediante uma injustificada esquiva em relação à necessária análise de questão de “ordem pública e constitucional” que diz respeito à prescrição, ocasionando “espanto e desconforto jurídico”. Em suma, o STF, naquelas ocasiões, perdeu grande oportunidade de dar ao caso a necessária segurança jurídica, em nossa opinião, firmando o caráter de crime contra a honra e não crime de racismo com relação à injúria racial, isso de acordo com o quadro legal então vigente.
Porém, é de ressaltar que, posteriormente, no HC 154.248/DF, o Ministro Edson Fachin denegou ordem de Habeas Corpus, reconhecendo explicitamente a imprescritibilidade do crime de injúria racial, bem como sua condição de crime de racismo. Além disso, em data de 28.10.2021, em negativa de HC de relatoria do mesmo Ministro Edson Fachin, a tese da imprescritibilidade e caráter de racismo da injúria – preconceito foi firmada, desta feita com “repercussão geral”, o que, ao menos jurisprudencialmente, acaba com qualquer discussão. Dessa forma, embora se discordasse fortemente desse entendimento jurisprudencial, especialmente tendo em vista a infração à Separação de Poderes e ao Princípio da Legalidade, com a criação de norma penal via jurisprudência, é preciso reconhecer que se estruturou entendimento tanto no STJ como no STF no sentido de que a injúria qualificada pelo preconceito constitui um crime de racismo.
Finalmente, o Congresso Nacional editou a Lei 14.532/23 (oriunda do PL 1749/15, renumerado como PL 4566/21), alterando a Lei do Racismo com a inclusão do artigo 2º. – A que transplanta a “Injúria Racial” do artigo 140, § 3º., CP para a Lei 7.716/89. Essa alteração na legislação resolve a questão da violação do Princípio da Legalidade. Agora, como deve ser, é a lei que estabelece que a injúria com elementos raciais em sentido amplo constitui um dos crimes de racismo. A situação anterior era absurda, para dizer o mínimo, já que tínhamos uma normatização de caráter penal de grande monta produzida via jurisprudência. Infelizmente esse período tenebroso sob o ponto de vista técnico e de garantias penais irá ainda hoje exercer influência na interpretação de aplicação dos novos dispositivos, como veremos ao longo deste trabalho.

3-UM ESCLARECIMENTO TERMINOLÓGICO

Concedendo os créditos a quem os merece como não pode deixar de ser até mesmo por questão de justiça, honestidade intelectual e metodologia científica, abordar-se-á neste tópico uma distinção conceitual, ou melhor dizendo, terminológica apresentada pelos autores Francisco Sannini e Bruno Gilaberte. Trata-se da individualização de termos que usualmente são empregados de forma indiferenciada no trato da questão do racismo, mas que, na verdade, têm conteúdos e natureza diversificados entre si. São eles “preconceito”, “discriminação” e “segregação”.
Nada melhor do que começar pela palavra original dos autores:
Um parêntese conceitual: embora muitas vezes usemos os termos preconceito, discriminação e segregação de forma livre, sem preocupação com seu correto conteúdo, eles são diferentes entre si. Por preconceito (do qual o racismo é uma espécie), entenda-se a opinião negativa e desapegada da realidade sobre uma pessoa ou um grupo de pessoas; a discriminação, ao seu turno, é a ação. Uma discriminação pode ser positiva (no caso de ações afirmativas, por exemplo), mas, quando negativa, será determinada por um preconceito. A Lei 7.716, em dispositivo incluído pela Lei 14.532, estabeleceu parâmetros para o reconhecimento das formas de discriminação por ela incriminada. Segregação, por fim, é uma forma de exclusão, de criação de barreiras físicas ou sociais que impedem o livre exercício de direitos. Assim, não é desarrazoado falar-se em “racismo discriminatório” ou em “racismo segregatório”, a fim de distinguir as hipóteses.
Em suma, o preconceito tem morada no mundo das ideias e dos sentimentos, é um estado de espírito (“de porco” como se diz popularmente). A discriminação consiste em atos e omissões (condutas efetivamente) que, em seu aspecto negativo, irão prejudicar determinadas pessoas ou grupos. Essas condutas de discriminação consistem basicamente em formas ou regras de tratamento opressivas e excludentes. Finalmente, a segregação consiste na separação, na imposição de obstáculos físicos ou sociais, impedindo a integração da pessoa, sua inclusão na vida comum em sociedade. São exemplos históricos de segregação radical os guetos nazistas, o apartheid na África do Sul, os “Dalits” ou “Intocáveis” das castas indianas etc.
Pode-se afirmar que embora os termos acima mencionados tenham significados e conteúdos diversos, geralmente atuam em uma simbiose maligna. O “preconceito” é a raiz de uma árvore tortuosa da qual podem brotar os frutos venenosos da “discriminação negativa” e da “segregação”. Essa ordem simbiótica obedece o que se poderia chamar de uma “lei” no âmbito sociológico, histórico e político, qual seja, nada do que se apresenta como conduta, evento ou acontecimento se produz sem antes ter surgido no mundo das ideias e dos sentimentos humanos.
Partindo dessas distinções terminológicas é possível dizer que na realidade as condutas previstas na Lei do Racismo configuram, conforme sublinham Sannini e Gilaberte, “Racismo Discriminatório” e “Racismo Segregatório”. O racismo em sua forma de “preconceito” normalmente será o alimento ou combustível para as condutas incriminadas, de modo a se situar no “iter criminis” como “cogitação” (“Cogitatio”). O Direito Penal pune condutas e não pensamentos ou sentimentos internos. O “preconceito”, portanto, enquanto mantido em foro íntimo, sem consequências no mundo externo, pode, no máximo, ser atingido pela repulsa moral.

4-O NOVO TRATAMENTO LEGAL DA INJÚRIA RACIAL

A Lei 14.532/23 altera não somente a topografia da “Injúria racial” como também o conteúdo do tipo penal.
Agora aquilo que era somente previsto no artigo 140, § 3º., CP passa a ser dividido entre essa anterior normatização e o novel artigo 2º. – A da Lei 7.716/89.
A redação dos dispositivos fica assim:

Art. 2º. – A. Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa (Lei 7.716/89).
Art. 140, § 3º. Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa (Código Penal Brasileiro).

Note-se que a transposição da “Injúria Racial” para a Lei do Racismo não foi completa. Quando a injúria se referir a “raça, cor, etnia ou procedência nacional” será aplicado o artigo 2º. – A da Lei 7.716/89. No entanto, se a injúria consistir em ofensas ligadas à “religião” ou “condição de pessoa idosa ou com deficiência”, a aplicação será do artigo 140, § 3º., CP.
Não por outro motivo, Costa, David e Bretz oportunamente sugerem que se passe a usar o “nomen juris” “Injúria Racista ou Racial” para o artigo 2º. – A da Lei 7.716/89 e a terminologia “Injúria Preconceito” para o artigo 140, § 3º., CP.
A nosso ver essa transposição parcial não somente não se justifica sob o critério da proporcionalidade e isonomia, como também somente vem para ocasionar dúvidas, questionamentos, enfim, mais insegurança jurídica.
Considerando que ao injuriar alguém por qualquer dos elementos mencionados nos dispositivos acima transcritos se está conferindo tratamento negativo à vítima, configurando-se, em qualquer caso uma situação de “Racismo Discriminatório”, não existe motivo plausível para um tratamento diferenciado entre os casos. Não há razão para que as penas sejam diversas, maiores para, por exemplo, uma ofensa relativa à cor e menores para outra ofensa relativa à religião e assim por diante. Afora isso, não há motivo para que legalmente certas discriminações perpetradas por ofensas verbais sejam alocadas na legislação de racismo, com um valor simbólico muito mais intenso, enquanto outras discriminações tão repulsivas quanto as demais permaneçam no Código Penal, na legislação comum, como numa “vala comum”, passando uma mensagem igualmente simbólica de menoscabo.
A crítica de Botelho a essa opção legislativa tresloucada é severa:
Não custa nada lembrar por fim, que mais uma vez o desatento legislador brasileiro pratica uma brutal discriminação contra algumas categorias da sociedade brasileira, ao enquadrar tão somente como racismo as violações referentes aos elementos de raça, cor, etnia ou procedência nacional, deixando de escanteio as importantes questões referentes à liberdade religiosa, condição de pessoa idosa ou com deficiência.
Não custa nada perguntar; noutra seara, perguntar não ofende: será que alguém de procedência estrangeira é mais importante que a liberdade religiosa, ou condição de pessoa idosa ou com deficiência? Releva ainda afirmar que o legislador violou com pena de morte o princípio da proporcionalidade ao criar uma reprimenda menor a quem pratica crime de injúria racial contra a pessoa em razão de sua opção religiosa ou condição de pessoa idosa ou com deficiência. Pobre do legislador, inconsequente, negligente, deitado em berços esplêndidos que mais uma vez presta um insofismável e inexorável desserviço à sociedade brasileira.

Também chamam a atenção para esse aspecto, especialmente quanto à injúria religiosa, Costa, David e Bretz:
A Lei 9.459/97 incluiu as circunstâncias de etnia, de religião e de procedência nacional na definição de injúria racial (artigo 140, §3º do CP); contudo essa lógica foi abandonada parcialmente na novel redação do artigo 2º-A.
O legislador cometeu o equívoco de permitir que a discriminação religiosa remanesça no crime de injúria preconceito, não sendo transportada para o novel artigo 2º-A.
Essa decisão chama a atenção pois a discriminação religiosa — em todas as suas facetas — foi pano de fundo de uma das atrocidades da história da humanidade. O holocausto se originou das entranhas da intolerância religiosa, enraizando-se, gradualmente, na sociedade, com a permissividade de grupos de interesse oportunistas que, almejando proveitos pessoais, promoveram atos de extirpação de incontáveis vidas. E, no Brasil, o debate sobre o antissemitismo foi objeto de case do STF (HC 82.424) no qual se reconheceu o racismo religioso.
É realmente algo que causa intensa perplexidade ver surgir uma legislação de combate ao racismo que deixa de lado a questão do “racismo religioso”, especialmente após as atrocidades nazistas e comunistas perpetradas no século XX e que ainda seguem em ação, seja no plano ideológico e até mesmo prático.
O antissemitismo sob seu aspecto religioso jamais poderia ser olvidado numa legislação moderna, assim como a história milenar da “Cristofobia”, perseguição a religiões afrobrasileiras, discriminações de vários matizes contra evangélicos etc.
Os autores acima citados, diante desse quadro assustador, tentam apontar uma possível motivação para a exclusão do “racismo religioso” da Lei 7.716/89:
De outro turno, a decisão legislativa de não potencializar o status da injúria religiosa pode ter se dado para não criminalizar de forma mais ampla o proselitismo religioso, vez que o STF inclusive já reconheceu sua licitude (ROHC nº 134.682/ BA), permitindo-se que adeptos de uma religião busquem o resgate religioso de integrantes de outras religiões ou seitas.

É indiscutível que o proselitismo religioso jamais pode ser incriminado, pois parte integrante e indissociável do Direito de Liberdade Religiosa. É da natureza das religiões a certeza subjetiva do adepto de que aquela religião por ele seguida é a única correta e, especialmente, que contém a Verdade. Incriminar o direito a essa crença pessoal e sua defesa seria mutilar ou mesmo aniquilar a liberdade religiosa.
Dentre as várias modalidades do conhecimento humano, podem-se destacar quatro: Ciência, Filosofia, Lógica Matemática e Religião. Pois bem, a Lógica Matemática, dado seu nível de elevada abstração não se presta a valorações subjetivas de “certeza”, mas apenas de “exatidão” e “correção”. A Ciência e a Filosofia não admitem a “certeza” em geral ou uma noção de “Verdade” indiscutível. Ao reverso, esses ramos do conhecimento humano têm como elemento constitutivo o constante confrontamento de ideias e a possibilidade de contraditar qualquer proposição. Diversamente, o conhecimento religioso é diretamente ligado ao estado subjetivo de “certeza” e ao conceito dogmático e absoluto de “Verdade”. É somente no âmbito religioso que o pensamento e a ação humanos têm a pretensão e a convicção da posse da “Verdade”. Isso é dito para deixar claro que o tratamento do “racismo religioso” na Lei do Racismo não poderia jamais tocar na convicção e no proselitismo, na possibilidade de que uma religião, por meio de seus adeptos, contrastasse fortemente outras religiões, é claro que sem o emprego de violência ou ofensas gratuitas que se desviem da defesa de suas crenças e convicções e da negação de outras diversas. Assim sendo, não nos parece ser justificável o afastamento do “racismo religioso” pela Lei 14.532/23 da Lei 7.716/89.
Ainda reforçando a crítica dessa paradoxal “discriminação” injusta causada pela própria Lei 14.532/23 que, em tese, pretende combater as discriminações negativas, vale mencionar o escólio de Sannini e Gilaberte:
Essa divisão entre injúria por preconceito e injúria racial cria uma situação de desproporcionalidade, especialmente no tocante ao preconceito religioso. O art. 1º da Lei 7.716 iguala, para fins de aplicação do diploma, o preconceito e a discriminação por motivos de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional. Em quase todos os tipos penais da lei essas espécies de preconceito são igualadas. A ruptura promovida pelo art. 2º-A, faz com que se puna a injúria de raça, cor, etnia ou procedência nacional com uma pena de reclusão, de 2 a 5 anos, ao mesmo tempo em que, à injúria religiosa, fica reservada a sanção anterior, de reclusão de 1 a 3 anos. Ou seja, provoca-se uma desequiparação injustificada.
Qual é a solução para essa perplexidade?
(A) Reconhecer-se a inconstitucionalidade da manutenção da injúria religiosa no art. 140, § 3º, do CP, usando o art. 1º da Lei 7.716 para integrar a norma do art. 2º-A (soluciona-se o problema da proporcionalidade, mas cria-se uma possível afronta à legalidade);
(B) a manutenção da atual dicotomia, o que implica vício de proporcionalidade.
Ou seja, não há uma solução totalmente satisfatória.
É preciso, no entanto, destacar que não é possível, sem reforma legal, pretender superar a violação à proporcionalidade com a aplicação da pena mais gravosa da Lei 7.716/89 para as figuras que foram esquecidas no artigo 140, § 3º., CP, pois isso violaria terrivelmente o “Princípio da Legalidade das Penas” (“nulla poena sine praevia lege” – “não há pena sem prévia lei”) e da vedação de analogia “in mallam partem”. Infelizmente a divisão terá de ser mantida enquanto não houver alteração na lei. E a única forma de aplicar dentro dos princípios que regem o Direito Penal Moderno a proporcionalidade, seria mediante o uso da pena menor, prevista no artigo 140, § 3º. CP nos casos do artigo 2º. – A, da Lei 7.716/89, já que se trataria de uma atuação informada pelo “Favor rei”. Enfim, nenhuma solução é ideal, salvo a reforma legal para corrigir esse erro crasso do legislador.
Na realidade, a nosso sentir, a Lei do Racismo deveria ser alterada, e se perdeu essa oportunidade agora, promovendo duas grandes guinadas essenciais:
1)Sem retirar o termo “Racismo” que embora tenha perdido seu significado científico (pseudocientífico) na atualidade, mantém importante face histórico – simbólica, seria mais correto alterar a ementa da legislação fazendo referência a toda e qualquer forma de “discriminação negativa” ou “segregação” por motivo de “preconceito”. Assim, os tipos penais da Lei 7.716/89 ganhariam abrangência e questões como a chamada homotransfobia que já levaram a mais uma violação da Separação dos Poderes e do Princípio da Legalidade, estariam solvidas. Ademais, quaisquer atitudes informadas pelo preconceito seriam passíveis de apenação, não sendo necessário o recurso de, a cada fenômeno social discriminatório negativo ou segregatório, haver alteração legal ou, pior, ativismo judicial violador da legalidade penal. Essa abrangência ampla da incriminação de discriminações negativas e segregações, ademais, estaria em plena consonância com o disposto no artigo 3º., IV, CF, que finaliza sua dicção demandando o combate, não a um ou outro preconceito casuisticamente enumerado ou “numerus clausus”, mas se referindo genericamente a “quaisquer outras formas de discriminação” (“numerus apertus”).
2)Sendo o Racismo considerado como uma conduta criminosa de alta gravidade (como não poderia deixar de ser), impõe-se uma revisão dos preceitos secundários dos tipos penais (penas). As penalidades previstas legalmente para os crimes de racismo são muito brandas, considerando a gravidade das infrações ali previstas. Há um laxismo penal violador da proporcionalidade com relação à proibição de insuficiência protetiva.
Saliente-se que mesmo a passagem legal da “Injúria Racial” para a Lei de Racismo, ainda que procedida na sua totalidade e de acordo com o devido processo legislativo, não nos parece a melhor medida, sendo que a antiga e tradicional distinção entre crimes de racismo e mera injúria era um modelo muito mais racional e proporcional. Essa atual alteração se movimenta em apelos emocionais marcados pelo politicamente correto, afastando a cientificidade do Direito e permitindo sua substituição pela política rasa e influências midiáticas abaixo da mediocridade. Nesse passo, é preciso lembrar com Penn que mesmo homens plenos de conhecimento podem ser instrumentalizados por outrem sem sequer perceberem. Em suas palavras de sabedoria:
O conhecimento é o tesouro, mas o julgamento é o tesoureiro de um homem sábio. Aquele que tem mais conhecimento do que julgamento, é feito para o uso de outro homem mais do que para o seu.

Antes da alteração legal o que se criticava duramente era um ativismo judicial indevido, violador inclusive da divisão de poderes e da legalidade penal. Isso porque, se for verdade que a punição da injúria racial, que diferia amplamente do artigo 20 da Lei 7716/89, como crime contra a honra e não como crime de racismo, se constituía em uma espécie de inconstitucionalidade por deficiência protetiva, então o caminho não seria que o Judiciário se arvorasse, como o fez, em legislador, procedendo a uma interpretação construída com analogia prejudicial ao réu. O caminho era a proposta de “lege ferenda” para alteração do quadro legislativo, revogando-se o § 3º., do artigo 140, CP e transplantando o ilícito para o bojo da Lei 7716/89. Aí sim, então, a injúria racial tornar-se-ia, legitimamente, um crime de racismo com todas as consequências correlatas. Foi o que se processou, ao menos parcialmente, com o advento da Lei 14.532/23.
Entende-se que mesmo essa reforma escorreita não seria o melhor caminho porque se trataria de uma reação violadora da proporcionalidade, onde a proclamada inconstitucionalidade por deficiência protetiva se converteria em inconstitucionalidade por excesso. Um mero xingamento verbal ou gestual direcionado a um indivíduo não se pode equiparar a crime de racismo dentro de um mínimo de razoabilidade e proporcionalidade. Afirmar isso não é defender quem assim atua, mas deixar claro que a reação penal tem de ser adequada à gravidade da ofensa, sob pena, inclusive, de banalizar o que se entende por efetivo “racismo”.
Há inclusive quem na doutrina entenda que a punição especial da injúria racial já violava e em parte continuaria violando, naquilo que lhe restou com a reforma, a proporcionalidade se comparada sua pena prevista com a de outros crimes como um homicídio culposo, aborto consentido, crimes de perigo individual etc. Damásio dá o exemplo daquele que ofende alguém de “alemão batata” e recebe pena idêntica àquele que mata um feto ou pena menor do que aquele que mata alguém culposamente.
Pode-se afirmar, portanto, que a anterior conduta ativista judicial do STJ e do STF foi equivocada e equiparou condutas que não são equiparáveis dentro do quadro legislativo da época. E mais, que não deveriam mesmo ser equiparadas, ainda que obedecendo a um processo legislativo adequado, conforme em parte se fez com a Lei 14.532/23.
Sannini e Gilaberte chamam a atenção para o fato de que a inclusão da “Injúria Racial” na Lei 7.716/89 pela Lei 14.532/23 criou um problema grave de proporcionalidade, com a previsão de uma pena maior para uma mera injúria do que para os tipos penais de “racismo discriminatório e segregatório” previstos no mesmo diploma. Isso certamente é uma prova da atuação de um “Direito Penal Simbólico”, movido pela influência midiática e do politicamente correto, que acaba conturbando o sistema jurídico em sua estrutura sistemática. Veja-se a lição dos autores:
Além daquilo que já foi mencionado, há outros problemas de proporcionalidade na alteração legislativa. Vejamos: a injúria racial prevista na Lei 7.716, consistente numa ofensa à vítima, é punida com reclusão de 2 a 5 anos. Já a conduta recusar ou impedir o acesso a estabelecimento comercial, por exemplo, que tem evidente caráter segregador, é punida com reclusão de 1 a 3 anos. Entretanto, a forma mais grave de racismo é aquela que segrega, ou seja, que limita direitos e liberdades públicas por razões de discriminação ou preconceito. É evidente que ao ofender uma pessoa por motivos de cor, por exemplo, o agente também promove o racismo, mas de forma menos significativa daquele que se recusa a atender uma pessoa em um restaurante pelo simples fato de ela ser negra.

