sexta-feira,29 março 2024
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Gestação por substituição ou “barriga de aluguel” – Uma análise à luz do direito Argentino e Brasileiro

Por Nehemias Domingos de Melo*

 

Introdução

No presente trabalho pretendemos fazer uma análise comparada do direito argentino e brasileiro no tocante ao instituto da gestação por substituição, também chamado de maternidade sub-rogada ou popularmente “barriga de aluguel”, dentre várias outras denominações.

Considerando a importância da prole na constituição e a continuidade da família, dentre outros aspectos, trataremos das formas de filiação e o princípio do melhor interesse para a criança.

Faremos também um cotejo entre as iniciativas legislativas no Brasil e uma breve analise do instituto nos termos como fora previsto no projeto do novo Código Civil e Comercial Argentino.

 

A gestação por substituição

Da mesma forma em que o conceito de família mudou ao longo da história, especialmente após o século XX, o conceito e as formas de procriação também mudaram a partir de novas técnicas que permitem hoje seja um filho gerado não da forma tradicional.

Os avanços tecnológicos nos permitem hoje considerar a hipótese de um casal manter relações sexuais sem riscos de reprodução, assim como é perfeitamente possível haver procriação sem que haja o contato sexual.

Com as novas técnicas de reprodução assistida é possível ao casal desejar e ter um filho superando toda e qualquer impossibilidade física, tanto de fecundação quanto de reprodução.

Neste cenário não se pode olvidar de que a prole para um casal pode significar muito mais do que apenas o desejo de ter filhos. A procriação embora não tenha mais as mesmas características e funções que tinha no passado, ainda representa a possibilidade de continuidade da família de sorte a perguntar: ter um filho é um direito ou uma faculdade?

Embora existam defensores das duas correntes, por óbvio que seria uma incoerência garantir-se o direito à constituição da família e ao mesmo tempo não garantir a procriação como forma de continuidade da mesma. Por isso entendemos que mais que uma faculdade, procriar é um direito, independentemente de ser um ato que faz parte da própria natureza humana.

Uma das formas de garantir ao casal o direito à procriação é a gestação por substituição, também chamada de gestação sub-rogada, locação de útero, cessão de útero, gestação por outrem ou, popularmente “barriga de aluguel”.

Conforme ensina a professora Luciana Scotti, “La maternidad subrogada es el compromiso entre una mujer, llamada “mujer gestante”, a través del cual ésta acepta someterse a técnicas de reproducción asistida para llevar a cabo la gestación en favor de una persona o pareja comitente, llamados él o los “subrogantes”, a quien o a quienes se compromete a entregar el niño o niños que pudieran nacer, sin que se produzca vínculo de filiación alguno con la mujer gestante, sino con él o los subrogantes”.[1]

Nesse cenário, é perfeitamente possível que uma mulher, por qualquer imperfeição físico-biológica não consiga desenvolver uma gestação com regularidade. Nessas circunstâncias só resta ao casal concretizar o sonho de ter filhos através da gestação por substituição, utilizando-se para isso do útero de outra mulher na qual será inoculado o embrião constituído a partir do material genético do casal (fecundação artificial homóloga).

É também possível com essa técnica, que o casal recorra a doador, seja de óvulos ou mesmo de sêmen, no caso da mulher ou mesmo marido ou companheiro não sejam férteis (fecundação artificial heteróloga).

No Brasil ainda não há legislação regulando a matéria. O único dispositivo que trata da matéria, assim mesmo sob o aspecto ético, é a Resolução CFM nº 2.168/2017[2] do Conselho Federal de Medicina. Dentre outros aspectos, considera importante tratar da infertilidade humana como um problema de saúde, com implicações médicas e psicológicas e a legitimidade do anseio de superá-la; que o avanço do conhecimento científico permite solucionar vários dos casos de reprodução humana; que as técnicas de reprodução assistida têm possibilitado a procriação em diversas circunstâncias, o que não era possível pelos procedimentos tradicionais; a necessidade de harmonizar o uso dessas técnicas com os princípios da ética médica; editando ainda diversos preceitos para delimitar o exercício dessa técnica.

O capítulo VII da referida Resolução tratou especificamente sobre a gestação de substituição (doação temporária do útero) prescrevendo que as clínicas, centros ou serviços de reprodução humana podem usar técnicas de reprodução assistida para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética. Preceitua também que as doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o quarto grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina. E, ainda, que a doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.

