terça-feira,23 abril 2024
ColunaTrabalhista in focoInaplicabilidade do incidente de desconsideração da pessoa jurídica e suas consequências

Inaplicabilidade do incidente de desconsideração da pessoa jurídica e suas consequências

Coordenador: Ricardo Calcini.

 

1. Introdução.

O incidente de desconsideração da pessoa jurídica é uma inovação trazida pelo Novo Código de Processo Civil de 2015 e incorporado, expressamente, ao processo do trabalho pela Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/2017).
Esse novo procedimento, mesmo diante do novo texto reformista, gerou cizânias no tocante a sua aplicabilidade ao processo do trabalho, principalmente porque a sua instauração, via de regra, suspende o feito.
O objetivo do presente artigo é alertar os estudiosos da área trabalhista sobre as consequências prejudiciais ao exequente causadas pela recusa da aplicabilidade dessa nova técnica processual.

 

2. Desconsideração da Personalidade Jurídica

A personalidade jurídica é uma ficção jurídica, prevista no artigo 45 do CC/02 e, como já previa expressamente o artigo 20 do CC/1916, não se confunde com a personalidade de seus integrantes, tampouco com a de seus administradores.

O escopo da teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard of legal entity doctrine) é alcançar o patrimônio dos sócios-administradores que se utilizam da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para fins ilícitos, abusivos ou fraudulentos, acarretando àqueles a responsabilidade direta, pessoal e ilimitadamente.

O ordenamento jurídico brasileiro desenvolveu duas teorias acerca da desconsideração da personalidade jurídica: a teoria maior e a teoria menor.

A teoria maior, prevista no art. 50 do CC, condiciona o afastamento do véu corporativo da empresa e acesso aos bens dos sócios quando ocorrer o abuso da personalidade jurídica pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial.

A teoria menor, estabelecida no artigo 28 do CDC, desconsidera a pessoa jurídica independente da demonstração de culpa ou dolo, fraude ou abuso de direito, bastando apenas que a personalidade jurídica configure obstáculo à efetivação do interesse tutelado pelo direito. Essa segunda teoria aplica-se ao processo do trabalho, dada às características semelhantes do consumidor e trabalhador, como vulnerabilidade e hipossuficiência.

A desconsideração da personalidade jurídica há muito vem sendo utilizada no Processo Laboral, inclusive ‘ex officio’ pelo juiz. Contudo, a implementação de novo procedimento para sua efetividade trouxe alterações significativas na prática trabalhista.

3. Incidente de desconsideração da personalidade jurídica estabelecido no CPC/2015 e na Lei nº 13.467/2017.

O CPC/2015 disciplina em seus artigos 133 a 137 o incidente de desconsideração da personalidade jurídica como uma das espécies de intervenção de terceiro (pois provoca o ingresso de terceiro em juízo com o fim de responsabilizá-lo patrimonialmente), salvo se pleiteado na inicial (§ 2º, art. 134 do CPC).

Esse novo procedimento incidental possui algumas características peculiares elencadas por DIDIER (V.1, p. 526/528), dentre as quais merecem destaques:

a) cabe em todas as fases do processo de conhecimento, cumprimento da sentença e na execução de título extrajudicial; b) não pode ser determinada ex officio pelo órgão julgador, ao contrário, depende de iniciativa da parte ou do Ministério Público; c) instaurado o incidente, o terceiro deve ser citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis, no prazo de 15 dias (destacando-se o princípio do contraditório); d) a instauração suspende o processo, salvo quando a desconsideração for requerida na petição inicial; e) o incidente é resolvido, via de regra, por decisão interlocutória, impugnável por agravo de instrumento (Art. 1.015, IV, CPC) e, no caso de decisão de relator, mediante agravo interno (art. 136, par. Ún., CPC) e em caso do juiz decidir o incidente na sentença, por apelação (art. 1.009, CPC); f) admite-se a desconsideração inversa da personalidade jurídica, consistente na responsabilização da sociedade por obrigações imputadas ao sócio que a integra (art. 133, § 2º) g) o regime da tutela provisória de urgência (arts. 300 e segs., CPC) pode ser aplicado ao incidente e h) acolhido o requerimento de desconsideração, a alienação em fraude à execução, feita após a instauração do incidente, será ineficaz em relação ao requerente (art. 137, CPC).