Seja como for, “legem habemus” e é preciso prosseguir em sua análise detida.
Uma alteração que chama a atenção é que no artigo 2º. – A da Lei do Racismo a ofensa não mais é descrita como aquela que “consiste na utilização de elementos referentes a..”, como no artigo 140, § 3º., CP. No artigo 2º. – A, a ofensa deve se dar “em razão de…”. Significa dizer que no artigo 140, § 3º., CP se descrevia e continua descrevendo um “modus operandi” objetivo, o emprego de expressões discriminatórias, com “animus injuriandi”, a vontade de ofender a dignidade ou decoro de outrem, mas sempre com o emprego de expressões referentes à condição da pessoa contra a qual se tem algum preconceito. Já no artigo 2º.-A, o uso de expressões ou palavras discriminatórias ofensivas deve ser marcado por um elemento subjetivo, uma “motivação” racista, preconceituosa, discriminatória ou segregatória, não importando qual a expressão ou palavra utilizada, desde que o que tenha motivado o agente seja o racismo. É de se concluir que no artigo 2º. – A, da Lei 7.716/89 não mais se exige a ofensa com o emprego objetivo de expressões e/ou palavras relativas a raça, cor, etnia ou procedência nacional, basta que o impropério ou xingamento tenha se dado “em razão” de racismo. Quando se xingar uma pessoa negra, por exemplo, de salafrária, dever-se-á perquirir se isso se deu de forma genérica, como se faria com um branco ou se o xingamento derivou do preconceito racial. Em não havendo o preconceito o crime será o de injúria simples do Código Penal. Havendo o preconceito, mesmo sem o elemento objetivo de palavras ou expressões ligadas à cor, como por exemplo, “neguinho salafrário” (sic), o crime será o do artigo 2º. – A da Lei 7.716/89. É evidente que quando essas palavras ou expressões forem ditas será muito mais fácil aferir o dolo racista. Não havendo seu emprego a aplicação desse dolo racista será mais complicada em termos probatórios e, na dúvida, deverá ser afastado o crime da legislação especial, aplicando-se a injúria simples do Código Penal (“in dubio pro reo”).
Outra novidade é a previsão no Parágrafo Único do artigo 2º. – A da Lei 7.716/89 de uma causa especial de aumento de pena da ordem da metade em caso de concurso de agentes (se o crime for cometido por duas ou mais pessoas). A exacerbação punitiva se justifica pela potencialização da lesividade da conduta, considerando o número de sujeitos ativos. E esse aumento será aplicável não importando se um dos concorrentes é inimputável (v.g. doente mental sem discernimento ou menor de 18 anos). A lei prevê o aumento devido ao concurso de duas ou mais “pessoas”, não importando sua imputabilidade, bastando que sejam “pessoas”. Um detalhe: se o concorrente for menor de 18 anos, este responderá nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) por ato infracional correlato. Por seu turno, o maior que com ele atuou responderá, pelo crime de racismo majorado pelo concurso de agentes e também pelo crime de “Corrupção de Menores” (artigo 244 – B, ECA) em concurso formal de infrações.
Por derradeiro uma pergunta se impõe:
Embora os casos de discriminação injuriosa religiosa, etária e capacitista permaneçam no artigo 140, § 3º., CP com penas menores, ainda seria defensável a tese de que constituem “crime de racismo” excepcionalmente previsto fora da Lei 7.716/89?
Responderemos essa questão em item próprio mais adiante neste texto.

5-OUTROS AUMENTOS DE PENA DA INJÚRIA RACIAL E DOS DEMAIS CRIMES DE RACISMO DA LEI 7.716/89

Além da majorante especial prevista para o crime de “Injúria Racial” (artigo 2º. – A, Parágrafo Único da Lei 7.716/89), a Lei 14.532/23 trouxe ao cenário outras causas de aumento de pena gerais, aplicáveis, portanto, não somente à “Injúria Racial”, mas a todos os demais crimes da Lei de Racismo.

5.1-DO RACISMO RECREATIVO
O artigo 20 – A prevê aumento de pena da ordem de um terço até a metade, quando os crimes de racismo “ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação”.
Houve muita reação a essa disposição legal, considerando que pode funcionar como um entrave à liberdade artística dos humoristas. E realmente pode se tornar um terrível instrumento de cerceamento a essa categoria e às pessoas em geral, dependendo do alcance interpretativo que seja conferido ao dispositivo. Infelizmente, a prognose é que haja mesmo uma aplicação marcada pela influência midiática, ideológica e politicamente correta, tornando-se o dispositivo um instrumento de opressão.
No entanto, o correto entendimento acerca dessa causa de aumento de pena é que somente pode ser considerada quando o intuito recreativo ou humorístico não seja real, mas uma espécie de pretexto ou subterfúgio para a prática velada de racismo. Ou seja, quando ficar nítido que a pessoa apenas finge ou afeta tom de brincadeira, mas o intuito é de ofensa, discriminação ou segregação. A análise do caso concreto deverá ser meticulosa, impedindo injustiças, inclusive em caso de dúvida (“in dubio pro reo”), exigindo-se muito cuidado até mesmo para a deliberação de instauração de procedimentos de investigação criminal ou, ainda pior, processos penais desarrazoados.
Pode-se fazer uma comparação com a chamada conduta “passivo – agressiva”, onde se ofende, humilha ou constrange de maneira dissimulada, irônica, sarcástica ou indireta.
Como bem esclarece Furtado:
Pessoas com comportamento passivo-agressivo possuem a habilidade de simular carinho quando no fundo desejam menosprezar, controlar ou ridicularizar. Normalmente não fazem elogios e quando fazem, a apreciação vem sempre acompanhada por uma frase desagradável que estraga a “boa intenção” inicial.
A agressividade ou ofensividade se manifesta de forma velada ou silenciosa, mas não deixa de existir. Nas palavras de Brum:
“A comunicação passivo-agressiva é uma forma de expressar sentimentos de raiva ou insatisfação de maneira silenciosa”. Acaso essa “raiva”, “ódio”, “insatisfação”, “repulsa” ou “preconceito” sejam manifestações furtivas ou evasivas de racismo com o uso do recurso da recreação como pretexto, estaremos diante da situação de “Racismo Recreativo”. Caberá ao intérprete e aplicador da lei cavar fundo para encontrar sob a camada recreativa ou jocosa o intento preconceituoso ofensivo.
Dessa forma esta causa de aumento de pena agora prevista para os crimes de racismo equivale, “mutatis mutandis”, ao emprego de “meio insidioso” como qualificadora do homicídio. É a conduta de agir de forma dissimulada, pérfida, acobertando os reais desígnios que justifica a maior reprovabilidade da conduta.
Sannini e Gilaberte muito bem descrevem essa situação, delineando a aplicabilidade do chamado “Racismo Recreativo” àquelas “manifestações preconceituosas travestidas de animus jocandi” (grifo nosso). Chamam ainda a atenção para o fato de que mesmo no caso de “meras brincadeiras” poderá haver responsabilização, mas desde que o agente “possua a consciência de seu conteúdo preconceituoso e potencialmente ofensivo”. Nesse passo acrescentamos que se não fosse assim, estaríamos diante de um quadro inviável de “Responsabilidade Objetiva” com violação direta ao disposto no artigo 19, CP. É ainda preciso destacar que a conduta será passível de ajuste ao artigo 20 – A em estudo somente se perpetrada em sua forma dolosa (dolo direto ou ao menos eventual). Não há previsão e nem deveria jamais haver, de conduta meramente culposa. Como concluem com correção os autores em destaque, essa consciência e intenção do agente que deve estar presente se constitui em uma manutenção “de um resquício de animus injuriandi” para autorizar eventual punição. Sem essa consciência de ofensividade não há crime e muito menos razão convincente para exacerbação penal nos termos do artigo 20 – A da Lei 7.716/89. E concluem os estudiosos:
Ademais, manifestações críticas, ainda que realizadas com bom humor, mas desapegadas de caráter preconceituoso ou discriminatório, jamais poderão ser consideradas criminosas, pois conferem plenitude ao direito fundamental à liberdade de manifestação do pensamento.
Sem essa necessária razoabilidade diversas questões polêmicas passariam a ser alvo de proibição no debate público, mesmo em casos de críticas formuladas em tom de humor ou brincadeira. Por exemplo, qualquer discussão acerca de cotas raciais, políticas relativas a povos originários, dissensos religiosos, políticas de migração e imigração ou de concessão de refúgio etc.
Observação também interessante é feita por Costa, David e Bretz quanto à equiparação no artigo 20 – A da Lei de Racismo entre um elemento objetivo (“contexto” recreativo) e um elemento subjetivo (“intuito” recreativo). Enquanto o primeiro se refere, por exemplo ao local ou circunstância (teatro, TV, rádio, festa, roda de amigos) o segundo se mostra como uma elemento intencional. Não obstante, em qualquer situação não se deve pensar que o intento ofensivo ou “animus injuriandi” é dispensável, elevando o “animus jocandi” a conformador de elemento subjetivo típico isoladamente, o que seria um rematado absurdo. Os autores defendem a necessidade de “coexistência” de dois dolos específicos, ao que chamam de “dolo específico ao quadrado”. Ou seja, há necessidade da presença do “animus injuriandi” que se tenta ocultar por um falso “animus jocandi” ou intuito recreativo.
Pode causar certa estranheza que a expressão utilizada tenha sido “dolo específico ao quadrado” e não simplesmente “dolo específico duplo” ou “dolo específico somado”. Isso porque se fizermos uma transdisciplinaridade com a matemática, na verdade o que se está exigindo é a presença de um dolo mais (adição) outro. São dois dolos somados. A operação não é de potenciação ou exponenciação propriamente dita, ao menos num primeiro olhar, pois, ao pé da letra, se elevássemos um dolo ao quadrado isso corresponderia a 1 X 1 e resultaria em 1, um giro de 360 graus sem sair do lugar. E se pensarmos em dois dolos elevados ao quadrado, isso significaria na solução matemática em que surgiriam então quatro dolos, o que também não tem sustento. Acontece que os autores usam a expressão porque entendem que o “animus injuriandi” é potenciado ou exponenciado pelo disfarce do falso “animus jocandi”. Daí a afirmação pode ser acatada não diretamente, mas como uma figura de linguagem metafórica. Não há dúvida quanto ao acerto dos autores nessa operação estilística muito bem posta. Vejamos:
A intenção recreativa é a razão exponencial do animus injuriandi, pois facilita e potencializa a consolidação do preconceito nas estruturas sociais (grifos nossos).
Por isso, a nosso ver, a injúria racista ordinária requer somente o animus injuriandi para a sua consumação. Contudo, se as palavras racistas e injuriosas forem proferidas com intuito ou no contexto recreativos, servindo o autor de tal subterfúgio para camuflar o seu inequívoco intuito de ofender, torna-se possível a incidência da injúria racista majorada pelo contexto ou intuito recreativo (grifo no original).
A conduta racista injuriosa, quando escamoteada pelo manto da menor reprovabilidade social, é estruturalmente mais grave do que a conduta realizada às claras e perceptível em sua intencionalidade real por todos. Por isso a possibilidade de majoração da pena, frisamos.

Seguindo no caminho desse intento necessário de procurar camuflar o racismo com suposta descontração, brincadeira ou divertimento, o mesmo raciocínio deve ser empregado, no que tange à “Injúria Preconceito”, prevista no artigo 140, § 3º., CP (religiosa, etária ou capacitista), quando se trata de reconhecimento da chamada “imunidade judiciária, literária, artística, [científica] e funcional”, conforme disposto no artigo 142, CP para os crimes de injúria e difamação (a calúnia não é abrangida pela imunidade). Se fica claro que a pessoa apenas se acoberta nessas atividades com “inequívoca intenção de injuriar ou difamar” não fará jus à imunidade alguma, respondendo pela “Injúria Preconceito” ou mesmo pela difamação praticadas. Chamam a atenção os autores em destaque para a inexistência de direitos constitucionais absolutos e, consequentemente, ainda com maior razão, para a não existência de imunidades penais absolutas derivadas da lei ordinária (Código Penal). São assertivos, Costa, David e Bretz ao afirmarem que “qualquer pessoa que ofenda alguém, travestindo sua intencionalidade racista de rótulos laborais, não se faz merecedor da proteção legal”. Acrescente-se que para alguns toda essa discussão somente terá cabimento com relação à “Injúria Preconceito” (artigo 140, § 3º., CP). No que se refere à “Injúria Racial” (artigo 2º.-A da Lei 7.716/89), seria evidente que não se pode aplicar qualquer imunidade prevista no Código Penal, já que o ilícito está posicionado em legislação especial que não prevê tal benefício. Não obstante, pode haver posicionamento entendendo que as imunidades previstas no artigo 142, CP são “normas gerais”, embora previstas na “Parte Especial” do Código Penal. Dessa forma, tais imunidades seriam aplicáveis, nos termos e limites acima mencionados, tanto à “Injúria Preconceito” (artigo 140, § 3º., CP) como à “Injúria Racial” (artigo 2º.-A da Lei 7.716/89). Contudo, nos parece muito improvável que em qualquer dos dois casos (Código Penal ou Lei de Racismo) uma injúria dessa espécie e gravidade se possa justificar pela discussão em juízo, pelo exercício da crítica literária, artística ou científica ou pelo exercício funcional. Parece inviável afastar, conforme a dicção da própria lei a vetar as imunidades, a “inequívoca intenção de injuriar ou difamar”.
Além disso, é preciso lembrar que há na doutrina oposição até mesmo à aplicação do “Perdão Judicial” nos casos de “provocação” ou “retorsão” (artigo 140, § 1º., I e II, CP) nos casos de “Injúria Qualificada pelo Preconceito”, alegando-se que nessa espécie de ofensa a “retorsão” ou “provocação” não seria suficiente para mobilizar a “causa geradora do perdão judicial”. Isso porque o preconceito demonstrado não constitui simples injúria e não poderia ser combatido por outra injúria. Na verdade, a aplicação de perdão judicial em casos de injúria qualificada do Código Penal ou, atualmente, da Lei de Racismo, seria aceder com a difusão da discriminação pela troca de ofensas dessa natureza ou pela resposta a alguma provocação com esse tipo de impropério. Não se trata somente de violação à honra, mas de tratamento discriminatório que afeta diretamente meta fundamental do “Estado Democrático de Direito (CF, art. 3º., IV)”.
Tendo em vista esses argumentos judiciosos, entendemos que realmente seria muito difícil fundamentar o reconhecimento de imunidade dos crimes contra a honra, nos termos do artigo 142, CP, seja aos casos que ficaram ainda no artigo 140, § 3º., CP, seja aos casos que foram transpostos para o artigo 2º.-A da Lei de Racismo.

5.2-RACISMO FUNCIONAL

Essa causa especial de aumento de pena é prevista no artigo 20 – B da Lei 7.716/89 com nova redação dada pela Lei 14.532/23 e fica adstrita somente aos crimes de “Injúria Racial” (artigo 2º. – A) e de “Apologia ao Racismo” (artigo 20). Diversamente da majorante do artigo 20 – A, esta agora em estudo não se espraia para todos os crimes de racismo.
A previsão é de um aumento da ordem de um terço até a metade quando os crimes de “Injúria Racial” ou de “Apologia ao Racismo” forem perpetrados por “funcionário público” “no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las”.
A exacerbação da reprimenda legal obviamente se justifica, já que os agentes públicos não podem jamais ser perpetradores e disseminadores de condutas racistas, mas, ao reverso, são os maiores obrigados a seu combate e eliminação da nossa sociedade.
A lei menciona a expressão “funcionário público” como sujeito ativo, mas na verdade se refere a qualquer “agente público”, na medida em que indica expressamente como complemento à sua interpretação o conceito de “funcionário público” do Código Penal. Fato é que a conceituação de “funcionário público” no Código Penal é bem mais ampla do que no âmbito administrativo, conforme se conclui da redação dada ao artigo 327, CP. O opção legislativa na redação do artigo 20 – B da Lei de Racismo de remeter o intérprete ao Código Penal para esclarecer o conceito de Funcionário Público pode ser considerada como supérflua, uma vez que é pacífico que o conceito de Funcionário Público para fins penais sempre deve ser entendido mediante recurso à norma geral do artigo 327, CP, seja para crimes previstos no corpo do Código Penal, seja na legislação esparsa. Não há, portanto, necessidade de remeter o intérprete expressamente ao artigo 327, CP. Ao reverso, se em alguma legislação se pretender empregar um sentido diverso de Funcionário Público para fins penais, é que se deve, naquela lei, erigir um conceito especial (inteligência do artigo 12, CP). É lição de Mirabete e Fabbrini:
Embora o artigo 327 do Código Penal esteja no capítulo dos crimes praticados por funcionários públicos, o conceito aí definido, como é pacífico na jurisprudência, estende-se não só a toda parte especial como às leis penais extravagantes, tendo a característica de regra geral, como a chama o artigo 12 do CP. O fato de ter sido incluída na parte especial não lhe retira essa qualidade.

A causa especial de aumento de pena em estudo somente será aplicada a Funcionário Público em razão da função. Os particulares não são abrangidos e mesmo os funcionários públicos quando atuam fora das funções.
Ainda que um particular atue em concurso de agentes com um Funcionário Público que, por sua vez, age em razão da função, o aumento de pena se restringe ao Agente Público e não se transmite ao particular (“extraneus”). Isso porque se trata de condição de caráter pessoal, a qual não se transmite, salvo quando elementar do crime. No caso a condição de Funcionário Público não é “elementar do crime”, mas elemento normativo da majorante especial (inteligência do artigo 30, CP).
Obviamente, em se tratando de causa especial de aumento de pena que faz alusão expressa aos crimes do artigo 2º.-A e 20 da Lei 7.716/89, restringindo inequivocamente seu campo de incidência, não poderá haver aplicação do artigo 20 – B da Lei de Racismo à Injúria Qualificada prevista no artigo 140, § 3º., CP. Eis mais uma violação da proporcionalidade ocasionada pela cisão da antiga Injúria Qualificada entre o Código Penal e a Lei de Racismo. Ademais, não se vê motivação plausível para a restrição do aumento somente para dois crimes da Lei de Racismo. O mais correto e justo seria que o incremento penal se espraiasse por todos os delitos de racismo.

