sexta-feira,19 abril 2024
ArtigosFraude paternal: uma lacuna do direito

Fraude paternal: uma lacuna do direito

Em coautoria com Bianca Cristine Pires dos Santos Cabette.

1 – INTRODUÇÃO

Na dogmática alemã se fala do chamado “espaço livre de direito” (“Rechtsfreieraum”), especialmente na seara penal, para referir-se a certas condutas que, embora não consideradas como propriamente ilícitas, se situam em uma espécie de limbo neutro do Direito. Modalidades de questões adiafóricas ou indiferentes. Nessas situações não haveria “aprovação” jurídica da conduta, mas tão somente a manutenção de uma posição de neutralidade, uma espécie de recuo do mundo do Direito, deixando a questão à consciência ética do indivíduo.

Segundo essa doutrina, tais situações, face à sua relevância, são reguladas pelo Direito, afastando a aplicação de sanções de forma explícita, daí que algumas excludentes de antijuridicidade seriam assim consideradas nesse pensamento. Porém também se menciona outro conceito que pode ser eventualmente confundido com o “espaço livre de direito”. Trata-se do “espaço vazio de direito”. Nas palavras de Silva e Souza:

Em contrapartida, é necessário que se tenha a noção de que se há conceitos juridicamente “relevantes” é porque há também espaço para aqueles que se devam considerar “irrelevantes”, os quais devem ser entendidos como um “espaço vazio de direito”. Este esvaziamento do direito, cuja razão de sua existência é fruto do desejo da própria ordem jurídica, não deve ser entendido como algo não regulado juridicamente, mas sim como um fato regulado de forma negativa por meio da negação de uma consequência jurídica. Esse espaço vazio de direito não pode ser confundido com o espaço “livre” de direito, os quais são uma forma de conceito jurídico relevante, mas para o qual a ordem jurídica abdicou, por suas razões, de lhe dar certa valoração, especialmente de licitude e ilicitude.

Dessa maneira, o “espaço vazio de direito” se refere a “fatos que não possuem qualquer definição jurídica, daí porque não pode ser considerado como norma jurídica”.
É bem sabido que existe muita discussão acerca da existência ou inexistência de “lacunas” no ordenamento jurídico e que não há uma distinção ontológica entre a lacuna e o “vazio” jurídico. Ou seja, a natureza desses elementos é a de que para determinados fatos ou condutas inexiste norma ou solução expressa no ordenamento. Nisso em nada diferem entre si. Entretanto, o espaço jurídico vazio seria uma deliberada limitação do Direito, uma área na qual o ordenamento não quis empreender regulações e preferiu deixar as pessoas livres para agir. Diversamente, uma lacuna seria uma efetiva “falha” ou “deficiência” a exigir solução. No caso do “espaço vazio de direito”, a solução está dada pelo afastamento do mundo jurídico a respeito da questão intencionalmente omitida. A solução no caso do “espaço vazio” é a liberdade de ação ou omissão das pessoas de acordo com suas consciências. Portanto, embora não se possa vislumbrar, nessa perspectiva, diferença ontológica entre “lacuna” e “vazio”, existe uma distinção possível referente à intencionalidade do ordenamento.

Neste trabalho, sem entrar em minúcias acerca do “dogma da completude” do Direito , pretende-se estudar a falta de tipificação penal para a chamada “Fraude Paternal”, bem como do tratamento prejudicial ao homem na seara civil dos alimentos de acordo com a doutrina e jurisprudência prevalentes, também na ausência de uma regulamentação explícita do tema.

Iniciar-se-á por uma exposição do problema pouco explorado da “Fraude Paternal”, expondo seu conceito e seu tratamento usual nos ordenamentos jurídicos. Em seguida será abordada a questão do chamado “Garantismo Integral” e sua infração pela ausência de regulamentação positiva acerca da “Fraude Paternal”. Finalmente, será estudada a situação em que se acha no Brasil a questão da atipicidade penal da “Fraude Paternal”, com propostas de soluções, bem como da falta de regulação legal e da posição doutrinário – jurisprudencial prejudicial ao homem sobre a questão de alimentos indevidamente pagos nesse contexto. Desde logo, deixando de lado o “dogma da completude” do ordenamento, como já destacado, se pode dizer que há uma efetiva “lacuna” a ser preenchida sobre o tema, não sendo possível, sob pena de violação da equidade e justiça, atribuir à falta de regulação um “espaço vazio de direito”, cuja existência pode se insinuar devido à posição da doutrina e jurisprudência civil (alimentos). Realmente é possível entrever uma intencionalidade no silêncio legislativo. Mas, é urgente tomar consciência e denunciar que essa intencionalidade de esvaziamento jurídico do tema e consequente liberalidade para com a conduta da “Fraude Paternal”, não são admissíveis moral, jurídica e socialmente. Há aqui sim uma efetiva “lacuna”, uma “falha” ou “deficiência” do mundo jurídico e também, no caso da solução na seara civil para o problema dos alimentos indevidamente pagos, um erro e uma injustiça a serem devidamente reparados.

 

2 – A FRAUDE PATERNAL

A “Fraude Paternal” consiste em atribuir falsamente a paternidade a um homem de forma intencional. Ou seja, ocorre “Fraude Paternal” sempre que uma mãe mente a um homem dizendo-lhe que é o pai de seu filho.