Tais novidades trouxeram controvérsias a respeito da compatibilidade desses artigos ao processo do trabalho. Por um lado, defendia-se a aplicabilidade dos artigos ao processo trabalhista, com o argumento de que esse procedimento respeita os preceitos constitucionais e os direitos fundamentais à inviolabilidade da propriedade privada, ao contraditório, à ampla defesa e ao devido processo legal.

Nesse sentido posicionou-se o Fórum Permanente de Processualistas Civil (FPPC), com a edição dos seguintes enunciados (BUENO, Cassio Scarpinella):

Enunciado n. 124: A desconsideração da personalidade jurídica no processo do trabalho deve ser processada na forma dos arts. 133 a 137, podendo o incidente ser resolvido em decisão interlocutória ou na sentença.

Enunciado n. 126: No processo do trabalho, da decisão que resolve o incidente de desconsideração da personalidade jurídica na fase de execução cabe agravo de petição, dispensado o preparo.

O Tribunal Superior do Trabalho também adotou esse entendimento de compatibilidade dos artigos 133 a 137 com o processo do trabalho, pela Resolução n. 203, de 15/03/2016, que aprovou a Instrução Normativa 39/2016 do Pleno do C. TST. Contudo, assegurou a especificidade da iniciativa ao juiz do trabalho, na fase de execução, com fulcro no art. 878 da CLT.

Discordando desse entendimento, juristas de renome manifestaram pela incompatibilidade do instituto com as regras e princípios do direito processual do trabalho. Sustentavam que essa nova sistemática, ao suspender o feito, demonstra-se incompatível com os princípios da concentração de atos e da celeridade processual, em prejuízo à garantia da efetividade da jurisdição. Defendiam, ainda, que a aplicabilidade do incidente contradiz o princípio do impulso oficial na fase executória trabalhista, a qual permite a execução de ofício em atenção à razoável duração do processo (arts. 878 e 765 da CLT).

A Reforma Trabalhista, instituída pela Lei n.º 13.467/2017, sanou todas as divergências no tocante à aplicabilidade subsidiária do instituto em comento ao processo do trabalho, ao incorporá-lo expressamente no art. 855-A da CLT:

Art. 855-A. Aplica-se ao processo do trabalho o incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto nos arts. 133 a 137 da Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil.
§ 1º Da decisão interlocutória que acolher ou rejeitar o incidente:
I- na fase de cognição, não cabe recurso de imediato, na forma do § 1º do art. 893 desta Consolidação;
II – na fase de execução, cabe agravo de petição, independentemente de garantia do juízo;
III- Cabe agravo interno se proferida pelo relator em incidente instaurado originariamente no tribunal.
§ 2º A instauração do incidente suspenderá o processo, sem prejuízo de concessão da tutela de urgência de natureza cautelar de que trata o art. 301 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).

Insta salientar que a Reforma também alterou o artigo 878 da CLT, estabelecendo, em sua nova redação, que a execução será promovida pelas partes, reservado o impulso oficial somente para as situações de jus postulandi. Com isso, restou prejudicada, em parte, o dispositivo estabelecido pela IN 39/2016, de que o incidente pode ser instaurado pelo magistrado trabalhista sem restrição.

Diante desse novo contexto, o Enunciado n. 109 da 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, promovida pela ANAMATRA (em outubro de 2017), sinalizou contra esse novo mecanismo processual ao processo trabalhista de forma irrestrita:

Enunciado n. 109. PROCESSO DO TRABALHO. INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA: APLICAÇÃO LIMITADA.
I- no processo do trabalho, o redirecionamento da execução para o sócio não exige o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (arts. 133 a 137 do CPC).
II – a dissolução irregular da pessoa jurídica inclui as hipóteses de impossibilidade de satisfação da dívida pelo devedor, o que autoriza o redirecionamento da execução para os sócios, independentemente de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica (art. 135 do CTN).
III – admite-se o incidente de desconsideração da personalidade nas hipóteses de sócio oculto, sócio interposto (de fachada ou ‘laranja’), associação ilícita de pessoas jurídicas ou físicas ou injuridicidades semelhantes, como constituição de sociedade empresária por fraude, abuso de direito ou seu exercício irregular, com o fim de afastar o direito de credores.
IV – adotado o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, o juiz, no exercício do poder geral de cautela, determinará às instituições bancárias a indisponibilidade de ativos financeiros e decretará a indisponibilidade de outros bens pertencentes aos sócios, pessoas jurídicas ou terceiros responsáveis, sendo desnecessária a ciência prévia do ato.