6-ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI 14.532/23 NO CRIME DE “APOLOGIA AO RACISMO”

6.1 –QUALIFICADORA DEVIDO AO USO DE MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL, REDES SOCIAIS DE INTERNET E PUBLICAÇÕES DE QUALQUER NATUREZA

Importa ressaltar que o artigo 20 da Lei 7.716/89 configura a chamada “Apologia ao Racismo” e difere bastante da “Injúria Racial”, seja aquela prevista no artigo 2º. – A do mesmo diploma, seja aquela capitulada no artigo 143, § 3º., CP. Nada tem o artigo 20 da Lei 7.716/89 de similar ao caso da injúria racial ou preconceito, pois não se trata de mera ofensa a um indivíduo ou mesmo a um grupo de pessoas determinadas, mas de apologia ao racismo em geral de forma indeterminada, difusa, do incentivo e defesa de práticas e teorias racistas.
Neste sentido:
Não se amolda ao tipo penal em análise o ato de proferir xingamentos ou adjetivações com expressões discriminatórias ou preconceituosas, pois se circunscrevem à injúria racial (…).
O direcionamento individualizado a determinada pessoa afasta a formatação do crime de racismo, pois para o crime racial é necessário que a aversão, a ojeriza ou o preconceito se dê em torno de um grupo ou coletividade.
Na redação do artigo 20 em estudo são abrangidas todas as espécies de racismo previstas na lei respectiva em geral conforme seu artigo 1º., quais sejam “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Há um ganho porque o “racismo religioso” não é esquecido. Por sorte a Lei 14.532/23 não alterou o “caput” do artigo 20 quanto à religião. Porém, perdeu o legislador a oportunidade de incluir os racismos “etário” (idoso) e “capacitista” (deficientes). Isso no mínimo, pois, como já dissemos, o ideal seria uma legislação abrangente de qualquer discriminação ou segregação injustificada.
A Lei 14.532/23 altera a redação do § 2º. do artigo 20, que prevê uma forma qualificada com pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa. Antes o crime se qualificava quando cometido por “intermédio de meios de comunicação social” ou “publicação de qualquer natureza”. Essas causas de aumento, tendo em vista o meio de divulgação foram mantidas e foi incluída uma nova causa: quando o crime for perpetrado por intermédio “de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores” (internet). A inclusão é bem vinda, já que em todos os casos a justificativa para o incremento punitivo é seu maior potencial de difusão de ideias racistas. No entanto, em nosso entender, na verdade, a qualificadora já poderia ser aplicada antes porque já havia a previsão de “meios de comunicação social”, onde claramente estão abrangidas as redes sociais. Mesmo que não se entendesse assim, sabe-se lá por que, seria ainda possível a aplicação da forma qualificada por meio da fórmula genérica que fecha a qualificadora e já a fechava antes, “publicação de qualquer natureza”. Portanto, em nossa opinião, a inclusão que ora se faz apenas serve para deixar mais claro e evidente do que antes que o crime praticado por meio de redes sociais é qualificado, sem margem alguma de discussão.
É claro que para quem não concorde com a assertiva de que o uso das redes sociais para propagação do racismo já qualificava o crime do artigo 20 em estudo, essa específica situação de incremento penal não poderá retroagir, já que se trata de “novatio legis in pejus”. No entanto, em nosso entendimento, SMJ., não se trata de “novatio legis in pejus”, mas de mera operação de ênfase, de modo que, na verdade ocorre o fenômeno da “continuidade normativo – típica” de forma neutra. Assim sendo, a nosso ver, como sempre foi, a conduta praticada por intermédio de redes sociais deve ser apenada de forma qualificada, não havendo óbice técnico para a retroatividade.
Na doutrina especializada sobre o tema já se encontra esse entendimento de que desde sempre a internet e redes sociais eram abrangidas pela qualificadora, seja como “meio de comunicação social” ou “publicação”, de vez que o uso “de seus mecanismos permite o acesso a número indeterminado de pessoas, o que preenche a mens legis, como interpretação analógica, permitida em direito penal”. Ademais, chamam a atenção os autores para o fato de que o uso da internet enseja a competência da Justiça Federal, apontando julgado a respeito (“TRF 1ª. Região, RECURSO CRIMINAL 2007.38.00.036480-7/MG Relator: Desembargador Federal Mário César Ribeiro, julgamento: 25/08/09”).
Obviamente no caso de “meios de comunicação social” em geral (v.g. televisão, rádio etc.) e “publicação de qualquer natureza” (jornais, revistas, cartazes, panfletos, “flyers”, folhetos etc.) há evidente “continuidade normativo – típica” neutra nem mesmo sendo discutível a possibilidade de retroatividade.
Uma dúvida pode surgir: acaso a pessoa use vestimentas, roupas, camisetas com dizeres ou símbolos racistas em via pública ou locais públicos ou de acesso público, incidiria no crime? E na qualificadora?
No que diz respeito ao crime do artigo 20, “caput”, nos parece induvidoso que há incriminação. Já quanto à qualificadora não se trata de meio de comunicação social ou rede social, mas vestimenta. No entanto, se poderia alegar que poderia tipificar uma “publicação de qualquer natureza”. Não é de se afastar tal entendimento para aquele que produza o vestuário, mas se torna inviável pretender aplicar a qualificadora para quem apenas ostenta a roupa ou a usa em locais públicos, já que não se pode dizer que isso corresponda a alguma forma de publicação. Agora, aquele que customiza, faz uma estampa, emprega um processo de impressão tal como Silkscreen ou serigrafia e vende ou distribui de qualquer modo esse material, além de inserir-se no tipo penal em questão, parece também incidir na qualificadora na sua forma de “publicação de qualquer natureza” (interpretação analógica). Mais um detalhe, se a estampa na camiseta ou qualquer peça de roupa consistir em “símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”, quem a usar em público incide no § 1º., do artigo 20 da Lei 7.716/89 no verbo “veicular” e quem “fabrica, comercializa ou distribui” responde nesse mesmo § 1º., mas nestes últimos verbos. Nesse caso específico não nos parece possível combinar, seja em concurso formal ou material os §§ 1º. e 2º., já que tal operação constituiria “bis in idem” no caso da figura da “publicação de qualquer natureza”. Ambos os dispositivos têm em mira a divulgação massiva do racismo e qualificam o crime de apologia. Ambos também se dão por meio de uma impressão ou publicação. Apenas o § 1º. elege materiais especiais, enquanto que o § 2º. diz respeito ao meio de divulgação. Isso, como explicitado antes, se afirma com relação à figura genérica da “publicação de qualquer natureza”. É evidente que se uma pessoa, por exemplo, fabrica, comercializa, distribui ou veicula a cruz suástica ou símbolos nazistas por intermédio de meios de comunicação social ou redes sociais, não haveria óbice para o reconhecimento de concurso material de infrações nos verbos “fabricar”, “comercializar” e “distribuir” e concurso formal impróprio no caso do verbo “veicular”. Outro aspecto importante é que mesmo na figura de “publicação de qualquer natureza” poderá haver o concurso material ou formal impróprio com o § 1º., desde que não se trate de estamparia em vestimentas, mas de publicações em panfletos, cartas – abertas, cartazes, flyers, folhetos, jornais, revistas etc. É que quando se tratam de roupas a produção têxtil e a estamparia já seriam formas de impressão ou publicação por sua própria natureza, razão pela qual se considera haver, neste caso específico, “bis in idem” na pretensão de aplicação do § 2º. Contudo, ainda que se tratando de roupas, se a estamparia é feita e depois propagada em redes sociais, meios de comunicação social em geral, haverá concurso material de crimes entre os §§ 1º. e 2º., já que são condutas independentes e sequenciais.
Embora recentemente um homem tenha sido absolvido pela Justiça brasileira (TJRJ) por ostentar em público tatuagem corporal de símbolo nazista, entende-se que tal conduta se amolda perfeitamente ao tipo penal do artigo 20, § 1º., da Lei 7.716/89, merecendo tal decisão a devida reforma pelo Superior Tribunal de Justiça ou pelo Supremo Tribunal Federal. Não obstante, é preciso lembrar que o crime consiste na conduta externada, no caso a exibição ostensiva, veiculação do símbolo espúrio. O fato de que uma pessoa “simpatize” (sic) com o nazismo não é crime, pois não se punem os pensamentos ou a fase de cogitação do “iter criminis”. Também permitir que se faça em seu corpo ou fazer por si mesmo uma tatuagem dessa espécie no próprio corpo, é certamente imoral e de péssimo gosto, mas não configura crime isoladamente. Para que haja crime, é necessário que a tatuagem seja exibida ostensivamente em público. E no caso de que essa exibição se dê por meios de comunicação social ou redes sociais, haverá incidência em concurso material dos crimes do artigo 20, § 1º. e § 2º. No caso da tatuagem, a situação é similar à estampa na roupa, só que corporal, podendo-se dizer que quem a faz em terceiro é incriminado pelo artigo 20, § 1º., da Lei de Racismo, mas não pode incidir em concurso na figura do § 2º., que se refere a “publicação de qualquer natureza” (“bis in idem”). Não obstante, se faz a tatuagem (imprime, publica no corpo de alguém) e depois a veicula nos meios de comunicação social ou redes sociais, haverá concurso material de infrações (artigo 20, § 1º. e § 2º., da Lei 7.716/89).
Outro aspecto importante é que embora a lei preveja expressamente e de forma qualificada a divulgação de símbolos nazistas, a difusão de outros símbolos racistas não deixa de ser crime, apenas migrando a tipificação do artigo 20, § 1º., para o artigo 20, “caput” da Lei 7.716/89. E se essa divulgação se dá por intermédio de redes de comunicação social, redes sociais ou publicações em geral, incide normalmente a qualificadora do § 2º., do artigo 20 do mesmo diploma. Portanto, apregoar o racismo mediante a divulgação, por exemplo, de símbolos da Ku Klux Klan, de frases discriminatórias etc., podem configurar infração ao artigo 20, “caput” ou mesmo seu § 2º., a depender do meio de divulgação. Somente, nestes casos, por força do Princípio da Legalidade, não será possível aplicar o artigo 20, § 1º., pois embora sejam símbolos ou expressões racistas, não se referem especificamente ao nazismo.
A previsão especial e qualificada com relação aos abjetos símbolos nazistas certamente se dá por razões históricas que chocaram profundamente a humanidade no Século XX. Como bem aduz Silva:
Uma das maiores vergonhas para a espécie humana foi o holocausto perpetrado pelo partido nazista alemão, cujo nome oficial era Partido Nacional – Socialista dos Trabalhadores Alemães.
Nos dias atuais, infelizmente, ainda há pelo mundo aqueles que veneram verdadeiros demônios que foram os idealizadores e executores dessa atrocidade.
Este item não poderia ser encerrado sem lembrar mais uma violação tremenda à proporcionalidade ocasionada pela Lei 14.532/23, muito bem descrita por Sannini e Gilaberte. Toma-se a liberdade de transcrever a acertadíssima crítica dos autores:
A proporcionalidade é aviltada, ainda, quando analisamos a manifestação preconceituosa por meio de redes sociais informatizadas no contexto dos arts. 140, § 3º, c/c 141, § 2º, do CP, 2º-A da Lei 7.716 e 20, § 2º, da mesma lei. Analisando apenas o caput desses dispositivos, aquele de maior gravidade é a injúria racial ou xenofóbica, com pena de reclusão, de 2 a 5 anos. A injúria por preconceito do Código Penal e o art. 20 da Lei 7.716 possuem a mesma sanção penal (1 a 3 anos e multa). Logo, são equiparados pelo legislador em reprovabilidade. Contudo, quando esses crimes são praticados por meio de redes sociais informatizadas, a situação muda de figura. O crime mais grave passa a ser o do art. 140, § 3º (cuja pena é triplicada, chegando ao patamar de 3 a 9 anos de reclusão). Já o art. 20, caput e § 1º, sob a regência da nova redação do § 2º do dispositivo, passam a ter uma pena de 2 a 5 anos de reclusão, além de multa, equiparando-se ao art. 2º-A. E este artigo? Sua pena não sofre nenhum acréscimo. Impossível uma incoerência maior.

Acrescente-se, por oportuno, que mesmo a gradação de gravidade entre os “capita” não é escorreita em termos de proporcionalidade. Não há motivo para que a “Injúria Racial” da Lei de Racismo tenha pena maior do que a “Injúria Preconceito” do Código Penal. Pior, não é correto que a “Injúria Preconceito” do Código Penal, enquanto ofensa individual limitada tenha a mesma pena que o crime de “Apologia ao Racismo” do artigo 20 da Lei 7.716/89. Este segundo é muito mais grave. Pior ainda, não é justificável que a “Injúria Racial” tenha pena maior do que a “Apologia ao Racismo”, pois mesmo em se tratando de crime ora previsto também na Lei de Racismo, sua lesividade continua sendo individual e não se pode equiparar à potencialidade lesiva coletiva ou difusa do artigo 20 do mesmo diploma.

6.2-QUALIFICADORA SE O CRIME É PRATICADO EM EVENTOS PÚBLICOS

O crime do artigo 20 também se qualifica com pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e proibição de frequência, por 3 (três) anos, a locais destinados a práticas esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público, nos termos do § 2º. – A.
Essa qualificação se dá quando qualquer dos ilícitos previstos no artigo 20 da Lei de Racismo for cometido no contexto de “atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público”.
O “contexto” que pressupõe a prática criminosa em presença de muitas pessoas, com capacidade de maior disseminação de seu conteúdo racista justifica a exacerbação punitiva.
Note-se que essas atividades (esportivas, religiosas, artísticas ou culturais) devem, segundo a letra da lei, ser “destinadas ao público”. Significa dizer que atividades privadas ou limitadas aos participantes não ensejam a qualificadora. Exemplificando: num jogo de futebol profissional em estádio ou mesmo de várzea, mas aberto ao público em geral, poderá haver a qualificadora. Já num jogo de futebol entre amigos sem acesso público, o famoso “racho” ou “pelada” não será suficiente para qualificar o crime. O mesmo se diga de um culto religioso doméstico (não serve como qualificadora) e um culto religioso em um templo ou nas ruas ou locais públicos (procissões, encontros de jovens, cultos evangélicos, missas, sessões espíritas etc.). Quanto a atividades artísticas e culturais o mesmo critério. Se em privado, numa casa entre amigos ou colegas é feita alguma espécie de apresentação musical, teatral etc. não se caracteriza a qualificadora. Agora se ocorre o fato num teatro, no palco de uma apresentação musical ou mesmo numa apresentação escolar, uma feira artística, teatro amador etc., a qualificadora estará integrada. Não importa que a atividade seja profissional ou não, o que importa é que seja “destinada ao público”. É importante, porém, deixar claro que a “Apologia ao Racismo” perpetrada mesmo diante de um público restrito (amigos, familiares etc.) não perde sua tipicidade. A figura do artigo 20, “caput” não exige direcionamento ao público. Dessa forma, haverá, em tese, o crime, apenas em sua forma simples e não qualificada pelo § 2º. – A.
A previsão dessa qualificadora não deve significar, no âmbito religioso, instrumento para violação da liberdade religiosa. Como bem observam Costa, David e Bretz:
Conquanto a Lei nº 14.532/2023 tenha conferido causa de aumento de pena [“rectius” qualificadora] em face de condutas discriminatórias ou preconceituosas que ocorram no contexto de atividades religiosas (artigo 20, § 2º-A, da Lei nº 7.716/89), isso não significou a criminalização da atividade religiosa; na verdade, o legislador mitigou expressamente a incidência do referido tipo penal em outro ponto, imputando o mesmo gravame penal àqueles que obstam, impedem ou empregam violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas (interpolação nossa).
O mesmo Direito Penal que protege a liberdade religiosa, incrimina também a intolerância religiosa em face de outros grupos.
Em algumas circunstâncias, será difícil para o operador do direito resolver essa equação, principalmente porque alguns dogmas das religiões se confrontam com a percepção daqueles que não comungam das mesmas crenças de salvação e, portanto, sentem-se discriminados.
E as diferentes perspectivas, a nosso ver, ainda que permeadas por falas acaloradas de proselitismo religioso, não são os objetos de incriminação do presente diploma. Se não há crime de divergência hermenêutica de normas jurídicas, menos razão ainda para se punir visões diferentes (e igualmente legítimas) da vida humana e da religiosidade intrínseca da humanidade. Tudo, é claro, se ocorrido sem abuso ou exagero (grifo no original).
Como visto, além da pena privativa de liberdade há previsão de pena restritiva de direitos cumulativa, consistente na proibição de frequência àqueles eventos pelo período de 3 (três) anos.
O que causa dúvida na redação do preceito secundário acima mencionado é a frase que encerra o texto, “conforme o caso”. Há basicamente três possibilidades interpretativas:
a)Conforme o caso, o juiz poderá aplicar a pena privativa de liberdade cumulada ou não com a restritiva de direitos sempre por 3 (anos) fixos, já que não há intervalo legalmente previsto para individualização. A individualização da pena se daria pela aplicação ou não “in totum” da pena restritiva de direitos. Essa interpretação apresenta o problema de entrar em conflito com a conjunção aditiva “e” que liga a pena privativa de liberdade e a pena restritiva. De acordo com a conjunção aditiva, seria imperativo que o juiz impusesse ambas as penas sempre. Além disso, considerando a pena proibitiva fixa em 3 (três) anos, haveria possível violação do Princípio da Individualização da Pena.
b)Conforme o caso, o juiz sempre aplicaria ambas as penas (reclusiva e restritiva), tendo em vista o comando legal constituído pela conjunção aditiva (“e”) que as conecta. Não obstante, embora inexistindo previsão de intervalo temporal com a menção apenas da interdição por 3 (três) anos fixa, poderia o juiz fazer a individualização do “quantum” dessa interdição em cada caso concreto (“conforme o caso”). Então poderia proibir a frequência por uma semana, um mês, seis meses, dois anos, nunca obviamente podendo ultrapassar o patamar máximo legalmente estabelecido de 3 (três) anos. Essa solução não entra em conflito com a conjunção aditiva, mas provoca embate com a previsão legal de proibição por tempo fixo de 3 (três) anos. Ademais, a inexistência de conflito com a conjunção aditiva pode ser elidida pelo aplicador do Direito com a seguinte manobra indireta: como não há limite mínimo, poderia aplicar 0 (zero) dia de interdição ou então uma proibição meramente simbólica de 1 ou 2 dias em que sequer haveria algum evento a ser frequentado pelo infrator. Também poderia haver alegação de infração à individualização devido à obrigatoriedade de cumulação das penas reclusiva e restritiva, independente de cada caso concreto. Inobstante esta última crítica não nos pareça correta, uma vez que as penas privativa de liberdade “e” restritiva de direitos podem ser, em conjunto, a pena mais necessária, adequada e proporcional a essa espécie de conduta criminosa.
c)O juiz aplicaria sempre a pena privativa de liberdade e a restritiva, tendo em vista a conjunção aditiva imperativa “e”. A pena restritiva seria também sempre fixa em 3 (anos), tendo em vista a inexistência de intervalo legalmente previsto para individualização. A expressão “conforme o caso” seria relativa somente à dosimetria individualizadora da pena privativa de liberdade entre 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão. Essa alternativa tem a virtude de não conflitar com a conjunção aditiva legalmente prevista e nem com a penalidade fixa de proibição de 3 (três) anos. No entanto, quanto à proibição de frequência pode-se cogitar de infração à individualização da pena, já que não haverá nunca variância de um caso concreto para outro. O ideal seria que houvesse o legislador estabelecido um intervalo mínimo e máximo de interdição de frequência. A questão da aplicação necessariamente cumulativa e violação da individualização, como já visto, pode ser afastada com certa facilidade, pois se trataria das penalidades (em conjunto) adequadas a esse tipo de conduta.
Como se vê o legislador não primou em sua redação pela melhor técnica e clareza. A nosso ver, a melhor interpretação é a da letra “c”, já que pelo menos respeita parcialmente a individualização da pena (quanto à pena reclusiva) e no mais se adequa perfeitamente à redação legal. A obrigatoriedade de aplicação conjunta das penas (reclusiva e restritiva) não nos parece ser uma real infração à individualização. Nas demais opções, além de sempre haver alguma violação da individualização, ocorrem choques entre a aplicação da lei e sua redação.