Conforme aduz Roxana Kreimer, essa é uma das grandes desvantagens de que padecem os homens, afinal é praticamente impossível a correlata “Fraude Maternal”. Usando a expressão “fraude por paternidade”, a conceitua como aquela em que uma mulher assegura que um homem é o pai biológico de seu filho, sabendo que não é. A autora faz alusão a uma pesquisa britânica de 2016 que apontou que a cada 50 homens 1 acreditava ser pai de um filho que, na verdade, não era seu.

Os danos que podem emergir dessa conduta são muitos e tendem a tornarem-se cada vez mais gravosos e intensos quanto mais tempo se leve para a descoberta da mentira. Um homem pode ser conduzido a dedicar uma série de recursos materiais e criar vínculos emocionais, os quais não somente lhe causam lesões a bens jurídicos importantes, mas também à sua eventual prole real.

Não obstante a gravidade da conduta enfocada e de suas consequências materiais e morais, a “Fraude Paternal” não é considerada como crime na maioria dos países.

Em uma clara intencionalidade de apontar para um inaceitável “espaço vazio de direito”, um então porta – voz do Ministério da Justiça alemão, chamado Piotr Malachowski, afirma que esses casos se referem a um “assunto privado que não compete à Justiça”. Na Espanha e em muitos outros países há uma exigência desmedida de comprovação de que a fraude tenha produzido “um enorme dano psicológico para poder demandar em termos de ‘danos’”, sendo, porém admissível acionar a mãe fraudadora por “enriquecimento ilícito”.
Aquilo que se pode denominar de “violência reprodutiva contra o homem”, no entanto não é considerado como crime em geral no Direito comparado, assim como no nosso próprio ordenamento. Na verdade o que ocorre na maioria dos casos é que a situação sofrível do homem nessas circunstâncias é ainda mais agravada pelo Estado, o qual obriga pais enganados a manter filhos que não são seus, mesmo diante de comprovação inequívoca por exame de DNA. Pode-se pensar que isso seria uma característica de países pouco desenvolvidos. Mas, essa é a posição albergada pela “maioria dos juízes nos Estados Unidos, onde há numerosos precedentes”. Destaca-se o caso de um homem que foi obrigado a continuar pagando alimentos, mesmo depois que a mãe fraudadora se casou com o verdadeiro pai biológico da criança. No Japão, embora dotado de uma cultura bastante conservadora, o “Tribunal Supremo” considerou que mesmo resultados de DNA negativos de paternidade imputada não são suficientes para invalidar as obrigações “paternas” (sic) de quem, na verdade, não é realmente o pai. Pior que isso é o que ocorre na França, onde são proibidos exames de paternidade privados. E mais, tal conduta é considerada criminosa para o homem e apenada com um ano de prisão e multa de até 15.000 euros. O exame de paternidade na França só pode ser levado a efeito mediante ordem judicial, de forma que é o suposto pai excluído do direito de investigar se foi ou não enganado, sem que tenha a autorização do “aparato estatal”. A Espanha não penaliza o pai pela investigação de paternidade e permite que no prazo de um ano possa demonstrar a ocorrência de “Fraude Paternal”. No entanto, não prevê qualquer compensação por pagamento de alimentos e outras despesas indevidas. Apenas na Alemanha, inobstante a manifestação supra mencionada do porta – voz Malachowski, é que se tem tomado alguma providência para compensar o homem enganado, estabelecendo que o pai biológico deverá restituir até dois anos de alimentos e outras despesas empreendidas, bem como obrigando a mãe cuja fraude for descoberta a indicar o nome do pai verdadeiro, sob pena de multa cominatória ou astreintes e até mesmo de prisão civil.

Em geral essa deficiência protetiva do homem enganado tem sido pretensamente justificada pelo interesse superior do bem – estar do menor envolvido. Contudo, essa suposta justificativa não se sustenta, pois que há certamente meios de desobrigar o homem enganado, punir a fraude e indenizar os danos morais e materiais, sem necessariamente prejudicar o menor envolvido. Não se trata de um jogo de soma zero, onde a criança é necessariamente prejudicada se o homem é protegido. A responsabilidade pela manutenção do menor obviamente pode e deve ser transferida para o verdadeiro pai biológico, o qual, na verdade, é aquele que tinha a obrigação desde o início. Acaso este não tenha condições, há sempre a possibilidade de complemento por seus ascendentes e/ou pelos familiares da mãe. Também caberia ao pai biológico e/ou também à mãe fraudadora a compensação financeira ao homem lesado. A verdade é que existem muitas alternativas sem prejuízo ao menor implicado, o que inexiste é vontade política de implementação dessas soluções, bem como uma tendência a penalizar os homens em toda e qualquer relação de gênero, por razões meramente ideológicas que impõem um filtro deformador da realidade. Isso é notável pela absoluta insensibilidade para com o fato de que nesses casos de “Fraude Paternal” a Justiça acabe castigando a vítima, sem gerar a mais mínima indignação social ou pleito pelo reconhecimento da conduta enfocada como crime.

Sommers enfatiza o fenômeno do ginocentrismo ideológico que oculta a humanidade comum entre as pessoas, independentemente de sexo ou gênero:

Ouvimos muito pouco hoje sobre como as mulheres podem se unir aos homens em igualdade de condições para contribuir para uma cultura humana universal. Em vez disso, a ideologia feminista tomou um rumo divisivo e ginocêntrico, e a ênfase agora está nas mulheres como uma classe política cujos interesses estão em desacordo com os interesses dos homens.