Ainda no tocante à matéria, há também uma regulamentação promovida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que, dentre outras medidas, regula a questão do registro de nascimento das crianças geradas por reprodução assistida, o que se deu através do provimento nº 52, de 14 de março de 2016 (atualizado pelos Provimentos nº 63 de 14/11/2017 e nº 83 de 14/8/2019).[3]

Visando suprir a inexistência de lei há várias iniciativas legislativas no Congresso Nacional brasileiro, cabendo destacar Projeto de Lei do Senado de n° 90, de 1999, de autoria do senador Lúcio Alcântara, que regulamenta minuciosamente a matéria, inclusive criminalizando determinadas condutas, cabendo destacar o previsto no art. 7º: “Fica permitida a gestação de substituição em sua modalidade não remunerada conhecida como doação temporária do útero, nos casos em que exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na usuária e desde que haja parentesco até o segundo grau entre ela e a mãe substituta ou doadora temporária do útero”. Prescreve ainda em seu parágrafo único: “A gestação de substituição não poderá ter caráter lucrativo ou comercial, ficando vedada sua modalidade remunerada conhecida como útero ou barriga de aluguel”.

O Projeto original do senador Lúcio Alcântara sofreu diversas alterações e gerou dois substitutivos, um de autoria do Senador Roberto Requião e outro do Senador Tião Viana, resultando em melhor elaboração, cujo texto foi enviado em junho de 2003, pelo Senador José Sarney, à Câmara dos Deputados e recebeu a identificação de PL nº 1.184/03.

O PL n° 1.184/03 encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados estando a ele apensados diversos outros projetos, dentre os quais destacamos: o PL n° PL 4.889/2005 (sobre a utilização post mortem do sêmen do marido ou companheiro); o PL n° 7.701/2010 (sobre o funcionamento das clínicas de reprodução); e, o PL n° 3.977/2012 (sobre o acesso às técnicas de reprodução artificial aos pacientes em idade reprodutiva submetidos a tratamento de câncer).

Quer dizer, existem iniciativas legislativas no Brasil que buscam regulamentar a matéria, porém ainda nos encontramos longe de obter o consenso sobre a matéria de sorte que, enquanto isso, a única disposição sobre a qual se pode apoiar é a Resolução do Conselho Federal de Medicina, retro mencionado, e na jurisprudência resultante dos casos já julgados pelos nossos Tribunais.

Na argentina também há um vazio legislativo quanto à matéria. O tema poderia ter sido regulamentado quando da aprovação do novo Código Civil e Comercial, que previa expressamente a regulamentação da gestação por substituição, porém o Parlamento Argentino optou por não aprovar as disposições atinentes à matéria, perdendo a oportunidade de fazer a Argentina ser o primeiro país da América Latina a regulamentar a gestação por substituição.

Tratando especialmente da gestação por substituição a professora Marisa Herrera, tendo participado da comissão que redigiu o projeto do novo Código Civil e Comercial argentino, assim se expressou: “Fue uno de los temas más difíciles dentro del derecho de família”. Diversos temas de direito de família foram polemizados, porém el de la gestación por sustitución fue el tema más complejo para los expertos, disse Marisa Herrera, sobre todo por las críticas, algunas muy valiosas, de feministas y otros colectivos que temen la “cosificación” de la mujer o el eventual lucro con su cuerpo, sobre todo entre las más pobres.[4]

Explicou ainda a ilustre doutrinadora que os redatores do projeto do novo Código Civil e Comercial tinham duas opções: reconhecer a existência da prática e regulamentar ou simplesmente ignorá-la.  A opção da comissão foi pelo reconhecimento. Nesse sentido explicita: “No sé si este método es ideal, pero existe. Se está haciendo mucho en el extranjero y no es una opción ignorarlo. Es mejor tener una ley que regule el proceso, lo controle y que proteja en primer lugar al niño, pero también a la gestante y a quienes quieren tener un hijo biológico por este método”.

O projeto de Código Civil argentino foi minudente ao tentar regulamentar a matéria, procurando disciplinar todo o procedimento, não deixando lacunas para interpretações. Quer dizer, se fosse aprovado conforme a redação da Comissão, não haveria margem para manobras porque as regras teriam ficado claras. “La regulación legal, en cambio, puede solucionar los eventuales conflictos que la práctica plantee. El sistema proyectado, que prevé la intervención judicial previa, intenta anticiparse a esos problemas, en tanto exige que lo convenido por todas las partes sea aprobado antes del implante del embrión. Eneste proceso judicial previo deben intervenir varios especialistas, demodo tal que el abordaje sea completo y acorde a la complejidad que lasituación plantea. La prohibición al médico de proceder a la transferencia in esa autorización incita al cumplimiento de los requisitoslegales. Como la intervención judicial es anterior a la implantación en la gestante, el certificado de nacimiento debería emitirse, directamente, con el nombre de comitentes, como sucede en California; de tal modo, la gestante no figura como madre. Es decir, no hay “traspaso”, sino queel o los comitentes son legalmente los padres. El sistema proyectado tiende, pues, a la seguridad jurídica en primer lugar, del niño nacido, yen segundo lugar de todos los intervinientes en el acuerdo originário[5]

O projeto de novo Código Civil argentino prestigiava a segurança jurídica de todas as partes envolvidas, pois não deixava margem a dúvidas quanto a filiação da criança por nascer tendo em vista que pais legalmente seriam aqueles que o tribunal tenha, previamente, autorizado e não aquela que tenha emprestado seu ventre para a gestação. Além disso, com todas as demais exigências que poderiam ter sido impostas pela lei, acreditamos que o tema estaria devidamente resguardado do ponto de vista legal.