6.3-CONDUTA EQUIPARADA DE PERTURBAÇÃO COM OU SEM VIOLÊNCIA A MANIFESTAÇÕES OU PRÁTICAS RELIGIOSAS

Embora, como já visto, tenha o legislador relegado ao Código Penal a conduta de “Racismo Religioso” no que tange à “Injúria Racial”, no § 2º. – B do artigo 20 da Lei 7.716/89, a Lei 14.532/23 prevê como conduta equiparada com as penas do “caput” aquela de “obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas”. Significa dizer que o óbice violento ou não às manifestações ou práticas religiosas é inserido na Lei de Racismo, enquanto que a conduta de ofensa meramente verbal com conteúdo religioso fica adstrita ao Código Penal.
Há nítido e injustificado tratamento diferenciado entre o “Racismo Religioso” e as demais formas de racismo previstas na lei. Para as demais formas, a mera injúria verbal já é abrangida pela lei mais prática e simbolicamente gravosa. Com relação à religião, a injúria verbal parece ser relegada a uma importância menor, preocupando-se o legislador somente com condutas físicas de impedimento, óbice ou violência.
Outro aspecto criticável pela omissão legislativa é a imprevisão nesse parágrafo em estudo do emprego de violência, impedimento ou óbice a manifestações ou práticas culturais por motivo de preconceito, discriminação ou segregação. Sannini e Gilaberte são os autores que originalmente apontam essa falha e exemplificam com o impedimento ou emprego de violência contra uma festa folclórica como a do “Boi – bumbá” ou de uma Parada do “Orgulho Gay”.
Parece que a violência que pode informar a conduta equiparada do § 2º. – B pode ser contra pessoas ou coisas. Não há distinção na dicção legal. Além disso, a legislação impõe o cúmulo material entre as penas do crime de racismo (artigo 20, § 2º – B, da Lei 7.716/89) e aquelas referentes à violência. Dessa forma esse cúmulo material de penas poderá se dar, conforme o caso, com crimes, por exemplo, de lesões corporais, danos etc. A contravenção penal de “Vias de Fato” (artigo 21, LCP) parece dever ser absorvida como infração penal – meio.
Por outro lado, as condutas previstas no artigo 20, § 2º. – B não precisam, necessariamente, ser perpetradas mediante violência. Pode haver uma conduta passiva que impeça uma prática religiosa. Por exemplo, postar-se uma multidão em frente ao local de culto, impedindo com barricadas a passagem dos crentes. Lembremos que há os verbos “obstar” e “impedir”, além do “emprego de violência”, sendo o caso de um “crime de forma livre”.
Vale mencionar que também pode ocorrer no contexto do § 2º. – B a conduta dos infratores por meio de “grave ameaça”. Não havendo previsão expressa no tipo penal para o cúmulo material, a não ser para os casos de violência, crimes como os de “Ameaça” ou “Constrangimento Ilegal com grave ameaça ou redução da resistência por outros meios não violentos” ficam absorvidos como crimes – meio. No caso do “Constrangimento Ilegal” praticado por meio de violência, ainda assim, o delito do artigo 146, CP restará absorvido, pois que o constrangimento é conatural do óbice ou impedimento do culto. Restará eventual cúmulo material com a conduta violenta respectiva (v.g. lesões corporais).
Em havendo homicídio a questão se complica. Entendemos que a solução deve variar em cada situação de acordo com a amplitude do óbice ou impedimento mediante violência:
a)Se uma pessoa determinada ou um grupo determinado é impedido mediante violência em sua manifestação ou prática religiosa, por meio da prática de homicídio e/ou tentativas de homicídio dessas pessoas, então haverá Crime de Homicídio Qualificado por Motivo Torpe (artigo 121, § 2º., I, CP) e o Crime de Racismo será absorvido, já que sua imputação em conjunto seria “bis in idem”. É que a motivação racista é justamente o “motivo torpe” que qualifica o crime, não podendo ser novamente utilizado para apenação. Neste caso se está trabalhando com a hipótese de que uma pessoa determinada ou todas as pessoas de um grupo determinado tenham sido vítimas de homicídio e/ou tentativas de homicídio por motivo religioso.
b)Se durante o emprego de violência para obstar ou impedir uma prática ou manifestação religiosa, ocorrer um ou mais homicídios ou tentativas de homicídio, mas houver várias outras pessoas atingidas em seu direito ao culto que não são vítimas dessa espécie delitiva (homicídio) há que responsabilizar os envolvidos em geral pelo crime de racismo (artigo 20, § 2º. – B da Lei 7.716/89). Identificados os autores dos homicídios e/ou tentativas de homicídio, estes deverão responder por homicídio qualificado por motivo torpe (artigo 121, § 2º., I, CP) em concurso material com o crime de racismo (artigo 20, § 2º. – B da Lei 7.716/89). É que nesses casos há vítimas de homicídio e/ou tentativa de homicídio ao lado de vítimas somente de crime de racismo. Também há autores de homicídio e /ou tentativa de homicídio que não deixaram de praticar autonomamente crimes de racismo contra as demais pessoas vitimizadas no episódio, não podendo isso ficar impune. Infelizmente, no caso de não se conseguir determinar a autoria dos homicídios e/ou tentativas de homicídio, todos os infratores responderão somente pelo crime de racismo (“in dubio pro reo”). Em havendo processo por homicídio o crime de racismo, que normalmente seria processado e julgado pelo Juiz Singular, será da competência do Tribunal do Júri devido à conexão e à “vis atractiva” do Júri (inteligência do artigo 78, I, CPP).
Questão interessante é saber se com o advento do § 2º.-B do artigo 20 da Lei de Racismo com a nova redação dada pela Lei 14.532/23, teria ocorrido ou não revogação tácita do crime de “Ultraje a Culto ou Impedimento ou Perturbação de ato a ele relativo” (artigo 208, CP).
A nosso ver ocorreu derrogação, ou seja, apenas uma revogação parcial do dispositivo do Código Penal, permanecendo este ainda válido para algumas condutas ali previstas que não foram abrangidas pela nova figura da Lei de Racismo.
A conduta de “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa” continua incólume, desde que não haja óbice, impedimento ou emprego de violência contra manifestação ou prática religiosa. Também há que verificar se não se configura “Injúria – Preconceito”, conforme descrito no artigo 140, § 3º., CP.
Igualmente a conduta de “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”, mais uma vez, desde que não haja óbice, impedimento ou emprego de violência contra manifestações ou práticas religiosas. Seria o exemplo famoso do Pastor Evangélico que chutou na televisão uma imagem de Nossa Senhora Aparecida ou da prática física da frase preconceituosa “chuta que é macumba” (sic), ou seja, quando um indivíduo, passando numa encruzilhada se depara com um trabalho de religiões espiritualistas, tais como as afrobrasileiras, e efetivamente chuta os produtos, quebra ou cospe em objetos, imagens etc. que estão ali na via pública. Observe-se que a imagem não é uma “manifestação ou prática religiosa”, mas um “objeto religioso”. Igualmente os componentes de um trabalho ou oferenda já foram utilizados numa manifestação ou prática religiosa, mas agora, deixados no local expostos, são apenas “objetos religiosos”, razão do afastamento do artigo 20, § 2º. – B da Lei de Racismo e emprego do artigo 208, CP.
Verifica-se que não houve revogação expressa do artigo 208, CP pela Lei 14.532/23. Nem também, nestes casos específicos, houve revogação tácita, já que não se tratou inteiramente da matéria descrita no dispositivo do Código Penal e nem o conteúdo da Lei 14.532/23 é incompatível com o artigo 208, CP (inteligência do artigo 2º., § 1º., da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileira – Decreto –Lei 4.657/42).
Agora, com relação à parte do artigo 208, CP que trata da conduta de “impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso”, nos parece que a Lei 14.532/23, incluindo o § 2º.-B no artigo 20 da Lei 7.716/89 e erigindo em crime de racismo a ação de “obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas”, tratou inteiramente da matéria anteriormente regulada pelo Código Penal. Dessa forma, como se trata de lei posterior, houve revogação tácita parcial do artigo 208, CP nesse ponto (inteligência do artigo 2º., § 1º., da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileira – Decreto –Lei 4.657/42).
Já no que se refere aos “Crimes Contra o Respeito aos Mortos”, permanecem intactos os crimes de “Violação de Sepultura” (artigo 210, CP), “Destruição, Subtração ou Ocultação de Cadáver” (artigo 211, CP) e “Vilipêndio a Cadáver” (artigo 212, CP).
Quanto ao crime de “Impedimento ou Perturbação de Cerimônia Funerária” (artigo 209, CP), não se trata de discutir eventual revogação ou manutenção. Com relação a isso se pode afirmar que o artigo 209, CP não foi revogado expressa ou tacitamente pela Lei 14.532/23. No entanto, haverá que ter cautela na aplicação de cada dispositivo em casos concretos. Explicando:
Não são somente pessoas religiosas que fazem cerimônias funerárias e respeitam seus mortos e ancestrais. Isso pode fazer parte da prática até mesmo de um ateu ou agnóstico. E a ninguém é dado desrespeitar esse direito. Assim sendo, o artigo 209, CP continuará sendo aplicado para os casos de impedimentos ou perturbações de cerimônias funerárias que não tenham a conotação ou natureza de uma “manifestação ou prática religiosa”. Doutra banda, na maioria dos casos, essas cerimônias funerárias são induvidosamente “manifestações ou práticas religiosas” (v.g. católicas, budistas, maoístas, evangélicas, espíritas, muçulmanas, hinduístas, judaicas, umbandistas etc.). Doravante, com o advento do artigo 20, § 2º. – B da Lei 7.716/89 com nova redação dada pela Lei 14.532/23, deverá haver aplicação deste dispositivo, afastando-se o artigo do Código Penal. Neste ponto, há claramente uma violação da proporcionalidade, tendo em vista que o impedimento ou perturbação de uma cerimônia funerária não religiosa não somente será um crime comum, como uma infração de menor potencial ofensivo. Por outro lado uma cerimônia funerária religiosa, similarmente representativa do respeito aos mortos, contará com a proteção especial da Lei de Racismo, constituindo-se em crime de suma gravidade. Não há motivo plausível para essa distinção. Ainda que se considere que o racismo ou preconceito estaria presente quando ofensivo a atos religiosos, não é correto concluir que não possa existir preconceito e discriminação com não – religiosos por esse motivo. Imagine-se que um grupo crente de qualquer credo pretenda atribular uma cerimônia funerária exatamente em repressão à sua natureza ateia ou ausência de elementos religiosos considerados importantes. O legislador deveria ter se lembrado das Cerimônias Funerárias ao redigir o novel § 2º. – B do artigo 20 da Lei 7.716/89. Porém, dada a legislação posta, não é possível aplicar as penas mais graves e a classificação como crime de racismo para atos de perturbação ou impedimento de cerimônias funerárias não religiosas, sob pena de infração ao Princípio da Legalidade. Fica, portanto, a sugestão de “lege ferenda” para o acréscimo das cerimônias funerárias no artigo 20, § 2º. – B da Lei de Racismo, revogando-se expressamente o dispositivo correlato do Código Penal. Nessa inclusão seria de boa cautela constar na redação que a abrangência se daria a quaisquer cerimônias funerárias, religiosas ou não, isso a fim de prevenir eventuais dúvidas ou debates desnecessários.
6.4-PEQUENO AJUSTE NO § 3º. DO ARTIGO 20 DA LEI 7.716/89

Dadas as inclusões dos §§ 2º.-A e 2º.-B no artigo 20 da Lei 7.716/89, a Lei 14.532/23 teve que promover um pequeno ajuste no § 3º., do mesmo dispositivo.
O artigo 20, § 3º., da Lei 7.716/89 sempre estabeleceu providências cautelares que o juiz pode tomar, ouvido o Ministério Público, ainda antes do Inquérito Policial, sob pena de desobediência do sujeito passivo da ordem. Essas providências, que não se alteraram em nada com a Lei 14.532/23, são as seguintes:
I – o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo;
II – a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da publicação por qualquer meio;
III – a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores.

O problema é que essas medidas cautelares se referem aos casos dos crimes do artigo 20 praticados por meios de comunicação sociais, redes sociais ou publicações de qualquer natureza, razão pela qual o § 3º. iniciava com a seguinte dicção: “No caso do parágrafo anterior”. Na época não havia problema, já que o “parágrafo anterior” ao 3º. era realmente o 2º. Acontece que agora permeiam entre o § 2º. e o § 3º. os §§ 2º.-A e 2º. – B, de modo que o “parágrafo anterior” ao § 3º. passa a ser o § 2º. – B e não o § 2º. Como o § 3º. quer se referir ao § 2º. e não ao § 2º. – B, foi necessário ajustar o início do texto que agora diz: “No caso do § 2º. deste artigo” e prossegue com a mesma redação anterior intacta até enumerar as providências cautelares supra expostas.
Como se vê trata-se apenas de uma questão material de redação que em nada altera o sentido do texto legal.

7-NORMA GERAL DE HERMENÊUTICA DA LEI DE RACISMO – ARTIGO 20 – C DA LEI 7.716/89 – UMA VISÃO CRÍTICA

A Lei 14.532/23 inclui na Lei 7.716/89 uma norma geral de hermenêutica que indica ao intérprete e aplicador do Direito o alcance e os limites a serem respeitados na exegese de seus dispositivos para a caracterização de racismo ou discriminação (artigo 20 – C).
É relevante a transcrição da normativa em estudo:
Art. 20-C. Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência.

A diretriz acima tem recebido da incipiente doutrina a interpretação de que vem para eliminar qualquer dúvida quanto à inviabilidade de reconhecimento do que se convencionou chamar de “Racismo Reverso”. Dessa forma, usando o exemplo da “Injúria Racial”, ofender um negro com xingamentos tais como “macaco indecente” (sic) constituiria crime de racismo. Mas, por outro lado, ofender um branco com impropérios como “branco azedo indecente” (sic) não constituiria crime de racismo, mas mera Injúria Simples. Na mesma toada recusar vaga de emprego a alguém somente porque a pessoa é branca não constituiria crime de racismo, mas constituiria se a recusa se desse devido à pessoa ser judia. Enfim, o racismo somente existiria em uma espécie de interpretação histórico – retroativa hipotética, abrangendo pessoas e grupos que já sofreram discriminação ao longo da História e são classificados como “minorias” em um amplo sentido (não somente numérico). E mais, que a critério do julgador, sofram “constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida” derivados de “tratamento ou atitude” que normalmente não seriam dispensados a outros grupos “em razão da cor, etnia, religião ou procedência”.
O disposto no artigo 20 – C ora em estudo se constitui numa norma de hermenêutica que se apresenta na forma de uma espécie de elemento normativo geral ou constante no que diz respeito à abrangência do microssistema criminal da Lei de Racismo. Importa dizer que para a caracterização de qualquer dos crimes previstos na lei sob comento será necessário satisfazer os requisitos do dispositivo em questão.
Parece não restar dúvida de que o intento do legislador é realmente limitar o alcance dos tipos penais da Lei 7.716/89, afastando-os nos chamados casos de “Racismo Reverso”.
E essa tendência do legislador se alimenta em “teorias” ou ideologias identitárias que praticamente são hegemônicas nos meios ditos intelectuais brasileiros e também estrangeiros.
Autores como Silvio Almeida apresentam uma visão do racismo como “estrutural” de modo que a discriminação racial se fundamenta no exercício de poder sobre oprimidos. Sem isso é impossível, segundo o autor, atribuir vantagens ou desvantagens relativas à raça, cor, etnia etc. Os brancos, por exemplo, não teriam um histórico de discriminação racial ou de cor a justificar sua condição como vítimas de racismo.
No mesmo sentido se manifesta Djamila Ribeiro:
Não existe racismo de negros contra brancos ou, como gostam de chamar, o tão famigerado racismo reverso. Primeiro, é necessário se ater aos conceitos. Racismo é um sistema de opressão e, para haver racismo, deve haver relações de poder. Negros não possuem poder institucional para ser racistas. A população negra sofre um histórico de opressão e violência que a exclui. Para haver racismo reverso, precisaria ter existido navios branqueiros, escravização por mais de trezentos anos da população branca, negação de direitos a elas. Brancos são mortos por serem brancos?

A mesma autora, em outra obra de sua lavra, faz a seguinte afirmação condizente com a inviabilidade do chamado “Racismo Reverso” e com a visão do racismo como uma estrutura social e não como conduta humana:
“O racismo é, portanto, um sistema de opressão que nega direitos, e não um simples ato de vontade de um indivíduo”.
Schucman também considera a impossibilidade do “Racismo Reverso”. Para ela uma pessoa branca não pode ser vítima de racismo por parte de uma pessoa negra. Se ela é maltratada por uma pessoa negra por ser branca, isso constituiria “preconceito e discriminação”, mas não “racismo”. Preconceito e discriminação seriam componentes das relações interpessoais, já o racismo estaria ligado a uma “estrutura social de dominação”.
A autora apresenta aquilo que ela entende por racismo:
Racismo pode ser pensado como uma dominação baseada em uma doutrina que acredita que há uma raça superior e a partir desta doutrina há uma política em que pessoas desta raça têm privilégios e acessos no poder econômico, político, jurídico, ou seja, na estrutura social. Em geral para que haja racismo contra um grupo é preciso que haja uma história de longa duração de dominação de um grupo contra o outro, baseado na ideia de raças superiores e raças inferiores.