Como bem aduz Jiménez:

El tratamento del fraude paternal em la mayoría de los países constituye uma muestra inequívoca de discriminación sexista en el ámbito jurídico, político y mediático. En un mundo que afirma querer avanzar hacia la igualdad, es necessário señalar la incongruência de relegar esta forma de violência reproductiva al ámbito privado y estabelecer un debate público que desemboque en modificaciones legales.

É claro que seria de um anacronismo grotesco pretender apontar o pensamento feminista radical como a origem ou fonte remota da falta de atenção para com a “Fraude Paternal” nos âmbitos penal e civil. Tanto a atipicidade penal quanto a desconsideração para com as agruras do homem no campo cível, são antecedentes, havendo até mesmo brocardo latino relativo à irrepetibilidade do indébito alimentar em geral (“Alimenta decernuntur, (…) nec teneri ad restitutionem praedictorum alimentorum, in casu quo victus fuerit” – “Os alimentos são decretados e não vinculados a restituição em caso de derrota”). Porém, é preciso rastrear as origens do fenômeno de ideias difundidas acriticamente pelos cultores do Direito e que já poderiam ter sido objeto de muito maior reflexão e consequente evolução. Fato é que se um feminismo radical influente e tendente a obscurecer os padecimentos masculinos não estivesse tão arraigado no senso comum e na intelectualidade, fatos como a “Fraude Paternal” não teriam passado despercebidos e sido relegados a um olvido lacunoso absolutamente injusto e desproporcional. Sem as travas ideológicas conscientes ou inconscientes, as lacunas absurdas nos campos penal e civil acerca da “Fraude de Paternidade” já teriam sido superadas há tempos, ao invés de se perpetuarem até a atualidade e serem objeto de raríssimas denúncias como a deste texto, o qual corre o risco de ainda ser mal recebido no seio de grupos ajustados a uma tradição que se julga “progressista” e não percebe o quanto é, na verdade, reacionária e infensa a qualquer discordância crítica.

Há um caldo cultural bem assentado que conduz ao desprezo pelas desvantagens masculinas e que certamente tem promovido e mantido um atraso na solução de problemas como a “Fraude Paternal”.

Sommers demonstra como essa mentalidade divisiva e preconceituosa atinge até mesmo a formação e o tratamento dado a crianças do sexo masculino, o que certamente induz futuros profissionais e estudiosos do direito a serem desleixados com relação aos problemas que afetam ao homem. Homens e até meninos são considerados como naturalmente violentos e violadores, sendo os segundos tachados como “protomaltratadores” que precisam de “programas de intervenção e socialização” capazes de extirpar os “estereótipos masculinos”. Isso resulta na promoção das meninas como vítimas constantes de prejuízos e dos meninos sempre e necessariamente como o gênero injustamente favorecido. Não há dúvida de que o crescimento da influência desses promotores da chamada “Justiça de Gênero” tem sido responsável por um ambiente cultural hostil a qualquer estudo ou preocupação com o gênero masculino, considerado sempre através das lentes ideológicas que o transformam em um invariável privilegiado opressor. Nos Estados Unidos, departamentos de educação acatam um guia denominado “Gender Violence! Gender Justice”, onde são encontradas lições que visam conscientizar os meninos sobre como “os homens causam sistematicamente sofrimento às mulheres”. Cada vez mais os meninos vivem em um ambiente de desaprovação nas escolas. São vistos rotineiramente como “protosexistas”, “abusadores potenciais” e “perpetradores de injustiça de gênero”. Os garotos vivem hoje sob uma “nuvem de censura” que os coloca em “permanente estado de culpabilidade”. Note-se que a abordagem é eminentemente unidirecional, desconsiderando a bilateralidade inerente a qualquer relação intersubjetiva, o que induvidosamente induz à formação de um pensamento simplista, incapaz de abarcar a complexidade do mundo da vida. Pessoas com essa formação (ou deformação) intelecto – emocional serão inevitavelmente incapazes de detectar falhas, por exemplo, no tratamento jurídico conferido aos homens em temas como o discutido neste trabalho, gerando uma indevida estagnação da ciência jurídica e até mesmo um bloqueio acadêmico do livre debate. Não é que tais pessoas sejam capazes de vislumbrar uma desigualdade, uma lacuna, mas rejeitar argumentativamente e intelectualmente a necessidade de sua correção. Na verdade, indivíduos (homens ou mulheres) assim formados (deformados) são incapazes sequer de perceber a existência de um problema a ser estudado e debatido. E quando confrontados com a questão reagem de forma emocional, movidos por um condicionamento ou até mesmo um adestramento moral e intelectual.

É justamente por isso que é premente a necessidade de discussão a respeito do tema da “Fraude Paternal” e da alteração do horizonte de abordagem, interpretação e regulamentação do problema na seara jurídica penal e civil. Isso é o que inspira a elaboração deste texto, onde se pretende expor uma visão crítica do “status quo” da questão, pugnando por um tratamento justo e igualitário entre mulheres e homens.