Nesse cenário, as decisões judiciais apontam divergência no tocante à aplicabilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.

4. A inaplicabilidade do incidente e suas consequências.

Há decisões relutantes na aplicabilidade do incidente, mesmo com o novo teor reformista da CLT, fundamentando a decisão com fulcro no Enunciado 109, da 2ª Jornada em comento e pela teoria menor e objetiva da desconsideração da personalidade jurídica:

EMENTA AGRAVO DE PETIÇÃO DO EXEQUENTE. REDIRECIONAMENTO DA EXECUÇÃO. INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. DESNECESSIDADE. Constada a inadimplência da executada e não tendo sido encontrados bens passíveis de garantir a execução, a desconsideração da personalidade jurídica e o redirecionamento da execução em face dos sócios da executada prescindem da instauração do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica previsto nos artigos 133 a 137 do CPC/2015, mesmo após a vigência da Lei n. 13.467/17. Provido.
(TRT da 4ª Região, Seção Especializada em Execução, 0020339-25.2016.5.04.0020 AP, em 26/11/2018, Desembargador Joao Batista de Matos Danda)

Nesse sentido as seguintes decisões:

-TRT da 4ª Região, Seção Especializada em Execução, 0000491-22.2010.5.04.0292 AP, em 24/08/2018, Desembargador João Alfredo Borges Antunes de Miranda.
-TRT da 4ª Região, Seção Especializada em Execução, 0000477-65.2013.5.04.0831 AP, em 20/06/2018, Juiz Convocado Roberto Antonio Carvalho Zonta.
– TRT da 4ª Região, Seção Especializada em Execução, 0021143-09.2014.5.04.0005 AP, em 30/05/2018, Desembargadora Rejane Souza Pedra.

Entretanto, a maioria dos Tribunais Regionais do Trabalho vem se posicionando pela necessidade da instauração do incidente, afastando as decisões de primeira instância que não aplicam o incidente ‘por não ser consentâneo com os princípios constitucionais da efetividade do processo e da celeridade processual e por não estar em harmonia com o princípio da proteção ao trabalhador’.
Nessas situações, os TRTs vêm decidindo pela nulidade dos bloqueios judiciais pelo BACEN-Jud e demais bens:

EMENTA: PROSSEGUIMENTO DA EXECUÇÃO EM FACE DO SÓCIO. NECESSIDADE DE PRÉVIA INSTAURAÇÃO DE INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. Para redirecionar a execução em face do sócio, conforme previsão contida no CPC (artigos 133 e seguintes do CPC/2015) deve-se, primeiramente, instaurar o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, que tem por escopo garantir o contraditório e a ampla defesa àqueles que, porventura, venham a ser responsabilizados pelo pagamento dos títulos reconhecidos em juízo, o que não se vislumbrou no caso dos autos. Assim, dá-se provimento ao apelo da executada para determinar o retorno dos autos à Vara de origem, a fim de que seja instaurado incidente de desconsideração da personalidade jurídica, observando-se os termos dispostos nos artigos 133 a 137 do CPC/2015, no artigo 6º, § 1º, II da Resolução n. 203, de 15 de março de 2.016 bem como no art. 855-A da CLT, conforme exposto.
(TRT da 2ª Região, 6ª Turma, Proc. n. 1000424-09.2016.5.0026 AP, DJ 06/11/2018, rel. Valdir Florindo).

Recentes decisões indicam a prevalência dessa segunda vertente:

– TRT da 6ª Região, 2ª Turma, Proc. n. 000879-25.2012.5.06.0121 AP, DJ 12/12/2018, rel. Paulo Alcântara.
– TRT da 15ª Região, 8ª Câmara – 4ª Turma, Proc. n. 0011522-95.2014.5.15.0032, DJ 15/05/2018, rel. Hamilton Luiz Scarabelim.
– TRT da 5ª Região, 5ª Turma, Proc. n. 0001230-93.2015.5.05.0032 AP, DJ 06/11/2018, rel. Paulino Cesar Martins Ribeiro do Couto.