Schucman não nega a possibilidade de que brancos venham um dia a ser vítimas de racismo, desde que sejam dominados, discriminados e oprimidos como raça inferior numa futura estrutura social. Para ela os brancos nunca foram escravizados ou dominados na História da humanidade. Cita a escravização de negros e índios e afirma que “nunca houve na história da humanidade um grupo que fez algo próximo a isto com pessoas classificadas como brancas”.
Racismo, segundo a autora, não seria externado em condutas racistas, mas como “uma forma de legitimar as estruturas sociais de poder”. Portanto, “se um grupo não tem poder na estrutura o sujeito deste grupo não consegue praticar racismo”. Traduzindo essa afirmação de Schucman da sociologia e da política para o Direito, chega-se então à conclusão de que a prática de delitos de racismo para um negro, um judeu, um índio contra um branco etc., configuraria a figura do “crime impossível” por impropriedade absoluta do objeto (inteligência do artigo 17, CP).
Não é possível concordar com o arcabouço ideológico que dá origem e sustento ao reducionismo promovido pelo artigo 20 – C da Lei 7.716/89, introduzido pela Lei 14.532/23, alijando da proteção legal categorias inteiras de pessoas e promovendo discriminação injusta, exatamente por meio de um diploma que deveria combater essa espécie de conduta. Além disso, o artigo 20 – C em destaque apresenta péssima técnica jurídica redacional que o torna inconstitucional devido ao seu elevadíssimo grau de subjetividade, insegurança jurídica e até mesmo um elemento divinatório embutido em sua estrutura.
É preciso tomar cuidado com eventuais “boas intenções”, as quais muitas vezes são eivadas por um “efeito perverso” embutido capaz de perturbar a ordem social ao invés de ocasionar pacificação. Como alerta Boudon, a uma decisão refletida e bem intencionada pode estar associada uma consequência indesejável e até mesmo nociva.
Iniciando pela análise estritamente jurídica da questão, é nítido que a orientação hermenêutica do artigo 20 – C muito mais desorienta do que orienta. Usando a expressão equívoca “grupos minoritários” já abre uma enorme margem de interpretação subjetiva para o julgador. Entendemos que por “grupos minoritários” não se estaria referindo a uma questão quantitativa, mas sim a condições de discriminação a que tais grupos seriam normalmente submetidos. No entanto, como já dito, a expressão é dúbia. Ainda que se possa chegar a um consenso sobre esse aspecto de que a condição de “minoritário” se refere à segregação, discriminação ou preconceito e não à simples quantidade. Quais seriam então esses tais grupos que deveriam ser especialmente protegidos pela Lei de Racismo, e pior, quais seriam os grupos que não deveriam receber a especial proteção da Lei 7.716/89? Quais seriam “os eleitos” e quais seriam os “enjeitados” ou “alijados” do manto protetor da lei? A lei deveria responder. Não responde. Fica a critério subjetivo do julgador. Mas, sendo característica de toda lei a generalidade, o correto não seria estabelecer grupos privilegiados e grupos alijados, mas abranger de maneira igualitária todas as pessoas, todos os seres humanos que não merecem nunca ser discriminados em razão de raça, cor, origem, etnia, religião ou seja lá o que for. A discriminação (positiva ou negativa) não se justifica no que diz respeito à proteção jurídica conferida aos seres humanos neste aspecto, ainda mais diante do artigo 3º., IV, CF que proíbe os preconceitos e quaisquer outras formas de discriminação, obviamente não se dirigindo a norma constitucional ao grupo X ou Y, mas a todos, indiscriminadamente.
Cabe indicar a definição de lei apresentada por Maciel:
“Norma escrita, geral, abstrata, permanente, garantida pelo Poder Público, aplicável por órgãos do Estado enquanto não revogada” (grifo nosso).
Essas lições sobre a generalidade da Lei são muito antigas e tradicionais. Papiniano afirma que “a lei é uma norma ‘geral’ ou comum (“Lex est commune praeceptum”) e Ulpiano chama a atenção para o fato de que a lei “é uma regra estabelecida não em vista de um caso individual, mas de todos os casos da mesma espécie” (“Jura non in singulas personas, sed generaliter constituuntur”).
A generalidade da lei, neste contexto, nos remete ao “Princípio da Igualdade” e à excepcionalidade de tratamentos diferenciados, os quais devem ser sempre muito bem justificados. No escólio de Mello:
As discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição (grifos no original).

Por obviedade não é interesse “prestigiado pela Constituição” que grupos inteiros fiquem desprotegidos contra práticas racistas, somente com sustento em ideologias, idiossincrasias e subjetivismos identitários mais ou menos acatados no debate público.
Vale mencionar a crítica feita por Costa, David e Bretz quanto à “despropositada” terminologia “minorias”:
“O objeto da proteção legal – e a sua melhor exegese – deve-se nortear pela necessidade de se construir um país livre de qualquer tipo de intolerância entre todos os seus habitantes, não reduzindo isso ao rótulo de minorias”.
E, além disso, como já destacado, não é somente de puro subjetivismo e redação aberta que sofre o artigo 20 – C da Lei 7.716/89 na forma dada pela Lei 14.532/23. Ao final, exige o dispositivo um poder divinatório sobre – humano do magistrado. Ele deve, por assim dizer, adivinhar se o “constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida” seria ou não “usualmente dispensado” a dado grupo social em razão da “cor, etnia, religião ou procedência”. Usamos aqui da hipérbole para conferir ênfase à exigência legal de um prognóstico a ser realizado pelo julgador sem qualquer parâmetro legalmente estabelecido. Uma norma de orientação hermenêutica que traz ao mundo jurídico, no microssistema dos crimes de racismo, um elemento normativo geral ou constante totalmente indeterminado não pode prosperar diante do “Princípio de Estrita Legalidade”, o qual exige redações que tenham um sentido semanticamente muito bem determinado e estabelecido.
Na lição de Ferrajoli, mister se faz que o legislador obedeça criteriosamente “uma regra metajurídica de formação da linguagem penal que para tal fim” lhe prescreve “o uso de termos de extensão determinada na definição das figuras delituosas, para que seja possível a sua aplicação na linguagem judicial como predicados ‘verdadeiros’ dos fatos processualmente comprovados”. Em suma, não basta que o legislador produza leis de acordo com o processo legislativo, mas é imprescindível que ele produza leis claras, taxativas, com descrições objetivas. É essa característica de determinação segura do conteúdo da lei penal que lhe empresta validade sob o aspecto “substancial”.
E no caso do artigo 20 – C da Lei de Racismo, com a redação dada pela Lei 14.532/23 não estamos tratando de um tipo penal específico, mas de uma disposição legal hermenêutica que se espraia para todos os diversos tipos penais previstos na Lei 7.716/89. É como se legislador tivesse inoculado os crimes da Lei de Racismo com um vírus letal que propaga a violação do “Princípio da Legalidade Estrita” e, consequentemente, contamina todo o diploma com inconstitucionalidade aguda. A interpretação dúbia do dispositivo tem o potencial evidente de ocasionar terríveis situações de inconstitucionalidade por insuficiência protetiva e lesão à igualdade.
Quanto à ideologia que permeia e dá sustento à redação do artigo 20 – C, deve-se concordar com a assertiva de que não existe “Racismo Reverso”. Realmente isso não existe. O que existe é simplesmente “Racismo” quando se tem preconceito, se discrimina ou segrega quem quer que seja. A expressão “Racismo Reverso” é uma espécie de masturbação intelectual que se lastreia em uma ilusão.
Não é correto e não corresponde à realidade palpável a afirmação de que o racismo não se opera entre pessoas, mas decorre da “estrutura da sociedade”. O racismo, como qualquer ação humana, é algo que opera “de pessoas sobre pessoas”. Estruturas e instituições são abstrações incapazes de ação ou omissão e quando se atribui a elas no discurso alguma conduta, isso se faz de forma obviamente figurada ou analógica.
Quando autoras como Djamila Ribeiro afirmam que o racismo é um “sistema” e não um “ato de vontade de um indivíduo” para assentar a tese do chamado “Racismo Estrutural”, isso só não causa perplexidade em quem não pensa um minuto sequer na assertiva em confronto com a estrutura do real. De acordo com ela existe Racismo como “estrutura” ou “sistema”, mas não como “ato individual”, ou seja, há racismo, mas não há racistas ao mesmo tempo em que tudo e todos são racistas, com exceção dos eleitos como oprimidos. É visível que uma construção como essa não tem sustento na realidade, não passando de uma abstração discursivo – intelectual que jamais será verificada no mundo da vida.
Como é possível que uma construção intelectual tão apartada do real se imponha e seja capaz de exercer grande influência no mundo jurídico a ponto de fundamentar a redação de um importante artigo de lei?
É preciso trazer à discussão o conceito de “estrutura de plausibilidade”, segundo consta elaborado pelo sociólogo Peter L. Berger. A “estrutura de plausibilidade” consiste em “estruturas de pensamento aceitas por uma cultura específica de forma geral e quase inquestionável”.
Em nosso ambiente de tolerância intolerante ou de tolerância seletiva ou repressiva (Marcuse) , torna-se difícil fugir dos influxos de uma hegemonia intelectual, cultural, social e política que relega ao ostracismo ou ao moderno “cancelamento” todos aqueles que ousem, ainda que no mais mínimo detalhe, destoar de suas ideias. Não é difícil acomodar-se e ceder a essas influências e pressões seja por ações ou, no mínimo, pelo engolfar de uma “espiral de silêncio” que intimida o dissenso, criando, desta forma, uma “estrutura de plausibilidade” para certas ideologias praticamente intocáveis, independentemente de seu valor ou desvalor, de seu acerto ou desacerto e até mesmo de sua razoabilidade. A “tolerância repressiva” ruma para um ponto em que, sob o aspecto da hegemonia cultural, intelectual, social e política vai se assemelhando com um sistema reconhecidamente racista (no amplo sentido em que o termo é hoje reconhecido) ao qual Van den Berghe foi o primeiro a se referir como “Herrenvolk” (“Master Race” ou “Raça Mestre”), no qual há uma “democracia” para uma classe dirigente e “sujeição” absoluta para todos os demais. Van den Berghe se referia a uma sobreposição de poder baseada na etnia ou raça, o que hoje pode muito bem ser transposto para um domínio ideológico também com sustento no preconceito e na arbitrariedade. Um domínio que se evidencia como intrínseca e caracteristicamente “totalitário” no sentido dado por Arendt, que se refere a um “poder absoluto” que “interfere com igual brutalidade com o indivíduo e com sua vida interior”. Uma conformação de domínio ilimitado muito bem descrita na fala do personagem Rubashov da distopia seminal de Koesler:
“Não reconhecemos nenhuma esfera privada, nem mesmo dentro do crânio”.
Vivemos, como aduz Carson, sob o signo de uma “nova tolerância contemporânea” que é “inerentemente intolerante”.
Não enxerga as suas próprias falhas, pois possui uma atitude de superioridade moral; não pode ser questionada, pois se tornou parte da estrutura de plausibilidade do mundo ocidental. Pior ainda, essa nova tolerância é socialmente perigosa e, com certeza, intelectualmente debilitante. Até o bem que deseja realizar é feito melhor de outra maneira.

E prossegue o autor:
Longe de promover a paz, a nova tolerância está se tornando cada vez mais intolerante, fomentando a miopia moral, provando ser incapaz de engajar-se em discussões sérias e competentes sobre a verdade, deixando males pessoais e sociais inflamarem e permanecendo cega às percepções políticas e internacionais do nosso perfil cultural tolerante.

Em meio a esse clima não é difícil entender como e por que o legislador cede facilmente a uma visão excludente identitária numa lei que deveria primar pela inclusão, pela igualdade e pela não – discriminação. Não é difícil compreender como é incapaz de levantar-se e impedir que normas discriminatórias acabem criando um novo clima de ódio e conflito antes inexistente ao invés de contribuir a lei, como deveria, para a paz social. Essa incapacidade de se levantar e fazer a crítica necessária não é apanágio do legislador, mas também do vulgo e dos intelectuais e juristas que corriqueiramente não têm pudores quanto a “sacrificar coragem e princípios no altar do medo”.
Como este autor e este texto não se dobram a essas miudezas, seguimos na crítica ao embasamento sociológico e político do artigo 20 –C da Lei 7.716/89 com redação dada pela Lei 14.532/23.
Não há como discordar do fato de que o Racismo é tão somente uma desastrosa “construção social” que tem seus fundamentos (se é que se pode usar essa palavra) em pseudociência, falsa antropologia, falsa psicologia, falsa biologia, falsa genética etc.
Entretanto, como toda “construção social”, ele é erigido e sustentado, não por estruturas abstratas, mas por pessoas reais que, desgraçadamente, o incorporam. Essa incorporação se manifesta em práticas e preconceitos geradores de discriminação negativa, segregação e opressão em geral. É desse caldeirão de ações humanas que realmente emergem estruturas e até instituições jurídicas (v.g. a escravidão, o apartheid) opressivas, dominadoras, exploradoras e cruéis.
Mediante essa reflexão sobre a origem subjetiva do Racismo e de qualquer “construção social” se pode perceber a evidência de que o Racismo consiste, em primeiro lugar e plano, no tratamento intersubjetivo, na percepção distorcida do “outro”, não sendo possível dar ares de complexidade a uma simplificação indevida que reduz o Racismo ao seu produto final como constructo e estrutura social, ocultando ou olvidando deliberadamente seus antecedentes que, longe de serem contingentes, são absolutamente necessários e constitutivos. A dominação é o resultado final de todo um processo racista que tem início no indivíduo humano e pode atingir qualquer categoria de pessoas, não importando seu “status” social momentâneo ou mesmo ao longo da História. Tanto é fato que, por exemplo, a alegação tão comum de que os brancos nunca foram oprimidos por outros povos brancos ou negros e mesmo escravizados é totalmente falsa. E a noção do escravizado como inferior ou subalterno, seja por questões de origem, política, cultura etc., é também invariável. O Racismo marcado pela relação socialmente construída entre superior e inferior é uma constante histórica e nem sempre esteve voltada somente para determinados povos. Como observa com acerto Banton: “Sempre houve uma tendência nas pessoas para preferirem as da sua ‘própria espécie’ e serem desconfiadas relativamente aos estranhos”. Na mesma senda se manifesta Mattéi, chamando a atenção para as raízes da palavra “bárbaro” na Grécia, associando as pessoas assim classificadas a “uma fala rude, brutal e ininteligível”, uma espécie de “balbucio” ou “barbarophonos” (“aquele que tartamudeia”). Ora, isso nada mais é do que um julgamento de superioridade dos gregos com relação aos chamados povos bárbaros, praticamente assemelhados a animais que mal podem se comunicar pela linguagem. Somente uma visão histórica míope, provinciana e epocal é capaz de reduzir a submissão à dominação a certos povos (negros e índios, por exemplo), afastando brancos dessa realidade sempre presente.
Como ensina N’Diaye:
No curso das suas numerosas guerras de conquista – por exemplo as guerras levadas a cabo por Júlio César -, reduziram a escravos um número considerável de prisioneiros, subjugados, por meio de armas ou “raptados” nas suas longínquas colônias. Na sua maioria, eram ditos de “raça” branca. A Roma Antiga inaugurou o recurso à escravatura em larga escala para a produção de mercadorias. Chegará a haver três milhões de escravos em Itália, ou seja, quase 30 por cento da população. A revolta de Espártaco, glorificada pelo cinema, custou a vida a dezenas de milhares de escravos. Após um combate feroz, o general Crasso imortalizou o seu nome ao mandar crucificar dez mil escravos ao longo da Via Ápia, de Nápoles a Roma. (…).
Até a tomada de Constantinopla pelos turcos, os “eslavos” – nome dado pelos árabes muçulmanos aos prisioneiros brancos europeus – foram bastante numerosos no mercado de escravos.

Antes de escrever publicamente, como fez a autora supra mencionada, Lia V. Schucman, que os brancos “nunca foram escravizados” e que “nunca houve algo próximo à escravidão e exploração imposta aos negros e índios a povos classificados como brancos”, é preciso livrar-se dos “manuais” levianos e dos lugares comuns para efetivamente estudar obras que tragam a história humana com base em pesquisa de qualidade e fontes primárias. E o mesmo vale para as ilações de Silvio Almeida e Djamila Ribeiro. Lembremos com Silveira que “quem pensa pouco e mal, imagina muito e pessimamente”. Vale transcrever a exposição de Hughes:
Mas não há mal tão grande que não possa ser exagerado e este tornou-se o projeto de recentes afrocentristas, que desejam inventar uma espécie de história medicinal em que toda a culpa pela invenção e prática da escravidão negra é deposta na porta dos europeus. Isso é profundamente não – histórico, mas está se firmando na consciência popular através dos novos currículos.
Houve três grandes revoltas de escravos na história humana. A primeira, chefiada pelo gladiador trácio Espártaco contra os romanos, ocorreu em 73 a.C. A terceira foi na década de 1790, quando o grande revolucionário negro Toussaint l’Ouverture e seu exército de escravos tomaram o controle de São Domingos dos franceses, apenas para serem derrotados por Napoleão em 1908. Mas a segunda ficou a meio caminho entre essas duas, no meio do século IX d.C., e é menos documentada do que elas. Sabemos que os insurgentes eram negros; que os califas abássidas muçulmanos do Iraque os tinham trazido da África Oriental para trabalhar, ao milhares, nas salinas do delta do Tigre. Esses rebeldes repeliram os árabes durante quase dez anos. Como os quilombolas do Brasil séculos depois, estabeleceram suas fortalezas nos pântanos. Pareciam inexpugnáveis, e na verdade só foram esmagados pelos muçulmanos em 883. Eram conhecidos como Zani, e legaram seu nome à ilha de Zanzibar, na África Oriental – que, não por coincidência, se tornaria e continuaria a ser o centro do mercado de escravos no mundo árabe até o último quartel do século XIX.
A revolta dos Zani 1100 anos atrás devia lembrar-nos da absoluta falsidade da linha de argumentação hoje em moda que tenta sugerir que a escravização de negros africanos foi invenção de brancos europeus. É verdade que a escravidão estava inscrita na base do mundo clássico ; a Atenas de Péricles era um Estado escravagista, e também o era a Roma de Augusto. A maioria de seus escravos era de brancos caucásicos, e “na Antiguidade, a servidão nada tinha a ver com fisionomia ou cor de pele”. A palavra inglesa slave significava uma pessoa de origem eslava. No século XIII, tinha-se espalhado para outros povos caucásicos subjugados por exércitos da Ásia central: russos, georgianos, circassianos, albaneses, armênios, todos os quais encontravam compradores de Veneza à Sicília e Barcelona, e por todo o mundo muçulmano.
Mas o comércio de escravo africano como tal, o tráfico negro, foi uma invenção muçulmana, desenvolvida por comerciantes árabes com entusiástica colaboração de comerciantes negros africanos, institucionalizada com a mais implacável brutalidade séculos antes de o homem branco aparecer no continente africano, e continuando muito depois que o mercado de escravos na América do Norte foi afinal esmagado.
Historicamente, esse tráfico entre o Mediterrâneo e a África subsaariana começa com a própria civilização que os afrocentristas estão tão ansiosos para reclamar como negra – o antigo Egito. A escravidão africana já estava em pleno vigor muito antes disso: mas no primeiro milênio a.C. o faraó Ramsés II gabava-se de prover os templos com mais de 100 mil escravos, e na verdade é inconcebível que a monumental cultura do Egito pudesse ter surgido sem uma economia escrava. Durante os 2 mil anos seguintes, as economias básicas da África subsaariana permaneceram ligadas à captura, uso e venda de escravos. Esculturas da vida medieval mostram escravos amarrados e amordaçados para sacrifício, e os primeiros exploradores portugueses da África, por volta de 1480, encontraram um grande mercado de escravos estabelecido desde o Congo até Benim. Havia grandes fazendas de escravos no império Mali dos séculos XII e XIV, e todos os abusos e crueldades impostos a escravos no Sul dos Estados Unidos antebellum, incluindo a prática de gerar crianças para venda, eram praticados pelos governantes negros das cidades que os afrocentristas hoje exibem como exemplos saneadores de alta civilização, como Tombuctu e Songai. (…).
Como demonstra Ronald Oliver, o mais eminente dos eruditos africanos e editor geral da História da África, de Cambridge, em oito volumes: tudo o que sabemos do tráfico de escravos e de sua expansão entre os séculos XVI e XIX confirma que ele não poderia ter existido sem a entusiástica cooperação dos Estados tribais africanos, construídos com base no estoque de cativos gerados por suas guerras implacáveis.
A imagem divulgada por ficções de história pop do tipo Raízes – escravistas brancos irrompendo com alfanjes e mosquetes na vidas assentadas de pacíficas aldeias africanas – está muito longe da verdade histórica. Ao longo dos séculos, já havia um sistema de mercado, e seu abastecimento era controlado por africanos. (…).
Ao contrário dos ingleses e americanos, nem os árabes nem os reis africanos no século XIX viam a menor razão humanitária para tomar medidas contra a escravidão. Os mercados de escravos que abasteciam os emirados árabes ainda operavam em Djibouti na década de 50; e desde 1960 florescem na Mauritânia e no Sudão. Ainda há comunicados de escravidão no norte da Nigéria, Ruanda e Níger. Jean – Bedel Bokassa, imperador da República Centro – Africana, a quem Giscard d’Estaing, com sua fome de diamantes, abraçou ostentosamente como seu irmão negro na época da coroação em 1977, mantinha centenas de escravos, e de vez em quando preparava um massacre deles para sua diversão. Se, como certa vez observou H. Rap Brown, a violência é tão americana quanto a torta de maçã, a escravidão parece tão africana como o inhame. (…).
África, Islã e Europa, todos participaram da escravidão negra, impuseram-na, lucraram com suas misérias. Mas no fim só a Europa (aí incluindo a América do Norte) mostrou-se capaz de conceber sua abolição.