3 – FRAUDE PATERNAL E A SITUAÇÃO DO HOMEM ENGANADO SOB O PRISMA DO GARANTISMO INTEGRAL

A teoria do “Garantismo Jurídico” apregoada, dentre outros, por Ferrajoli costuma ser deturpada por muitos mediante uma redução indevida a seu aspecto negativo que se refere à imposição de limites ao arbítrio estatal frente ao indivíduo. Nesse passo, acaba-se descurando a face positiva da teoria enfocada, que diz respeito às obrigações estatais de garantia de proteção a bens jurídicos.

Opõem-se então duas facetas do Garantismo:

Uma que se tem denominado de “Garantismo Hiperbólico Monocular”, a qual exatamente enxerga e descreve o Garantismo apenas sob sua concepção negativa, levando ao extremo as garantias do indivíduo perante o Estado, sem a contrapartida do chamado “Garantismo Positivo”. Essa é uma visão evidentemente pervertida da teoria. Outra, que se constitui na correta concepção garantista, tem sido chamada de “Garantismo Integral”, abrangendo o “Garantismo negativo” ao lado do “Garantismo positivo” em uma relação de complementariedade. Pugna-se pela proteção de todos os direitos fundamentais, sejam eles atinentes a investigados ou réus, sejam relativos às vítimas ou qualquer prejudicado por uma conduta dotada de reprovabilidade. Por isso se fala em “proibição de excesso” (limites ao Estado perante o indivíduo, evitando o arbítrio) e “proibição de insuficiência protetiva” (impossibilidade de deixar bens jurídicos sem a devida, razoável e proporcional proteção).

No tema da “Fraude Paternal” o que ocorre é que uma indevida ideologização da questão sob o prisma de gênero acaba obnubilando o necessário tratamento do problema de maneira ampla e não de forma unilateral, deixando de lado, sem pudores, a vitimização do homem.

Um influente feminismo radical propõe uma visão “divisiva da realidade social e política”, acreditando na existência de uma “guerra de gênero”, de maneira a somente dar ênfase a “histórias de atrocidades” perpetradas pelos homens contra as mulheres, a fim de alertar estas últimas sobre sua situação sofrível. Nesse quadro não é de espantar que a bilateralidade das relações intersubjetivas entre homens e mulheres seja totalmente obliterada em detrimento dos primeiros, ao ponto de ocasionar até mesmo sua desumanização. Fato é que conforme bem descreve Sommers:

“A presunção de que os homens estão coletivamente engajados em manter as mulheres para baixo convida as feministas a se unirem em uma comunidade ressentida”.

E, como é sabido, o ressentimento geralmente conduz a uma cegueira deliberada ou mesmo patológica, o que, no mundo social e jurídico, somente pode levar a injustiças.
Nas circunstâncias de “Fraude Paternal” os homens estão em meio a um quadro nítido de “insuficiência protetiva”, seja no campo penal, seja no civil, de forma que o “Garantismo Integral” cede espaço, de maneira inadmissível, a um “Garantismo Monocular”.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos consolidou no Caso Velásquez Rodrigues vs. Honduras, que os Estados – Partes têm obrigação de tutelar positivamente os Direitos Humanos e não somente obrigações negativas neste campo. Restou consignado expressamente no § 176 que os Estados têm a obrigação de “investigar toda situação na qual tenham sido violados direitos humanos protegidos pela convenção. Se o aparato do Estado atua de modo que tal violação fique impune e não se restabeleça, enquanto possível, à vítima a plenitude de seus direitos, pode afirmar-se que descumpriu o dever de garantir seu livre e pleno exercício às pessoas sujeitas à sua jurisdição”. Ademais a Corte IDH ofertou uma definição de impunidade como sendo “a falta em seu conjunto de investigação, persecução, captura, instrução processual e condenação dos responsáveis pelas violações dos direitos protegidos pela Convenção Americana, uma vez que o Estado tem a obrigação de combater tal situação por todos os meios legais disponíveis, já que a impunidade propicia a repetição crônica das violações dos direitos humanos e total desproteção das vítimas e seus familiares” (Caso Ivcher Bronstein, Sentença de 06.02.2001. Série C, n. 74, par. 186; Caso do Tribunal Constitucional, Sentença de 31.01.2001. Série C, n. 71, par. 123; Caso Bámaca Velásquez, Sentença de 25.11.2000. Série C, n. 70, par. 211).

Não resta dúvida de que a “Fraude Paternal” tem potencial para ultrajar direitos do homem, como sua dignidade, sua estabilidade emocional, seu patrimônio, sua família etc. E a Convenção Americana sobre Direitos Humanos assegura a proteção à dignidade (artigo 11, item 1); a Proteção da Família (artigo 17, itens 1 e 4); a propriedade privada ou patrimônio (artigo 21, itens 1 e 2), afora a igualdade (artigo 24) e a Proteção Judicial (artigo 25). E os mesmos direitos são também garantidos pelo nosso ordenamento interno na Constituição Federal (artigo 1º., III; artigo 226; artigo 170, II; artigo 144; artigo 5º., I e XXXV).

Entretanto, o tratamento dado ao problema da “Fraude de Paternidade” tem sido absolutamente omisso e lacunoso quanto a todas essas garantias.