Contudo só nos resta lamentar que não tenha sido aprovada essa proposta revolucionária, porém fica a sugestão para que o legislador ordinário, não só da Argentina, mas também de outros países, poderem retomar a questão.

 

Conclusão

Conforme notas introdutórias, demonstramos que a família sofreu profundas alterações ao longo da história, especialmente depois do século XX. Se antes a família era vista enquanto núcleo familiar constituído pelo pai, mãe e sua prole, hoje esse conceito não mais subsiste tendo em vista as outras formas de família reconhecidas nos modernos ordenamentos jurídicos.

Se o direito existe para regular o fato social, é inegável que a gestação por substituição é um fato que as técnicas científicas nos permitem cogitar, logo urge que o legislador, tanto argentino quanto brasileiro, enfrente esta questão e a regulamente para maior segurança jurídica da sociedade.

Não é possível admitir-se que nos dias atuais, enquanto a biotecnologia possa propiciar meios e oportunidades para que as pessoas estéreis possam ter filhos, não exista regulamentação legal para essa prática o que, a toda evidência gera uma insegurança jurídica que inibe a utilização dessa prerrogativa em larga escala.

De sorte que, independentemente das questões morais e religiosas que o tema suscita, urge, tanto no Brasil quanto na Argentina, regulamentar o instituto da gestação por substituição como meio de permitir a casais que estejam impossibilitados de terem filhos de forma natural, bem como casais homoafetivos ou mesmo pessoas solterias, a possibilidade de optarem por essa forma de procriação, que lhes possam permitir constituir uma família na mais completa acepção da palavra.

 

  1. Bibliografia

HERRERA, Marisa. Nuevas tendencias en el derecho de familia de hoy. Principios, bases y fundamentos. Primera parte. MJ-DOC-5595-AR | MJD5595, 7-nov-2011.

HERRERA, Marisa et all. Por qué sí a la regulación de la gestación por sustitución, a pesar de todo. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/109412311/Gestacion-por-sustitucion, acesso em 23/03/2013.

MELO, Nehemias Domingos de. Lições de direito civil – Família e sucessões, 4ª ed. São Paulo: Rumo Legal, 2018, v.5

SCOTTI, Luciana B. El reconocimiento extraterritorial de la “maternidad subrogada”: una realidad colmada de interrogantes sin respuestas jurídicas. Buenos Aires: Revista Pensar en Derecho, 2012, p. 268/289.

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Conflito positivo de maternidade e a utilização de útero de substituição. Acesso em 15/03/2013. Disponível em: http://www.colegioregistralmg.org.br/Content/Images/artigoacademico/utero_por_substituicao.pdf,.

VALENTE, Marcela. Argentina legalizará la gestación por sustitución. Disponível em http://ipsnoticias.net/nota.asp?idnews=, 102463 acesso em 23/03/2013.

[1] SCOTTI, Luciana. El reconocimiento extraterritorial de la “maternidad subrogada”: una realidad colmada de interrogantes sin respuestas jurídicas, p. 9.

[2] Esta resolução veio na sequência de outras que trataram do mesmo tema. A primeira delas foi a de n° 1.358 de 1992, que foi reeditada em 2010 sob o n° 1.957 e depois revogada pela Resolução CFM nº 2.013/2013, ao depois revogada pela Resolução CFM nº 2.121/2015.

[3] Estes provimentos também tratam da questão da filiação sócio afetiva.

[4] HERRERA, Marisa. Aula Magna proferida no curso de doutorado da Universidade de Buenos Aires (UBA) em janeiro de 2013.

[5] HERRERA, Marisa. Por qué sí a la regulación de la gestación por sustitución, a pesar de todo. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/109412311/Gestacion-por-sustitucion>, acesso em 23/03/2013.

 

 

* Nehemias Domingos de Melo , colaborou com nosso site por meio de publicação de conteúdo. Ele é Advogado em São Paulo, palestrante e conferencista. Professor de Direito Civil, Processual Civil e Direitos Difusos nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito na Universidade Paulista (UNIP). É Doutor em Direito Civil, Mestre em Direitos Difusos e Coletivos, Pós-Graduado em Direito Civil, Direito Processual Civil e Direitos do Consumidor. Autor de 18 livros jurídicos publicados pelas Editoras Saraiva, Atlas, Juarez de Oliveira e Rumo.

 

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