A prestidigitação do mal denominado “Racismo Científico” é que é uma novidade próxima a induzir muitos ao erro de sobrepor a relação de dominação ao preconceito, quando, na verdade, tais coisas são simbióticas e é do preconceito inicial que deriva a dominação. A própria ideia de “tipos raciais” que dá origem à chamada “Teoria dos Tipos Raciais” é datada somente de meados do século XIX. Essa “doutrina” (sic) tem início com a publicação do livro de Robert Knox, “The Races of Men” em 1850, secundado pela obra de Josiah Clark Nott, George Robins Giddon e Samuel George Morton, “Types os Mankind” em 1854.
A base, a origem do Racismo está no preconceito e a dominação dos sujeitos passivos desse preconceito é apenas uma consequência. Somente por essa razão já seria desejável reprimir o preconceito venha ele de onde e de quem vier e seja ele contra quem for, reconhecendo o grave fenômeno do racismo e não o afastando por qualquer subterfúgio ou pretexto. Há coisas que devem ser eliminadas e reprimidas em sua mais tenra origem, pois quando se desenvolvem, ainda que timidamente, já se tornam muito mais difíceis de serem combatidas. Portanto, pode haver já Racismo com o preconceito. É o Racismo nascente que, tal qual serpentes filhotes tem tanto ou mais veneno do que as adultas.
Vale mencionar a visão atual ampla de “Racismo” de Banton:
Hoje em dia, as relações raciais têm de ser entendidas não como o resultado de qualidades biológicas, mas como o modo de os indivíduos, em diferentes situações, alinharem com aqueles que percebem como aliados, e em oposição a outros. A maneira como alinham depende de muitos fatores, e não exclusivamente de oposições políticas, interesses econômicos, crenças a respeito da natureza dos grupos sociais e outras circunstancias gerais. Depende também de escolhas humanas, da liderança e da responsabilidade em situações críticas que marcam os princípios de novos períodos na história política.

Retornando aos argumentos de Schucman, que nada mais são do que repetição de lugares – comuns nos discursos que pretendem afastar o que chamam de “Racismo Reverso”, vale destacar um recurso normalmente utilizado para chocar o interlocutor com uma situação posta em analogia aos dias correntes. Como o Racismo seria algo derivado do poder e apenas assim se manifestaria, a autora, na esteira de muitos outros, se vale de uma narrativa que parece convincente. Ela pergunta se seria possível a um Judeu, na época no Nazismo, na Alemanha, ser racista contra um alemão nazista. A resposta óbvia é que não. E dessa resposta a esse exercício mental, a autora acena com a bandeira de vitória intelectual.
De nossa parte também poderíamos criar outro exemplo mais próximo. Seria possível a um negro escravizado no Brasil na época da escravidão, ser racista contra um feitor ou um senhor de escravos? É claro que a resposta é não.
Ora, então o argumento contrário ao chamado impropriamente de “Racismo Reverso” (já explicamos que racismo é racismo), teria consistência? É o que essa espécie de argumentação erística faz parecer, mas se trata de um truque.
O que a autora faz e nós fizemos neste texto, “ad argumentandum tantum”, foi explorar uma das “Falácias de Raciocínio na Indução”, qual seja, a “Falácia da Analogia Falha” ou da “Falsa Analogia”.
Como ensinam Corbett e Connors, “as analogias são especialmente vulneráveis quando se concentram em semelhanças irrelevantes e inconsequentes entre duas situações e ignoram as diferenças pertinentes e significativas” (grifo nosso). Nessas circunstâncias, “a capacidade de persuasão das semelhanças é enfraquecida, ou até totalmente anulada, pelas dissemelhanças”.
As enormes diferenças entre os casos expostos acima e uma situação, por exemplo, de “Injúria Racial” de um negro contra um branco ou de um judeu contra um alemão hoje são de tal monta que inexiste analogia e muito menos equiparação possível. Os casos apontados como esclarecedores são, na verdade, inservíveis, dado seu ingente anacronismo.
Na época do nacional – socialismo alemão, em primeiro lugar, qualquer impropério, crítica mais acerba ou até ofensa que um judeu fizesse a um alemão nazista, nada mais seria do que um “gemido” de revolta diante de uma situação verdadeira. Dissesse o que dissesse a respeito de um alemão nazista, o judeu não estaria dizendo nada demais. No entanto, era-lhe impossível até fisicamente essa prática, pois que resultaria em sua imediata eliminação física. O mesmo se diga de um negro escravizado perante um senhor de escravos ou um feitor, o que ele poderia dizer de mal a respeito de tais pessoas que não fosse plenamente justificado como uma manifestação de revolta e não racismo ou sequer injúria. Mas, novamente o pobre negro jamais teria condições reais de assim agir, a não ser que assumisse a certeza de ser também eliminado fisicamente ou, no mínimo, submetido a surras de chibata no tronco e outras torturas abomináveis e insuportáveis, as quais muitas vezes também o levariam à morte.
Agora, será que qualquer dos dois casos é condizente com a situação de um judeu ou de um negro na atualidade? Não é que se pretenda afirmar que antissemitismo não existe mais na Alemanha ou no mundo e nem que o preconceito de cor seja uma espécie de fantasia, mas as proporções entre as circunstâncias históricas não podem jamais ser comparadas sem uma tremenda ofensa à racionalidade. Só um cego deliberado ou alguém e não parou um pouco para pensar no argumento admitiria a analogia e muito menos a equiparação. Se um judeu ofender com elementos raciais a um alemão hoje em dia, será que poderíamos concordar que, invariavelmente, a ofensa seria justa? O judeu seria eliminado sumariamente? Um negro que ofenda com elementos raciais um branco hoje no Brasil seria arrastado e morto ou torturado, inclusive com apoio de regras institucionalizadas ou consuetudinárias? A tal relação de poder que impede o indivíduo de ser racista era uma realidade naquelas situações (nazismo e escravidão negra), mas não tem absolutamente nada a ver com a realidade social alemã ou brasileira contemporâneas. Tudo não passa de ilusionismo erístico, só não se sabe se praticado deliberadamente por tais pessoas (desonestidade intelectual) ou se fruto de um déficit intelectual criado pela ideologização do pensamento. Acaso nos fosse dado arriscar um palpite, apontaríamos para a segunda hipótese como mais provável, tendo em vista a indigência cultural e intelectual em que vivemos pela opressão ideológica.
Em continuidade lembremos que a falsa superioridade que caracteriza o Racismo não é somente física, intelectual, genética, política, econômica etc. Há a perigosa e insidiosa crença ou sentimento de “superioridade moral”, advinda frequentemente daqueles que se julgam injustiçados ou vitimizados, de tal forma que, em seu pensamento revolucionário, se sentem autorizados a cometer quaisquer ações ou omissões no presente em nome de uma suposta justificação em um alardeado futuro glorioso de igualdade e fraternidade, bem como em razão de um reacionário retorno ao passado para uma espécie de vendeta ou cobrança de dívidas intergeracionais. Na verdade, tudo acaba se reduzindo a uma espécie de vingança perpetrada contra bodes expiatórios eleitos para pagarem os pecados cometidos por outrem. Pior que isso, pecados que mais ou menos remotamente também foram cometidos pela ancestralidade dos atuais revolucionários que se autoproclamam credores incontestáveis.
Essa “superioridade moral” sentida e vivida pelas chamadas “minorias” é que as habilita a se proclamarem isentas diante do Racismo. Mas, o Racismo como manifestação da crença na relação supostamente “justa” (sic) entre superior e inferior, se mostra, sem qualquer pudor, alicerçado nessa “superioridade moral” advinda de anterior inferiorização sofrida. É como se ressentimento e ódio se tornassem virtudes, virtudes estas tão excelentes que seriam capazes de blindar as pessoas de condutas racistas. O sofredor se torna superior por meio da referência ao próprio sofrimento e então, mesmo ao impor sofrimento a terceiros, ainda que inocentes, tem uma certeza de ser virtuoso e imune ao mal.
A criação da figura do “Racismo Reverso” para, em seguida, refutá-lo de maneira indelével, revela-se como uma “construção social” artificial, ou ainda pior, como uma abstração puramente intelectual sem correspondência na realidade, um signo de significado equívoco e sem referente, uma espécie de “espantalho erístico” produzido com o fito de ser derrotado num teatro no qual a aparência de “ter razão” é a única coisa que importa, enquanto a busca dialética pela verdade é desprezada.
Fato é que o “Racismo Reverso” realmente não existe, nunca existiu nem existirá. O que existe desde sempre é o “Racismo” sem adjetivações ou qualificações. Racismo é Racismo, não importando de quem parta e a quem atinja o preconceito, a discriminação negativa, a segregação, a ofensa ou a opressão. Pretender minimizar de qualquer maneira alguma forma de preconceito e suas consequências ou desdobramentos, é abrir as portas para o ódio racial, o conflito e o ciclo vicioso que se segue nessas circunstâncias.
Comungam desse entendimento na área jurídica William Douglas e Irapuã Santana do Nascimento da Silva, cujo texto tomamos a liberdade de transcrever em parte:
Entendemos, com o apoio da doutrina, que o racismo pode ser praticado por qualquer pessoa contra qualquer pessoa. Daí a impossibilidade de se cogitar uma espécie de reversão. Não é que não exista racismo reverso porque minorias não possam ser racistas: não existe racismo reverso porque todo e qualquer racismo é… racismo! (…).
A discriminação ou o preconceito racial estão presentes em diversas discussões, quando falamos em barreiras imigratórias, por exemplo, que não necessariamente se encaixam na dicotomia “branco x negro”. Com isso, é possível enxergar o racismo como um conceito genérico de prática abusiva contra uma pessoa em virtude de sua origem étnica, que possui diversas maneiras de se apresentar. Não há, pois, qualificação posterior sobre quem tem capacidade para praticar ou sofrer, de modo que se afasta, num exercício de lógica, a ideia do racismo reverso. (…).
Destarte, tomada apenas a perspectiva sociológica, o senso comum e o discurso repetidamente alardeado caem por terra. Passando para a esfera jurídica, a ideia de que negros não podem praticar racismo contra qualquer membro de outra etnia fica ainda mais difícil de defender. (…).
A ideia de que alguma raça ou categoria de pessoas possui um salvo-conduto ou imunidade penal para cometer racismo, além de socialmente deletéria, traz consigo um grande erro de genética tipicamente racista: a ideia de que uma raça é melhor ou pior do que outra. Se alguém admite a ideia de que os negros não podem cometer racismo, isto importa em validar moralmente a ideia de que uma raça é melhor do que a outra. Não é por aí que vamos mudar a sociedade nem extinguir o racismo.
A ideia de que não existe o “racismo inverso” ou “reverso” termina por veicular uma espécie de “autorização” (i)moral para que haja um movimento de refluxo, no qual, ao invés de se extirpar o racismo, permite-se sua prática por aqueles que tradicional, histórica e majoritariamente o sofrem. Contra essa ideia, dois negros podem ser citados: Martin Luther King Jr. e Nelson Mandela, ambos defensores vigorosos da política de não devolver ódio com ódio, nem racismo com racismo. Ambos defenderam com veemência a superação dos ressentimentos e o começo de um novo tempo onde não se permita que ninguém discrimine o próximo. (…).
Como disse MLK Jr., e disse isso em tempos de grande racismo contra negros nos Estados Unidos, “podemos ter chegado em navios diferentes, mas hoje estamos todos no mesmo barco”. É essa consciência que falta àqueles que querem criar uma salvaguarda e uma defesa teórica de um sentimento, pensamento e ação que todos devemos eliminar: quando uma pessoa, qualquer que seja ela, trata a outra de forma diferente por conta de sua raça ou cor.

E o advento da Lei 14.532/23, com a sua malfadada inclusão do artigo 20 – C no corpo da Lei 7.716/89, obviamente não serviu para alterar a validade do nosso pensamento e nem dos autores supra mencionados. Tanto é fato que William Douglas já se manifestou sobre o tema, criticando fortemente o dispositivo em questão. O autor chama a atenção para dois extremos que consistem em um negacionismo da existência de racismo por um lado e num “identitarismo radical” por outro, ambos prejudiciais ao enfrentamento racional do problema. Com acerto afirma que a luta contra o racismo “deve estar acima de ideologias, ser pauta do Estado, e não de governo, e tarefa de toda a sociedade”. Nesse contexto Douglas chama a atenção para o artigo 20 – C em debate e para a posição de alguns que defendem a tese na inexistência do que chamam de “Racismo Reverso”, em especial de negros contra brancos. O estudioso descarta essa possibilidade, mesmo porque, como nós, reconhece a inconstitucionalidade do artigo 20 – C da Lei 7.716/89 com a redação que lhe foi imprimida pela Lei 14.532/23, incluindo motivações para essa conclusão além daquelas por nós expostas neste texto e com as quais concordamos, e ainda aventando motivação de inconvencionalidade,. Em suas palavras:
O artigo 20-C padece de três vícios de inconstitucionalidade material: 1) violação à independência funcional do juiz; 2) violação à igualdade material (artigo 5º da Constituição); e 3) tratamento desigual e discriminatório entre grupos (artigo 1º, III, e artigo 3º, III e IV, da Constituição).
O princípio da independência é essencial na atividade judicante, o juiz necessita de liberdade para interpretar os casos seguindo a lei e não o interesse de grupos ou ideologias. Assim, ao vincular como o juiz deve interpretar certo dispositivo, sob dado viés identitário/ideológico, o texto atenta contra tal princípio, decorrente do artigo 93 c/c artigos 95 e 127, § 1º, da CF. Em seguida, há violação à igualdade, gerando tratamento desigual e discriminatório, o que atenta contra os arts. 1º, III, 3º, III e IV, e 5º da CF.
Além disso, há um problema de inconvencionalidade, porque a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (adotada pelo Brasil e recentemente promulgada pelo Decreto 10.932/2022) não agasalha essa redução de proteção aos cidadãos que fazem parte das maiorias. Essa redução, trazida pelo artigo 20-C, vai contra o referido tratado.

Em reforço ao afastamento da negação da possibilidade de prática de racismo, por exemplo, de negros contra brancos, Douglas apresenta a reflexão séria e contundente de Risério, em artigo que foi objeto de reações extremadas e tentativas de deslegitimação baseadas não na argumentação e na racionalidade, mas exatamente no uso discriminatório de argumentos “ad hominem” e acusações de “racismo”! É a conhecida técnica autoritária do “efeito silenciador do discurso” descrita por Fiss.
Vale transcrever as menções ao texto de Risério e as conclusões a que se chega quanto ao efeito contrário à pacificação social que se obtém com a imposição legal ideológica do monopólio do racismo para alguns e a isenção absoluta para outros:
Risério explica: “O dogma que reza que pretos são oprimidos e não dispõem de poder econômico ou político para institucionalizar sua hostilidade antibranca é uma tolice. Ninguém precisa ter poder para ser racista”. O professor prossegue defendendo que “a visão atualmente dominante marcada por ignorância e fraudes históricas argumenta que o racismo branco do passado desculpa o racismo preto do presente. Mas o racismo é inaceitável em qualquer circunstância”. Ele cita exemplos de racismo preto antijudaico e contra asiáticos, chamados de “macacos amarelos” (negritos nossos).
Risério acrescenta que “o retorno à loucura supremacista em movimentos negros aparece agora como discurso de esquerda”. Essas ideias já estão no Brasil. Muitas postagens nas redes sociais mostram o agravamento desse viés belicoso (negrito nosso).
Se não houver mudança de rumos, e combate à cultura de segregação e do “nós contra eles”, terminaremos por importar o grau de tensão racial que há nos EUA.
A Constituição fala explicitamente em solução pacífica das controvérsias e que temos que trabalhar pela união de todos e pela fraternidade.

Como já destacado neste texto, o “supremacismo” branco, negro ou seja lá qual for não precisa necessariamente alicerçar-se em uma alegada superioridade intelectual, física, genética etc., mas pode perfeitamente se apresentar sob as vestes insidiosas da “superioridade moral” daqueles que se julgam no direito de vitimizar porque foram vitimizados, de dominar porque foram dominados ou de oprimir porque foram oprimidos. Nesse quadro o “supremacismo”, que é sempre um terrível vício, acaba se travestindo de virtuosismo. Note-se que esse é um traço psicopatológico comumente descrito em violadores e serial killers que repetem condutas sofridas na infância numa espécie de catarse violenta, aplacando seus ressentimentos e dores. Obviamente esse não é o caminho para a pacificação social e o verdadeiro combate ao racismo. Como muito bem aduz Douglas:
O objetivo de que o amor vença e de que haja pacificação social não ganha nada com a exclusão das maiorias de proteção da lei. Se isso ocorrer, o Estado não terá legitimidade moral para querer impedir a autodefesa, a retorsão imediata e até o exercício da justiça pelas próprias mãos. Seria péssimo dizer para as maiorias que não adianta elas procurarem o Judiciário.
Não é viável defender a tese de que se um grupo de pessoas passa a ser discriminado e oprimido em dado momento histórico em razão da cor, raça, etnia, religião etc., como não há antecedentes históricos relativos a esse grupo, não seria possível reconhecer a prática de Racismo. O Racismo só poderia ser legitimamente reconhecido como existente depois de muitos anos ou até séculos, de forma retroativa. Significa admitir que a tomada de decisão de escravizar, exterminar ou segregar uma dada população por motivos raciais ou qualquer outro preconceito, não seria ainda uma conduta racista acaso inexistisse até então uma perseguição prévia dessa população historicamente reconhecida.
Em um exercício de imaginação, digamos que a “ciência” genética aponte um gene ou alguns genes que tornariam brancos ou pessoas nascidas na Grécia inferiores e prejudiciais à sociedade. Essa tese por si mesma já não seria terrivelmente racista? E pior, o eventual projeto de segregar essas pessoas em guetos e exterminá-las, não seria racista em si? Somente depois das barbaridades serem consumadas e passado longo tempo é que, retroativamente, se poderia falar, com propriedade, em racismo?
Parece que essa espécie de “teoria” ou ideologia peca demais no âmbito da prevenção e da repressão útil e eficaz ao racismo como ameaça medonha à humanidade.
Não há como dar credibilidade à afirmação de que se um indivíduo ou grupo não detém poder, então não consegue cometer Racismo. Nem que seja justamente para obter esse poder e reverter a estrutura racista sem acabar com o racismo, apenas mudando seu direcionamento. Em muitos conflitos étnicos na Europa e na África existe claramente o elemento do preconceito e da crença em superioridade e inferioridade intergrupal (pessoas são comparadas a baratas). Mas, os ditos conflitos nada mais são do que embates para a obtenção do poder que, na verdade, nenhum dos dois oponentes detém de forma absoluta. É claro que depois que um deles se sobrepõe militarmente e politicamente ao outro, essa submissão obtida se converte em exercício de poder geralmente incontrastável e quase sempre se convola em genocídio. Mas até lá não havia poder, mas havia Racismo, havia preconceito e discriminação. É preciso compreender que as sementes do mal já são ontologicamente o próprio mal. O problema é que a ontologia em geral passa bem longe dos intelectos infectados pelas mais diversas ideologias e relativismos que marcam o pensamento (ou a ausência de pensamento) pós – moderno.
Como já afirmamos diversas vezes em outros trabalhos, a Justiça não se faz, virando a injustiça de ponta – cabeça ou, numa fórmula mais elegante em analogia à álgebra, a Justiça não é a injustiça com vetor oposto. Quando se raciocina desse modo o máximo que se faz é inverter o sentido ou a valência da injustiça, não se logrando sua diminuição e muito menos sua desejável eliminação. E é nessa toada que, nos moldes da distopia satírica de Eduardo Mello Guimarães, vamos perdendo espaço para aqueles que o autor denomina pelo neologismo de “idiantes” (“idiotas arrogantes”), os quais parecem que realmente já “dominaram o mundo”.