Isso mesmo já havendo nosso Supremo Tribunal Federal estabelecido sua adesão inconteste ao “Garantismo Integral”, tal como se vê no seguinte julgado:

“O princípio da proporcionalidade, implicitamente consagrado pelo texto constitucional, propugna pela proteção dos direitos fundamentais não apenas contra os excessos estatais, mas igualmente contra a proteção jurídica insuficiente, conforme a teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais” (RE n. 971.959/RS, STF, Rel. Min. Luiz Fux, Plenário, j. 14.11.2018, Dje 190 Divulg. 30.07.2020, publ. DJ 31.07.2020 – grifo nosso).

Parece então isento de dúvidas o fato de que a questão da “Fraude Paternal” mereceria por parte do legislador maior atenção, com vistas à proteção de bens jurídicos lesados com relação ao homem vitimizado por tal conduta. Pode-se afirmar que o tratamento dado ao tema no momento é eivado de inconvencionalidade e inconstitucionalidade por insuficiência protetiva.

4 – FRAUDE PATERNAL E DIREITO PENAL

Como já visto, na atual conjuntura, a conduta que constitui a “Fraude Paternal” é penalmente atípica, o que deixa sem proteção diversos bens jurídicos da vítima.
Tendo em vista a pluralidade de bens jurídicos em jogo, seriam possíveis várias propostas para a criminalização. A título exemplificativo:

Considerando o bem jurídico patrimônio, que pode ser atingido pelo pagamento de alimentos, em situações que envolvam sucessão hereditária e mesmo na prática de liberalidades como doações, presentes etc., seria possível vislumbrar a viabilidade de que a “Fraude Paternal” fosse incluída como um inciso do § 2º., do artigo 171, CP. Seria uma modalidade especial de estelionato.

Outra possibilidade, considerando o fato de que poderia haver lançamento de informação falsa em Certidão de Nascimento e outros documentos públicos ou privados, seria o crime de “Falsidade Ideológica” por parte da mulher infratora (artigo 299, CP).

Poderia ainda, tendo em vista o envolvimento da família e do estado de filiação, ser promovida uma alteração no artigo 242, CP para inserir a conduta de atribuir falsamente a paternidade de filho de outrem a um homem.

A nosso ver, a previsão desse tipo de conduta como crime patrimonial é reducionista, pois que envolve muito mais do que apenas o patrimônio. Também é reducionista a previsão como crime contra a fé pública. Assim sendo, entendemos que o mais correto seria a criminalização da conduta da “Fraude de Paternidade” como um ilícito penal abrigado no Título VII – Dos Crimes contra a Família, Capítulo II – Dos Crimes contra o Estado de Filiação. Esses parecem ser os bens jurídicos mais relevantes e afetos diretamente ao caso, tanto com relação ao homem enganado, quanto com referência à criança e outros envolvidos (tios, avós, irmãos etc.), que também sofrerão as consequências da atitude tresloucada da genitora.

No entanto, não parece que a melhor solução seja a inclusão da conduta no corpo do artigo 242, CP. Seria de melhor técnica a criação de um novo tipo penal específico, um artigo 242 – A, CP para incriminar exatamente a “Fraude Paternal”, inclusive com o emprego desse “nomen juris”. Para tal crime deveria ser prevista uma pena de reclusão, de 2 a 6 anos, tal como no artigo 242, CP, com acréscimo da previsão de uma pena de multa, tendo em vista a potencialidade de dano material ao homem vitimado. Mas sem as benesses do Parágrafo Único do artigo 242, CP, eis que a conduta é vil, torpe, não sendo possível vislumbrar qualquer motivação nobre em um ato como esse. Quanto aos demais bens jurídicos envolvidos, seria interessante prever um parágrafo com incisos de casos de aumento de pena: um aumento de pena de 1/3 até 1/2, acaso houvesse requerimento e/ou recebimento por parte da genitora infratora de qualquer espécie de valor patrimonial referente a alimentos ou prestado pela vítima a qualquer título, assim como o ingresso com ação de reconhecimento de paternidade sabidamente improcedente. A variação entre 1/3 e 1/2 , seria útil porque certamente o aumento não poderia ser o mesmo quando houvesse apenas o requerimento de algum valor e quando esse valor fosse realmente prestado, também não poderia ser o mesmo no caso do requerimento informal, de um simples pedido de ajuda e na situação em que a mulher ajuíze uma ação de alimentos, por exemplo. Assim também deveria variar o aumento com relação ao montante maior ou menor do prejuízo patrimonial causado à vítima. Em outro inciso deveria constar outro aumento de pena da mesma ordem anterior acaso houvesse efetivo registro de nascimento em nome do homem vitimizado como pai. Eventuais danos à honra causados pela imputação falsa de paternidade que venham a constituir crimes contra a honra devem ser absorvidos, pois que inerentes às circunstâncias. Da mesma forma seriam absorvidos crimes relativos à falsidade material ou ideológica no que se refere ao registro de nascimento, pois que já previstos como causa de aumento, configurando “bis in idem” eventual pretensão de concurso. Em havendo concomitância das situações a ensejarem os respectivos aumentos, poderia o magistrado optar, fundamentadamente, pela aplicação em cascata das exasperações ou, como seria mais comum, seguindo o artigo 68, Parágrafo Ùnico, CP, aplicando apenas um dos aumentos dentro das balizas mínima e máxima legalmente previstas.