O Tribunal Superior do Trabalho, em recente decisão, reiterou a necessidade de instauração do incidente:

Mandado de segurança. Cabimento. Execução provisória. Redirecionamento da execução contra sócio. Não observância do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Arts. 133 a 137 do CPC de 2015. Aplicação ao Processo do Trabalho. Art. 6º da IN nº 39/2016 do TST e art. 855-A da CLT. O art. 6º da IN nº 39/2016 do TST e o art. 855-A da CLT (incluído pela Lei nº 13.467/2017) estabelecem a aplicação do incidente de desconsideração da personalidade jurídica (arts. 133 a 137 do CPC de 2015) ao Processo do Trabalho. Assim, se na vigência do CPC de 2015 a execução provisória é redirecionada contra a representante legal da pessoa jurídica sem a observância do referido incidente, cabe mandado de segurança para discutir a extensão dos efeitos da obrigação contida no título executivo aos bens particulares da administradora da empresa. Sob esse fundamento, a SBDI-II, por unanimidade, conheceu do recurso ordinário e, no mérito, deu-lhe provimento para, reformando a decisão que indeferira a petição inicial do mandamus, determinar o retorno dos autos à Corte de origem a fim de que o mandado de segurança seja processado e julgado.
(TST-RO-406-27.2017.5.10.0000, SBDI-II, rel. Min. Douglas Alencar Rodrigues, 6.11.2018).

5. Conclusão.

Em que pese os efeitos nefastos à celeridade, que deve nortear a Justiça do Trabalho com esse novel procedimento, o seu descumprimento tende a acarretar maiores prejuízos se realizado na antiga sistemática e declarado nulo, principalmente quando positivo o bloqueio de dinheiro pelo sistema BACEN-JUD.
Os demais bens como automóveis e imóveis, uma vez desbloqueados, em face da nulidade para o cumprimento do procedimento do incidente, se sofrer transferência, restará caracterizada a fraude, o que permite seu restabelecimento e a satisfação do crédito, total ou em parte.
Diferente ocorre na situação do reconhecimento da nulidade da desconsideração da personalidade jurídica e consequente desbloqueio de dinheiro. As chances de restabelecê-lo são remotas, praticamente nulas.
Portanto, para evitar maiores prejuízos à satisfação do crédito, é recomendável que se instaure o incidente de desconsideração da personalidade jurídica e junto dele o pedido de tutela de urgência, de natureza cautelar (art. 301, CPC), inaudita altera par, aplicável subsidiariamente ao processo do trabalho (arts. 769 da CLT e 15 do CPC), a fim de atingir o patrimônio de terceiro e assegurar a efetividade processual.

 


BIBLIOGRAFIA

BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado. 2. Ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2016.

CÓDIGO CIVIL COMENTADO: doutrina e jurisprudência/Claudio Luiz Bueno de Godoy [et al]; coordenação CEZAR PELUSO. – 12. Ed., rev. e atual. – Barueri [SP]: Monole, 2018

SALVADOR, Vivian Ferraz de Arruda. Reforma Trabalhista e Desconsideração da Personalidade Jurídica: Aspectos Processuais. In Reforma Trabalhista: Reflexões e Críticas. Coord. MANNRICH, Nelson. 2. ed. São Paulo: LTr, 2018, p. 68/76.

SCHIAVI, Mauro. A Reforma Trabalhista e o Processo do Trabalho: Aspectos Processuais da Lei 13467/17: De acordo com a IN n. 41/18 do TST. 3. ed. São Paulo: LTr, 2018. p.170/175.

VIVEIROS, Luciano. CLT comentada pela reforma trabalhista (Lei nº 13.467/2017) 9 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018.

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord). Primeiros comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo/ coordenação. 2 ed. rev.. atual e ampl. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2016.

Advogada, pós-graduada em direito e processo do trabalho com formação para Magistério Superior. Pós-graduanda em Processos Brasileiros pela PUC-MG. Mestranda em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas no UDF.

Receba artigos e notícias do Megajurídico no seu Telegram e fique por dentro de tudo! Basta acessar o canal: https://t.me/megajuridico.
spot_img

DEIXE UM COMENTÁRIO

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

spot_img

Mais do(a) autor(a)

spot_img

Seja colunista

Faça parte do time seleto de especialistas que escrevem sobre o direito no Megajuridico®.

spot_img

Últimas

- Publicidade -