8-A INJÚRIA PRECONCEITO DO CÓDIGO PENAL CONTINUA SENDO CONSIDERADA CRIME DE RACISMO APÓS A LEI 14.532/23?

Em sua redação anterior ao advento da Lei 14.532/23, o artigo 140, § 3º., CP abrangia injúrias com elementos referentes a “raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”.
No entanto, a Lei 14.532/23 promoveu uma cisão no trato da matéria. Cisão esta já devidamente criticada neste trabalho dada sua evidente violação à proporcionalidade.
Agora constituem crime de racismo, previsto no artigo 2º. – A, da Lei 7.716/89 as injúrias marcadas por preconceitos de “raça, cor, etnia ou procedência nacional”. Ficaram relegadas à legislação comum (Código Penal) as injúrias relativas a preconceitos ligados a “religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência”.
Outro detalhe importante: nesses transportes e cisões acabou se perdendo a injúria relativa a questões de “origem”. Este é um problema grave porque conduz a uma atipicidade relativa, não sendo possível a subsunção seja à “Injúria Racial” (artigo 2º. –A, da Lei de Racismo), seja à “Injúria Preconceito” (artigo 140, § 3º., CP). Em nenhum dos dois tipos penais menciona a legislação a palavra “origem”. É verdade que no dispositivo da Lei de Racismo se faz referência à “procedência nacional”, mas essa expressão é muito mais restrita do que a palavra “origem”. A “procedência nacional” se refere à denominada “xenofobia” (aversão aos estrangeiros), de modo que atinge condutas praticadas contra pessoas originárias de outras nações, países ou Estados estrangeiros. Mas, a palavra “origem” abrangeria outras situações diversas do preconceito contra estrangeiros. Estefam afirma que “origem diz respeito à procedência da pessoa (p.ex. ‘favelado’, ‘baiano’)”. Percebe-se que a palavra “origem” é muito mais abrangente do que “procedência nacional”. A palavra “origem” alcança qualquer referência à procedência da pessoa, inclusive a “nacional”. Quando se usa a expressão “procedência nacional” opera-se uma grande e contraproducente redução do conteúdo semântico. Descarta-se o gênero e se utiliza somente uma espécie. Assim sendo, o preconceito injurioso externado com relação à “origem” que não seja especificamente relativo à “procedência nacional” não pode mais se tipificar nem na “Injúria Preconceito” do Código Penal, nem na “Injúria Racial” da Lei de Racismo. Então o fato seria atípico? A resposta é afirmativa. Mas, é preciso observar que a atipicidade será relativa, pois haverá a tipificação normal do crime de “Injúria Simples” (artigo 140, CP). E mais uma vez temos uma atroz violação do “Princípio da Proporcionalidade” pela Lei 14.532/23.
É inadmissível a situação a que se chega com essa eliminação redacional da palavra “origem” em ambos os dispositivos estudados. Ofender uma pessoa por sua procedência nordestina, por exemplo, fato este infelizmente comum, torna-se doravante, uma “Injúria Simples” por força do “Princípio da Legalidade”. Outra situação absurda se dá com alguém que seja classificado como “apátrida”, ou seja, pessoas que não são consideradas nacionais por nenhum Estado conforme sua legislação. O Brasil reconhece a “Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas” (Nova York, 28.09.1954, vigor a partir de 06.06.1960), conforme Decreto 4.246/02, bem como regula a questão em normas internas como a Lei 13.445/17 e o Decreto 9.199/17 relativas à migração. Nitidamente todo apátrida é um hipossuficiente, uma verdadeira “minoria” no sentido mais amplo do termo (quantitativo e qualitativo). No entanto, como somente se prevê agora a devida proteção contra preconceito de “procedência nacional” e não mais a fórmula genérica da palavra “origem”, esses desamparados apátridas, acaso injuriados em razão de sua condição, somente contarão com a proteção penal da “Injúria Simples”. Para ter uma noção da absurdidade do esquecimento dessa categoria de pessoas, pesquise-se sobre a população “Rohingya” em Miamar, considerada a maior população apátrida do mundo com mais de um milhão de pessoas submetidas a perseguição e violência sistemáticas nos dias de hoje. Em todos esses casos e muitos outros a inconstitucionalidade por insuficiência protetiva da eliminação da menção da palavra “origem” nos dispositivos é escancarada. E mais, no caso específico dos “apátridas” também é possível reconhecer uma clara inconvencionalidade, já que a Convenção Internacional respectiva acima mencionada, internalizada pelo Brasil, estabelece como norma em seu artigo 3º., a “não discriminação”. Ora a desproteção ou a proteção insuficiente ocasionada pela alteração promovida pela Lei 14.532/23, acaba se convolando em uma nítida “discriminação negativa” inadmissível.
Na realidade, observando o disposto no artigo 1º. da Lei 7.716/89 percebe-se que toda a Lei de Racismo sofre dessa deficiência quanto à menção da questão genérica da origem, reduzindo seu alcance à “procedência nacional”, o que deveria ser objeto de revisão urgente. Como já dissemos, o ideal seria que a legislação se referisse a qualquer forma de preconceito, discriminação ou segregação de maneira genérica, apresentando-se como uma norma de “interpretação progressiva”.
Embora seja uma saída hermenêutica elaborada pela jurisprudência do STJ e disseminada por parte da doutrina, não nos convence semanticamente a divisão do termo “procedência nacional” em estrangeira e interna, de modo a alcançar, na segunda modalidade citada, as procedências estaduais. Além de evidente manobra de tentativa de conserto da dicção legal deficitária, violando com isso a legalidade, ainda assim ficaria muito difícil, por maior malabarismo que se faça, ajustar a situação a questões de procedência social, por exemplo, tais como ofensas usando a condição de “favelado”, “pobre” etc. O correto seria a manutenção da palavra “origem”, o resto não passa de gambiarra jurídica.
Retornando à cisão entre os crimes do Código Penal e da Lei de Racismo, é preciso saber se a “Injúria Preconceito” prevista no artigo 140, § 3º., CP, abrangendo o emprego de elementos religiosos, etários e capacitistas prossegue sendo considerada como uma espécie de crime de racismo, embora descrita no Código Penal.
Fato é que o STJ e o STF firmaram, antes do advento da Lei 14.532/23 que o crime de “Injúria Preconceito” seria uma modalidade de crime de racismo abrigada na legislação codificada (STJ, AgRg no AREsp 686965/DF, 6ª. Turma, j. 18.08.2015, DJe31.08.2015; STF, HC 154.248/DF, Rel. Min. Edson Fachin). Sem entrar novamente no mérito da alteração legislativa por via jurisprudencial, com violação flagrante da Separação de Poderes e do Princípio da Legalidade, fato é que até então todos os casos de preconceito injurioso eram considerados pelas Cortes Superiores Brasileiras como crimes de racismo. Embora não se tratassem de decisões vinculantes, já que derivadas da jurisprudência e não da lei, fato é que mesmo quando não se aplicasse a orientação do STJ e do STF, acaso a controvérsia chegasse a essas esferas, seria reconhecida qualquer injúria preconceituosa como crime de racismo. Esse era o quadro até então existente sob o prisma prático.
A Lei 14.532/23 positivou o então entendimento jurisprudencial das Cortes Superiores Brasileiras quanto às injúrias referentes “raça, cor, etnia ou procedência nacional”, com a criação do crime de racismo do artigo 2º. – A da Lei 7.716/89. Sobre essa questão não existe mais qualquer discussão ou possibilidade de desconsideração da norma posta.
Porém, como já visto, o legislador, além de olvidar-se do preconceito de “origem”, que ficou realmente sem proteção específica (artigo 140, “caput”, CP), deixou na vala comum do Código Penal a “Injúria Preconceito” relativa a “religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência” (artigo 140, § 3º., CP).
Quanto ao preconceito de “origem”, não se tratando de “procedência nacional” e tipificando-se doravante no “caput” do artigo 140, CP, não há como se falar em crime de racismo, pois que não se trata de caso abrangido pela Lei 7.716/89 e também nunca houve reconhecimento, ainda que jurisprudencial por vias tortas, de que a “Injúria Simples”, mesmo movida por algum preconceito, fosse equiparável ao racismo.
Já quanto ao caso do preconceito religioso, etário e capacitista, previsto como qualificadora da injúria no artigo 140, § 3º., CP existem as orientações jurisprudenciais do STJ e do STF acima mencionadas.
Assim sendo, no que diz respeito ao artigo 140, § 3º., CP, surgirão certamente dois entendimentos:
a)O artigo 140, § 3º., CP, após as alterações da Lei 14.532/23, deixou de ser uma modalidade de crime de racismo, mesmo diante das posições jurisprudenciais do STJ e do STF. Isso porque tais decisões foram tomadas num contexto em que não havia ainda o transplante efetivo da “Injúria Racial” para a Lei 7.716/89. Com a mudança topográfica parcial do conteúdo do artigo 140, § 3º., CP, somente serão considerados como crimes de racismo os casos elencados no artigo 2º. – A, da Lei 7.716/89, voltando o artigo 140, § 3º., a ser um simples crime contra a honra. Dessa forma, a injúria qualificada do § 3º. do artigo 140, CP não é inafiançável e nem imprescritível, seguindo também como um crime de ação penal pública condicionada à representação do ofendido, nos termos do artigo 145, Parágrafo Único, “in fine”, CP.
Assumida essa posição é preciso ter em mente que quaisquer pessoas que estejam respondendo a inquéritos ou processos criminais por Injúria Preconceito religiosa, etária ou capacitista, com tratamento de crime de racismo, não poderão sofrer mais essa espécie de incriminação, mas continuarão respondendo por crime comum contra a honra de forma qualificada. A contagem de prescrição também deverá ser revista, pois que não há imprescritibilidade. E se o caso foi tratado como de ação penal pública incondicionada e passado o prazo decadencial de representação, ter-se-á operado a extinção de punibilidade pela decadência. A Lei 14.532/89, nessa perspectiva, seria “novatio legis in mellius” para os perpetradores de preconceito religioso, etário e capacitista, devendo, portanto, retroagir em seu benefício.
b)Independentemente do advento da Lei 14.532/23 e da cisão dos dispositivos legais, a “Injúria Preconceito” prevista no artigo 140, § 3º., CP, embora com pena diversa do artigo 2º.-A da Lei 7.716/89, conserva sua característica de crime de racismo, mantendo-se o reconhecimento de seu caráter imprescritível e inafiançável. A ação penal deve ser pública incondicionada, como nos demais crimes de racismo e não sujeita a prazos decadenciais. Isso tudo porque embora tenha havido a cisão do tratamento, o crime do artigo 140, § 3º., CP continua com as mesmas características quanto aos casos de idade, religião e capacitismo, que embasaram as decisões do STF e do STJ, não havendo motivo material para qualquer forma de “distinguishing” relativo aos precedentes jurisprudenciais enfocados. A mudança operada pela Lei 14.532/23 não teve o condão de alterar o conteúdo ou a natureza da infração penal do artigo 140, § 3º., CP, ou seja, não a atingiu materialmente, mas apenas formalmente, com relação à topografia de parte da norma, que migrou para a Lei 7.716/89. Dessa forma nada se alteraria a não ser o “quantum” de pena previsto no preceito secundário. Obviamente que aqueles preconceitos praticados antes e que depois migraram para a Lei de Racismo, com previsão de pena maior, não sofreriam o incremento penal porque este não poderia retroagir enquanto “novatio legis in pejus”. Entretanto, a condição de crime de racismo do artigo 140, § 3º., CP continuaria intocada no aspecto jurisprudencial e prático. Salvo se em algum momento o STJ e o STF alterarem seu entendimento sobre o tema, o que não nos parece adequado diante do fato de que a mudança levada a termo pela Lei 14.532/23 foi meramente formal e não material, de modo a não justificar qualquer mudança relativa aos precedentes julgados.
Seria bom lembrar (e seria bom que lembrassem também os mencionados Tribunais Superiores) o fato aduzido por Sannini e Gilaberte de que o STF “enxerga no termo racismo, constitucionalmente empregado, algo que vai muito além das questões de raça, consoante o exposto no HC 82.424 (Caso Ellwanger, 2003)”. Como bem destacam os autores, de acordo com o entendimento do STF, “a palavra ‘racismo”, contextualizada na Constituição Federal de 1988, deve ser entendida como “um racismo social, que relega certas categorias de pessoas a uma situação de ‘semicidadãs’”. Nesse passo não há elemento diferencial entre a discriminação derivada do artigo 2º. – A da Lei 7.716/89 e aquela oriunda do artigo 140, § 3º., CP, tanto é fato que emanam da mesma fonte (antigo artigo 140, § 3º., CP). Se é que se pode esperar uma sistemática jurisprudencial ou coerência decisória, há que reconhecer que a Lei 14.532/23 em nada alterou o quadro que levou o STF e também o STJ a essas posições, não se justificando qualquer mudança interpretativa.
A condição de crime de racismo, com consequentes inafiançabilidade e imprescritibilidade do artigo 140, § 3º., CP prosseguiria na forma de um posicionamento jurisprudencial praticamente incontornável, enquanto que a “Injúria Racial” prevista agora no artigo 2º. – A da Lei 7.716/89 passaria de um mero entendimento jurisprudencial para uma previsão expressa da lei em consonância com o preceito constitucional do artigo 5º., XLII, CF.
Embora, como já exposto neste trabalho, sustentemos firme dissenso com relação a alterações legislativas procedidas à fórceps pela via jurisprudencial, especialmente na seara penal, o reconhecimento da figura do artigo 140, § 3º., CP como racismo é fato consumado, independente do seu mérito. As decisões são não vinculantes, mas, como já se disse, na prática, chegando o caso às Cortes Superiores, prevalecerá o entendimento delas. Dessa forma, adotamos como mais correta a posição exposta no item “b” acima, a qual, a nosso ver, deveria prevalecer. Mesmo porque, ainda que por caminhos tortuosos, seria uma forma de diminuir a violação à proporcionalidade produzida pela Lei 14.532/23 ao deixar parcela da “Injúria Preconceito” na vala comum do Código Penal. Acrescente-se, por oportuno, com as mesmas ressalvas e dissenso relativos às violações da Separação de Poderes e do Princípio da Legalidade, que também não se vê motivação alguma para que, com o advento da Lei 14.532/23 se afaste a condição reconhecida pelo STF de crime de racismo, nos casos de condutas previstas na Lei 7.716/89 por preconceito, discriminação ou segregação homotransfóbica. Embora a Lei 14.532/23 tenha perdido a oportunidade de tratar legalmente da questão, dando fim a uma analogia “in mallam partem” empregada na área penal por via jurisprudencial espúria, não se pode dizer que o surgimento dessa nova legislação tenha alterado em nada as razões de decidir do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) n. 26, de relatoria do Ministro Celso de Mello do Supremo Tribunal Federal. Discordar do ativismo judicial vilipendiador da legalidade e da constitucionalidade, não muda o fato de que essa decisão foi proferida na prática e não sofre qualquer espécie de influência da Lei 14.532/23.
Quanto à questão de ser o crime de ação penal pública incondicionada, afastando-se o prazo decadencial e a necessidade de representação do ofendido, sabe-se que também pode haver discordância, pois há quem entenda que isso violaria o disposto no artigo 145, Parágrafo Único, “in fine”, CP. No entanto, não nos é compreensível como poderia um crime imprescritível ter a punibilidade extinta em 6 (seis) meses por decadência. Não obstante, é preciso ter em mente que, mesmo com a adoção da posição do item “b” essa discussão ainda restará indefinida. Toda essa celeuma desnecessária se dá primeiro por uma ingerência indevida do Judiciário na seara legal e depois por uma atabalhoada alteração legislativa feita pela Lei 14.532/23.