Outro aspecto importante seria relativo ao tempo de duração da falsa atribuição de paternidade, pois quanto maior a dilação temporal dessa situação maiores tenderão a ser os prejuízos (especialmente emocionais) tanto para o pai suposto quanto para o filho(a), bem como outras pessoas envolvidas (avós, irmãos, tios etc.). Isso, a nosso sentir, deveria compor uma qualificadora com pena de reclusão, de 4 a 8 anos, sempre que a duração da mentira ultrapassasse o período de um ano. Acima de um ano, a variação de tempo seria individualizada de acordo com o intervalo de pena “in abstracto” legalmente previsto. Essa qualificadora deveria ser inscrita em um parágrafo que antecedesse às causas de aumento de pena, já que os parágrafos se aplicam a tudo que está acima deles. Assim sendo, em havendo a qualificadora temporal e ainda as causas de aumento, seria possível aplicar as exasperações devidas à pena qualificada sem qualquer problema. Nesse mesmo parágrafo deveria também ser prevista outra causa de qualificação: quando o homem, em razão da falsa imputação de paternidade, venha a sofrer investigação criminal ou ação penal por crimes contra a assistência familiar, especificamente de “Abandono Material ou Intelectual” (artigos 244 e 246, CP). Assim também se padecer Prisão Civil por Dívida Alimentícia. Em havendo concomitância de qualificadoras, a questão deverá ser resolvida mediante individualização entre as balizas máxima e mínima cominadas. Obviamente, em se tratando de circunstância que qualifica o crime, a eventual “Denunciação Caluniosa” (artigo 339, CP) por abandono material ou intelectual será absorvida, já que pretenso concurso configuraria “bis in idem”.

Finalmente, como se trata de uma situação onde se oculta a verdade e sua descoberta pode demandar muito tempo, antes do qual seria impossível a persecução penal da infratora, é preciso pensar num marco especial para o início da prescrição. Esse marco deveria ser a data do conhecimento da fraude pelo homem vitimado. A partir do seu conhecimento é que se iniciaria a contagem do prazo prescricional.

Tendo em vista a variedade de bens jurídicos envolvidos (patrimônio, integridade psíquica, fé pública, estado de filiação) e de pessoas que podem ser prejudicadas (o homem dado como pai suposto, o filho (a) suposto, os filhos(as) verdadeiros desse homem com outra mulher, a esposa, namorada ou companheira desse homem enganado, herdeiros, outros familiares e até mesmo o verdadeiro pai biológico e seus familiares) a ação penal somente poderia ser pública incondicionada.

Outro detalhe que parece importante é que no caso de pleito de alimentos e/ou quaisquer outras vantagens financeiras, bem como ação de reconhecimento de paternidade, o advogado responsável, desde que ciente da atuação fraudulenta da cliente deveria responder na condição de partícipe. Da mesma forma, qualquer pessoa que tenha auxilidado, induzido ou instigado a autora a essa prática. Certamente a “Fraude Paternal” será classificada como um “crime de mão própria”, “de atuação pessoal” ou “de conduta infungível”, já que só poderá ser “cometido pessoalmente pelo autor designado no tipo penal”. Não obstante, como já acontece com o crime de “Falso Testemunho”, não admitirá o concurso de agentes apenas na modalidade de coautoria, mas o admtirá na forma de participação. Contudo, todo aquele envolvido no crime, desde a mulher até eventuais partícipes, deverão agir com “dolo direto”, não sendo admissível a punição da forma culposa e nem mesmo do dolo eventual. Seria injusto com a mulher e demais envolvidos a punição em casos que tais. Não contando os agentes com a certeza da falsidade da paternidade atribuída, a conduta não apresenta a necessária reprovabilidade a justificar uma reação punitiva. Essa certeza da falsidade da atribuição de paternidade deve ficar muito clara na redação do tipo penal como elementar. Imagine-se, por exemplo, uma mulher que teve relações com dois homens em um mesmo período e acredita realmente que ficou grávida de um deles. Não comprovado seu “dolo direto”, parece muito claro que apenas está procurando esclarecer a verdadeira paternidade. Isso não significa que à mulher venha a ser dada a possibilidade de simplesmente escolher a esmo ou movida por motivos inconfessáveis a paternidade da criança. Num caso como esse a ausência de dolo direto será clara e evidente porque caberá à mulher indicar sempre a sua dúvida, seja para os homens envolvidos, seja numa eventual ação de reconhecimento de paternidade. A partir do momento em que simplesmente atribuir a um deles a paternidade, sabendo da possibilidade de que seja o outro o verdadeiro pai, configurado estará induvidosamente o dolo direto. Não se trata de assumir o risco da fraude, mas de uma escolha lotérica ou movida por algum interesse escuso apta a configurar o dolo direto e afastar o dolo eventual e a culpa. Vale também salientar que o crime será “próprio” ou “especial”, exigindo do autor uma qualidade pessoal diferenciada”, no caso específico tratar-se de mulher grávida ou mãe. Homens e mulheres não grávidas ou mães, poderão até responder pelo ilícito em questão, mas tão somente em concurso de agentes e, como já esclarecido, na qualidade de partícipes e não coautores. Não é imaginável, como já mencionado neste texto, a prática de uma “Fraude Maternal” por parte de um homem. Isso devido a condições fáticas relativas à natureza e características de cada um dos sexos. Note-se também que se uma mulher que não esteja grávida ou não seja realmente mãe de ninguém, atribuir a um homem a paternidade de um ser inexistente, configurar-se-á “crime impossível”, nos termos do artigo 17, CP (ineficácia absoluta do meio e do objeto). Esse tipo de mentira ficaria restrito ao campo da moralidade, não sendo abrangido pelo Direito.