9-NORMA PROCESSUAL PENAL RELATIVA À ASSISTÊNCIA JURÍDICA DAS VÍTIMAS DE RACISMO

A Lei 14.532/23, em meio a vários dispositivos de caráter penal, apresenta uma normativa de natureza processual penal e civil.
Trata-se do artigo 20 – D incluído na Lei 7.716/89, mandando que em todos os atos processuais, civis ou criminais, a vítima dos crimes de racismo deva ser acompanhada de advogado ou defensor público. Note-se que embora a Lei 14.532/23 trate a maior parte do tempo dos crimes de “Injúria Racial” e de “Apologia ao Racismo”, o artigo 20 – D ora enfocado contém uma determinação que vale não somente para esses crimes citados, mas para todos os crimes de racismo previstos na Lei 7.716/89.
Vemos nesse dispositivo uma excelente manifestação dos Direitos Humanos aplicados à vítima, no sentido de assegurar-lhe um Processo Penal e Civil justo.
De acordo com o artigo 20 – D em estudo é possível concluir que a própria vítima poderá, se tiver condições financeiras, constituir advogado ou, em caso de hipossuficiência, receber advogado dativo de convênio com a OAB ou Defensor Público para sua assistência. Ainda que a vítima tenha condições de contratar advogado, mas não o faça, deverá, obrigatoriamente, ser-lhe nomeado defensor público ou advogado dativo conveniado. A redação do dispositivo é imperativa (“deverá”) e não facultativa.
Esse defensor obviamente poderá e deverá ser habilitado no Processo Penal como Assistente da Acusação (artigos 268 – 273, CPP).
No Processo Civil a vítima naturalmente já teria de valer-se de advogado constituído, dativo ou Defensor Público para postular em juízo, razão pela qual a norma enfocada nos parece, SMJ., supérflua.
Um detalhe que nos parece relevante. No Processo Civil não há problema, porque realmente sem o advogado ou defensor não seria possível sequer ingressar com a ação. Mas, no Processo Penal, em se tratando de crimes de racismo, que são de ação penal pública incondicionada, o titular privativo da ação penal é o Ministério Público (artigo 129, I, CF). Então é possível que uma ação penal por crime de racismo venha a ser instaurada sendo fato que a vítima não seja assistida por advogado ou Defensor Público em um, algum ou mesmo todos os seus atos processuais. A indagação que precisa ser feita é a seguinte:
A falta de nomeação de advogado ou Defensor Público à vítima de crime de racismo enseja nulidade do Processo Penal respectivo?
Em tese, poder-se-ia falar em nulidade nos termos do artigo 564, IV “por omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato”. Contudo, não somente a razoabilidade e a instrumentalidade das formas como também as regras legais das nulidades no Código de Processo Penal, indicam para o seu não reconhecimento.
Em primeiro lugar a determinação contida no artigo 20 – D da Lei de Racismo é realizada em proveito da vítima de racismo. Não seria razoável que uma formalidade não cumprida em prol da vítima viesse a prejudicar ainda mais os seus interesses. Sim, porque o reconhecimento da nulidade de um Processo Criminal beneficia o réu e não a vítima, beneficia o racista e não a pessoa discriminada.
Além disso, o artigo 563, CPP, em positivação do “Princípio da Instrumentalidade das Formas”, estabelece que uma nulidade somente será reconhecida e declarada se houver efetivo prejuízo para a acusação ou para a defesa. É evidente que a falta de defensor à vítima não prejudica de forma alguma a defesa e também não atrapalha em nada o trabalho do acusador público (no caso, o Ministério Público). Normalmente não haverá influência na apuração dos fatos, da “verdade substancial” ou na “decisão da causa”, de modo que se afastaria a nulidade de acordo com o artigo 566, CPP, também relativo ao “Princípio da Instrumentalidade das Formas”.
Mas, realmente o principal motivo para não haver nulidade na falta dessa formalidade é o fato de que a vítima não seria em nada beneficiada por isso. Ao reverso, sofreria sobrevitimização ou vitimização secundária. Já teria sido prejudicada pela falta de assistência jurídica no processo criminal e agora veria tal processo anulado, em especial quando houvesse condenação do réu.
Mas e se o réu alegar essa nulidade?
A resposta é que a nulidade não poderá ser acatada, uma vez que se trata de formalidade cuja observância só interessa à parte contrária (artigo 565, “in fine”, CPP).
E no caso de haver absolvição do réu? Será que mesmo assim a nulidade não poderia ser arguida pela vítima e/ou Ministério Público?
A resposta também é não. Isso porque quem deu causa a nulidade não pode arguir sua ocorrência em benefício próprio, nos termos do artigo 565, CPP, parte inicial. O Ministério Público, enquanto fiscal da lei deveria ter zelado pela presença de advogado da vítima ou nomeação de Defensor Público. Sua desídia no cumprimento de suas funções é que deu causa a eventual nulidade, razão pela qual não poderia jamais alegá-la e ter seu pleito acatado. Quanto à vítima, também lhe cabia apresentar advogado constituído ou requerer seus direitos no decorrer do andamento processual. Não o fazendo deu causa àquela falha. Mesmo que se considere que a vítima não tem obrigação legal de ter ciência de seus direitos e deveria ser tutelada pelos agentes públicos envolvidos (Juiz e Promotor), fato é que também não agiu e, mais que isso, a nulidade nessa situação somente pode ser considerada como “relativa” e não “absoluta”, de modo que a falta de arguição no primeiro momento propício convalida o Processo em seus atos.
Assim sendo a falha dos agentes públicos, especialmente do Juiz de Direito em nomear defensor ou assegurar-se de que a vítima é assistida por advogado nos casos de crimes de racismo, deve ficar para a solução na seara administrativa com a responsabilização disciplinar de magistrados e promotores, bem como, eventualmente, de Defensores Públicos omissos.

10- CONCLUSÃO

No decorrer deste trabalho foi analisada a Lei 14.532/23 que alterou a Lei 7.716/89 (Lei de Racismo), sob seus aspectos penais, processuais, constitucionais e convencionais.
Inicialmente foi exposto um breve histórico do tratamento jurisprudencial e legal conferido ao longo do tempo para a chamada “Injúria Racial, Racista ou Preconceito”, objetivando situar o leitor quanto ao desenvolvimento cronológico do tema. Constatou-se que a “Injúria Racial” foi inicialmente inserida como qualificadora da Injúria no Código Penal, sofrendo algumas alterações ao longo do tempo quanto ao seu conteúdo e ação penal. Uma virada interpretativa ocorre com decisões jurisprudenciais do STJ e do STF apontando a “Injúria Racial”, ainda que prevista na legislação codificada e não na lei especial de racismo, como uma modalidade de crime de racismo com todas as suas consequências. Finalmente, vem a lume a Lei 14.532/23 que positiva esse entendimento jurisprudencial.
Procedemos introdutoriamente a um esclarecimento terminológico a respeito das distinções entre os conceitos de preconceito, discriminação e segregação, valendo-nos do escólio de Sannini e Gilaberte, chegando à conclusão de que em geral a conformação do preconceito ainda se dá como um sentimento, um pensamento ou postura interna, de modo que em cotejo com os tipos penais previstos na Lei de Racismo, trata-se de fase de cogitação do “iter criminis”. Os tipos penais descritos na Lei 7.716/89 descrevem condutas de discriminação e segregação em suas variadas formas de expressão externa.
A Lei 14.532/23 teve a virtude de regularizar, ao menos parcialmente, uma situação de violação do “Princípio da Legalidade” e da “Separação dos Poderes”, criada por um ativismo judicial agressivo do STJ e do STF.
Com a positivação da “Injúria Racial” no artigo 2º. – A da Lei 7.716/89, o que era uma espúria atividade jurisprudencial se torna uma previsão normativa obediente ao “Princípio da Legalidade”.
Não obstante essa virtude, a legislação em estudo comete o erro de promover uma cisão no tratamento dessa espécie de injúria preconceituosa, deixando no Código Penal questões relativas à religião, idade e deficiência (artigo 140, § 3º., CP). A partir daí várias lesões ao “Princípio da Proporcionalidade” são constatáveis.
Na verdade a melhor opção para o tratamento da matéria seria a previsão de uma legislação que se referisse a atitudes preconceituosas, discriminatórias negativas e segregatórias em geral, na forma dos tipos penais já previstos na Lei 7.716/89. A enumeração de espécies fechadas de racismo é contraproducente e não propicia uma lei à qual se possa aplicar uma chamada “interpretação progressiva”, entendida como aquela “que busca amoldar a lei à realidade atual. Evita a constante reforma legislativa e se destina a acompanhar as mudanças da sociedade”. A omissão do legislador na Lei 14.532/23 e sua opção pela continuidade de enumeração taxativa de espécies de racismo impediu que outra questão que também hoje se apresenta como aberrante construção criminal jurisprudencial por analogia “in mallam partem”, prossiga produzindo nefastos efeitos sobre a segurança jurídica e a legalidade, qual seja, a questão do preconceito homotransfóbico.
Por outro lado, conclui-se que a transformação da “Injúria Preconceito” em crime de racismo é desproporcional e não tem a menor comparação com as demais figuras previstas na Lei 7.716/89. A antiga distinção entre “Injúria Preconceito” como crime comum contra a honra, embora qualificado, e os crimes de racismo era adequada e proporcional. Essa transposição feita inicialmente pela via ativista judicial radical e em seguida pelo legislador não é movida pela cientificidade jurídica, mas tão somente por apelos midiáticos e submissão vergonhosa ao politicamente correto. Por outro lado, enquanto o legislador se preocupa em agradar agendas identitárias politicamente corretas, se olvida de que precisaria realmente fazer uma reforma na Lei de Racismo, adequando as penas à gravidade dos ilícitos. As punições previstas na Lei 7.716/89, a nosso ver, chegam a ser ridículas diante de crimes tão bárbaros ali descritos. A visão do legislador e da sociedade em geral acaba sendo obnubilada por um véu de futilidades que não lhes permite enxergar o que realmente importa. Seria necessário um aumento geral das penas da Lei de Racismo, visando evitar um mal de insuficiência protetiva que a nosso ver contamina a referida legislação.
A previsão do chamado “Racismo Recreativo” deve ser utilizada “cum grano salis”, apenas em casos patentes nos quais fique muito claro que o agente se utilizou falsamente de uma brincadeira ou contexto de divertimento para, na verdade, praticar uma conduta racista. No entanto, realmente os temores dos humoristas e artistas em geral não deixa de ter boas razões, isso porque nada garante que essa interpretação e aplicação sóbria consiga conter a sanha punitiva e autoritária do politicamente correto que pressiona e influencia a mídia, a polícia, o ministério público, o judiciário e até mesmo empresas, isso sem falar em seu influxo deletério e belicoso na população em geral.
Quanto à questão das imunidades penais nos crimes contra a honra, conforme dispõe o artigo 142, CP, constata-se possível dissenso doutrinário – jurisprudencial sobre o tema. No entanto, a nosso ver, seria muito difícil e mesmo inadequado reconhecer imunidade penal para casos de “Injúria Preconceito” (artigo 140, § 3º., CP) ou “Injúria Racial” (artigo 2º. – A da Lei 7.716/89), tendo em vista a gravidade dessas ofensas e sua amplitude lesiva que ultrapassa o dano à honra para adentrar em violações mais gravosas a “objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil” (inteligência do artigo 3º., IV, CF).
O denominado “Racismo Funcional” é previsto agora como causa especial de aumento de pena adstrita somente aos crimes dos artigos 2º. – A e 20 da Lei 7.716/89. Para configuração da majorante será necessário que o autor do ilícito atue em razão da função e não fora dela. O conceito de “funcionário público” é dado na forma de uma “norma remetida” ao artigo 327, CP, que apresenta uma definição geral de “funcionário público” para fins penais. Essa definição legal é mais abrangente do que a encontrável no Direito Administrativo, mais se aproximando do conceito de “agente público”. Justifica-se plenamente a majorante, tendo em vista a obrigação legal dos agentes públicos de combater e reprimir o racismo, jamais praticá-lo ou disseminá-lo de qualquer forma. Aliás, fica uma dúvida: qual foi a razão pela qual o legislador restringiu esse aumento somente a duas figuras e não a todos os crimes de racismo, o que nos pareceria mais coerente e justo? Além disso, também não pode ser aplicada a majorante aos casos de “Injúria Preconceito” previstos no artigo 140, § 3º., CP, o que novamente viola a proporcionalidade, já que o aumento é aplicável expressamente somente aos artigos 2º. – A e 20da Lei de Racismo.
Também se chega à conclusão de que essa causa de aumento de pena funcional não se aplica ao particular em nenhuma circunstância, mesmo no caso de concurso de agentes com funcionário público. Isso porque a condição de funcionário público é “pessoal” e, portanto, não se transmite, já que não é elemento do tipo seja do artigo 2º. – A ou do artigo 20 da Lei de Racismo (inteligência dos artigos 29 e 30, CP).
Há previsão de qualificadora para o artigo 20 da Lei 7.716/89 quando o crime for praticado por intermédio de meios de comunicação social, publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza. A novidade é a menção expressa às redes sociais e à internet. No mais, essa qualificadora já existia. Na realidade, mesmo a menção às redes sociais e internet somente tem o condão de explicitar o que já era reconhecível como qualificadora, seja quando a lei falava em “meios de comunicação social” ou mesmo “publicações de qualquer natureza”. Assim sendo, embora possa haver discussão, entende-se que a qualificadora tem poder retroativo, já que se trata de “continuidade normativo típica neutra” e não de “novatio legis in pejus”. Outras questões foram debatidas, tais como o uso de vestimentas e tatuagens, concluindo-se pela tipicidade de tais condutas de acordo com cada caso concreto, aplicando-se o “caput” do artigo 20 ou a sua forma qualificada, além do § 1º. do mesmo dispositivo.
Também se qualifica o crime de “Apologia ao Racismo” acaso perpetrado em contexto de eventos públicos esportivos, religiosos, artísticos ou culturais. A qualificação se justifica pela presença de muitas pessoas nesses eventos, razão pela qual a apologia espúria ganha potencialidade. Embora haja menção a eventos religiosos, é preciso ter em mente que a normativa em estudo não pode conflitar com a liberdade religiosa de forma a coartá-la.
Nessa qualificadora é prevista uma pena privativa de liberdade e uma pena restritiva de direitos. Devido à redação sofrível do dispositivo, vislumbram-se dúvidas quanto à sua aplicação. Nosso entendimento é o de que as penas devem ser aplicadas obrigatoriamente em conjunto, sendo o tempo de impedimento de acesso aos eventos fixo em 3 (três) anos. A individualização se daria então somente quanto à pena privativa de liberdade que tem intervalo mínimo e máximo. Foram apresentadas, além dessa interpretação, mais duas possíveis. Nenhuma é ideal, havendo sempre algum problema de individualização da pena e/ou conflito com a redação legal, isso tendo em vista a má redação do dispositivo, conforme já mencionado.
O emprego de violência, óbice ou impedimento contra manifestações ou práticas religiosas é previsto como uma modalidade equiparada penalmente ao artigo 20 da Lei 7.716/89. Isso reforça o fato de que a liberdade religiosa não pode ser objeto de repressão por instrumentalização do artigo 20, § 2º. – A. Também demonstra que a injúria religiosa foi relegada à vala comum do Código Penal, mas atos de violência, óbice ou impedimento às manifestações ou práticas religiosas são catalogados como crimes de racismo. Fica uma lacuna quanto à proteção de outras práticas “culturais” não religiosas.
No caso de emprego de violência, que a nosso ver pode ser contra pessoas ou coisas, a lei impõe o cúmulo material de delitos. Foram ainda analisados casos em que ocorra homicídio ou crimes contra o sentimento religioso e o respeito aos mortos. Em relação à contravenção penal de “Vias de Fato” (artigo 21, LCP), entende-se que deverá ser absorvida como ilícito – meio, diversamente das lesões corporais, danos etc. Ademais, a elementar do emprego de violência não é obrigatória, podendo ocorrer óbice ou impedimento por outros meios. O crime é de forma livre.
A alteração promovida pela Lei 14.532/23 na redação do § 3º., do artigo 20 da Lei 7.716/89 é meramente de natureza redacional material, ajustando a dicção legal devido à inclusão de dois novos parágrafos após o § 2º. já existente. Por isso o § 3º. se remete expressamente hoje ao § 2º. e não mais ao “parágrafo anterior” como constava na redação antiga. Quanto às cautelares passíveis de serem aplicadas em nada se alteraram com o advento da Lei 14.532/23.
A norma geral de hermenêutica criada com o artigo 20 – C da Lei 7.716/89 com nova redação dada pela Lei 14.532/23, além de socialmente contraproducente e embasada em ideologias identitárias radicais, sofre do mal de inconstitucionalidade por diversos motivos expostos ao longo do trabalho.
Muito embora a Lei 14.532/23 tenha promovido uma cisão entre a “Injúria Preconceito” (artigo 140, § 3º., CP) e a “Injúria Racial” (artigo 20. – A da Lei 7.716/89) com previsão de penas diferentes, violando diretamente à proporcionalidade, entende-se, diante de possível dissenso doutrinário – jurisprudencial, que o crime previsto no artigo 140, § 3º., CP continua mantendo sua característica de “crime de racismo”, com base nas decisões pretéritas do STJ e do STF. O advento da Lei 14.532/23 não altera o quadro fático e nem jurídico de maneira a justificar uma mudança de entendimento. Ao menos assim, inobstante nossas fortes ressalvas ao ativismo judicial violador da legalidade, abranda-se um pouco o vilipêndio praticado contra a proporcionalidade. As penas serão diversas, o que é incorreto, mas ao menos o crime do Código Penal poderá seguir como um delito de racismo imprescritível e inafiançável. Haverá ainda discussão acerca da natureza da ação penal pública condicionada, conforme disposto no artigo 145, Parágrafo Único, “in fine”, CP. No entanto, a nosso ver não há coerência na existência de um crime grave de racismo imprescritível e inafiançável que, concomitantemente, pode ter sua punibilidade extinta em meros 6 (seis) meses de prazo decadencial. Assim sendo, a nosso ver, a partir das decisões do STJ e do STF, que se mantém atualmente inalteradas, o crime do artigo 140, § 3º., CP é de ação penal pública incondicionada.
Outra questão relevante foi constatada. Na transposição do artigo do Código Penal para a Lei de Racismo, se perdeu a palavra “origem”, que acabou substituída pela expressão “procedência nacional”. Refletindo sobre a questão, chegou-se à conclusão que houve uma redução indevida do alcance da norma. “Origem” diz respeito a qualquer espécie de procedência (nacional, estadual, de classe etc.). Já “procedência nacional” é apenas uma das espécies do gênero “origem”. A qualificação da procedência como “nacional” reduz o alcance da norma e relega à mera “Injúria Simples” (artigo 140, “caput”, CP) ofensas a pessoas em razão da unidade federativa originária, da cidade, da classe social (v.g. nordestino, cearense, cabeça – chata, favelado etc.). Há evidente inconstitucionalidade por proteção insuficiente. Ainda pior, deixa-se a descoberto os “apátridas”, que também ficarão com tutela deficiente mediante o único recurso à “Injúria Simples”. Neste último caso, aponta-se, além da inconstitucionalidade por insuficiência protetiva, a inconvencionalidade por infração ao artigo 3º., da “Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas” (Nova York, 28.09.1954, vigor a partir de 06.06.1960), de que o Brasil é signatário por via do Decreto 4.246/02. Ainda sobre o tema importa destacar que o artigo 1º. da Lei de Racismo sofre da mesma omissão quanto à palavra “origem”, somente mencionando uma espécie de “procedência”, a “nacional”, de modo a transmitir a falha para toda a legislação. Esse, aliás, deve ter sido o motivo da perda da palavra “origem” durante o transporte do Código Penal para a Lei de Racismo. Propõe-se uma revisão urgente sobre esse ponto, mesmo porque em outros dispositivos do diploma usa-se a palavra “origem”, mas também qualificada por “nacional”, mantendo a redução semântica indesejável (v.g. artigo 4º., § 1º., “in fine” da Lei 7.716/89).
A posição jurisprudencial do STJ, abrigada por parte da doutrina de dividir a “procedência nacional” em estrangeira e interna não nos convence, pois é violadora da legalidade ao distorcer semanticamente o sentido de “procedência nacional” e “origem nacional”, além de em nada resolver casos de preconceito por outras “origens”, tais como a sócio – econômica (“favelado”, “pobre”, “sem teto” etc.).
Finalmente, saliente-se que a Lei 14.532/23 apresenta várias normativas inovadoras de caráter penal e, em meio a elas, um dispositivo de natureza processual penal e civil, consistente no artigo 20 – D acrescido à Lei de Racismo. Ali se estabelece a obrigatoriedade de assistência jurídica à vítima de crimes de racismo (por advogado ou Defensor Público) em todos os atos de processos civis ou criminais. Embora a norma seja redigida de forma imperativa, entende-se que a omissão da presença de defensor à vítima não levará a nulidade, tendo em conta que normalmente o reconhecimento desta irá prejudicar mais a vítima do que o réu. A omissão no cumprimento da norma legal em destaque deve conduzir à responsabilização administrativa de magistrados e membros do Ministério Público encarregados de fiscalizar e cumprir a lei, bem como, eventualmente, de Defensores Públicos relapsos.
Esperamos que as alterações promovidas pela Lei 14.532/23 na Lei 7.716/89, inobstante suas lacunas e equívocos, venham a ser interpretadas e aplicadas da melhor forma possível, visando sempre o combate a qualquer espécie de racismo e à pacificação social que se produz pela reciprocidade do respeito entre as pessoas, sejam elas de que raça, cor, etnia, religião, origem ou procedência nacional for.

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Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós Graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

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