Essa é basicamente nossa proposta para a repressão da “Fraude Paternal” no campo do Direito Penal, não sendo admissível a atual situação de atipicidade que deixa sem proteção legal o homem gravemente lesado com essa espécie de conduta.

5 – FRAUDE PATERNAL E DIREITO CIVIL

Como já visto, também a situação do homem enganado na “Fraude de Paternidade” não é nem um pouco ideal na legislação comparada e no Direito Brasileiro no campo Civil.

Já foram expostas várias legislações e decisões judiciais altamente prejudiciais ao homem lesado no Direito estrangeiro, compondo-se um verdadeiro quadro de vitimização secundária inadmissível e obviamente injusta. Segundo Beristáin, a vitimização secundária “emana de respostas formais ou informais obtidas pela vítima”, cujo quadro de omissão e desprezo já exposto quanto à situação do homem diante da “Fraude Paternal” não deixa dúvidas sobre sua ocorrência patente.

Em regra se tem considerado que os alimentos pagos não admitem a repetição do indébito. Essa conclusão se encontra em consonância com uma das características do direito a alimentos, conforme expõe a doutrina, qual seja, a sua condição de “irrepetível ou irrestituível”. Essa irrepetibilidade dos alimentos se espraia pelos alimentos provisórios ou provisionais, gravídicos e definitivos. Gonçalves, trazendo à baila o escólio de Pontes de Miranda, chama a atenção para o fato de que os alimentos recebidos “não se restituem”, mesmo quando o “alimentário” venha a perder a ação na mesma instância ou em grau recursal. Não obstante, o mesmo autor, com razoabilidade, procura obtemperar a irrepetibilidade, impondo-lhe o limite do “dolo” na obtenção dos alimentos, o que se coaduna perfeitamente com o caso da “Fraude Paternal”. Nesses casos é preciso deixar bem estabelecido que os alimentos são sim passíveis de repetição do indébito. Diante dessas situações onde a má – fé é evidente não é possível emprestar caráter absoluto à irrepetibilidade, sob pena de ensejar enriquecimento ilícito e prejudicar o homem enganado por uma interpretação eivada de “insuficiência protetiva” no campo civil.

Evangelista registra “a posição majoritária sobre a impossibilidade de repetição de pensões alimentícias”, mas adverte para a necessidade de ponderação, sustentado no paradigma de Miguel Reale, quanto à “eticidade” em sua vertente da “boa – fé objetiva”. E o autor apresenta exatamente o exemplo da “Fraude Paternal” como um caso que excepciona a irrepetibilidade do indébito nos alimentos, ensejando a aplicação dos artigos 186 e 187 c/c 927, CC:

Ousamos criar situações casuísticas, o que é arriscado em se tratando de Direito de Família, visto que a regra continua a ser a irrepetibilidade de alimentos. Na situação em que, por exemplo, o alimentado (5 dias de vida), por seu representante (ascendente – genitora), move ação de alimentos em face de pessoa a qual o representante legal sabe não ser o ascendente genético há evidente má-fé, o que gera danos patrimoniais ao eventual alimentante com o deferimento dos alimentos provisórios.

Apesar de serem encontráveis em nossa doutrina, conforme exposto, uma visão que reconhece a vulnerabilidade masculina nas situações de “Fraude Paternal”, apresentando-a como caso de excepcionar a irrepetibilidade dos alimentos, fato é que prevalece o entendimento de que essa característica dos alimentos é absoluta, não cedendo mesmo diante de descarada má – fé. E isso mesmo considerando o fato de que a impossibilidade de repetir o indébito no caso de alimentos não é positivada explicitamente na legislação pátria, mas tão somente decorre de construção doutrinário – jurisprudencial. No Brasil não há correspondente ao artigo 2007, n. 2 do Código Civil português, o qual é expresso em determinar a inexistência, em caso algum, de possibilidade de restituição de alimentos provisórios recebidos. Essa construção teórica brasileira com fulcro na lacuna legal (pairando, portanto, no vazio em termos legislativos), a qual traz ingentes consequências práticas deletérias ao homem enganado, na verdade se sustenta em posições ideológicas e em alegações sentimentalistas acerca da subsistência do alimentando. Acontece que nem mesmo essa segunda motivação justifica a lesão irreparável ao homem enganado, pois, como já visto, os alimentos podem perfeitamente ser prestados pelo verdadeiro pai, inclusive a título provisório e /ou pelos ascendentes deste ou mesmo da mãe. Isso sem contar a obrigação da própria genitora em prover sua prole.

Exemplo desse posicionamento irredutível equivocado é o de Tartuce:

A irrepetibilidade dos alimentos é conceito antigo relacionado com a obrigação em questão, no sentido de que, sendo pagos, em hipótese alguma caberá a repetição do indébito (actio de in rem verso). (…). O fundamento dessa obrigação nos direitos da personalidade e na tutela do indivíduo pode ser utilizado como suporte para afastar eventual repetição de indébito.

Sendo dessa forma, a alegação de pagamento indevido ou enriquecimento sem causa não consegue vencer a obrigação alimentar, diante da tão costumeira proteção da dignidade humana relacionada com o instituto. Em suma, não são aplicáveis as regras previstas entre os arts. 884 a 886 do Código Civil que tratam da vedação do enriquecimento sem causa. Em outras palavras, a atribuição patrimonial relativa aos alimentos é sempre causal e justificada.

Em reforço, não se pode esquecer do caráter puramente satisfativo dos alimentos, que visam a manutenção da vida da pessoa humana. Sendo assim, é inviável a sua devolução, até porque os valores eventualmente reavidos podem estar relacionados com o mínimo existencial que a pessoa necessita para o período temporal subsequente.
Firmadas tais premissas, a título de exemplo, se proposta uma ação de investigação de paternidade cumulada com alimentos e fixados alimentos provisionais e depois ficando comprovado que o réu não é o pai da criança, não caberá a devolução dos valores pagos a título alimentar.

Ao analisar especificamente o caso de “Fraude Paternal”, dando o exemplo de uma mulher que dolosamente imputa a paternidade a um homem e depois tem comprovada a fraude por exame de DNA, bem como sua ciência de que não se tratava realmente do pai biológico, Tartuce ainda insiste na impossibilidade de repetição do indébito. No entanto, admite “indenização por danos morais pelo engano”. Nesse caso, seria necessário evidenciar a ocorrência de “danos imateriais” devido ao “abuso de direito” e “desrespeito à boa – fé objetiva”, com sustento no artigo 187, CC. Neste sentido, aponta o autor julgados do STJ, não admitindo a repetibilidade do indébito com relação aos alimentos, mas deferindo a indenização por danos morais (STJ, REsp 922462/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª. Turma, j. 04.04.2013, DJe 13.05.2013; STJ, REsp. 412684/SP (200200032640), 4ª. Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 20.08.2002, publ. 25.11.2002).

Evidentemente essa solução de Tartuce não é adequada, pois que desconsidera o dano material mais facilmente demonstrável e obriga o lesado a comprovar danos morais, cuja aferição também é bem mais complicada e nossos tribunais tendem a ser bastante restritos e tímidos quanto aos valores atribuídos. O correto e justo seria a possibilidade dupla do dano moral e do dano material indenizável nos casos de “Fraude de Paternidade”. Não é possível continuar repetindo acriticamente velhas lições sem a necessária ambição de progredir e aperfeiçoar os institutos. Essa obstinação e apego a dogmas doutrinários que precisam de revisão acaba descambando para a situação bem descrita por Chateaubriand como a “arrogância da miséria e o orgulho dos andrajos”.

Outro fator importante é que se tem considerado que a paternidade atualmente não se reduz ao vínculo sanguíneo. Ela deve ser analisada segundo três fatores: “genético, social e afetivo”. Dessa forma, a jurisprudência do STJ tende a negar a anulação de registro civil e desoneração de alimentos mesmo diante do Exame de DNA negativo, em havendo provas de vínculo social e/ou afetivo. Esse é um fator que torna ainda mais gravosa para o homem a “Fraude Paternal”. Na verdade, em havendo o vínculo social e/ou afetivo, o STJ tem denegado os pleitos de anulação de registro e desoneração de alimentos, somente admitindo exceção em casos de “erro, coação, simulação, fraude ou falsidade do registro” (STJ REsp 1433470/RS, REsp 1342070/SP, REsp 1022763/RS, REsp 709.608/MS. TJMG Apelação Cível nº 1.0245.03.023086-7/001 ; AC nº 1.0024.03.058104-5/001; AC nº 1.0281.02.001281-7/001; Ação rescisória 10000110844438000). Observe-se, porém, que fica implícito que em havendo sido criados outros vínculos afora o genético, o homem não somente não fará jus à restituição do que pagou como deverá permanecer pagando, o que é muito diferente do caso em que, devido a tais vínculos, por liberalidade e espontaneamente, continue a auxiliar o alimentando. Nos casos de “Fraude Paternal”, o mais correto seria a desoneração, indenização por danos morais e materiais e a busca dos alimentos diante do pai biológico e demais sujeitos passivos legítimos dessa obrigação. Jamais a situação em que um homem submetido a um engodo sofra a revitimização por imposição Estatal de obrigações que não lhe cabem, a não ser que as assuma por livre e espontânea vontade. A falta de tratamento explícito da matéria da “Fraude Paternal” no campo civil e também da questão da repetição de indébito dos alimentos ocasiona toda essa situação prejudicial ao homem lesado. Por isso seria cabível uma sugestão “de lege ferenda” a fim de que a matéria fosse regulada, considerando especificamente os casos de “Fraude Paternal” e estabelecendo um regramento mais justo para o homem e demais envolvidos e não deixando a mulher que age de má – fé em uma situação tão confortável como se encontra atualmente.

6 – CONCLUSÃO

No decorrer deste trabalho foi empreendido o estudo do problema da falta de um tratamento jurídico adequado, tanto no campo penal como no civil, para a questão da “Fraude Paternal” ou “Fraude de Paternidade”.

Trazendo ao debate os conceitos de “espaço livre de direito”, “espaço vazio de direito” e “lacunas do direito”, chegou-se à conclusão de que não se trata nem de uma regulação específica a deixar o tema em uma posição adiafórica por disposição legal (“espaço livre”), nem de um recuo proposital do mundo jurídico a manter a questão apenas na consciência individual (“espaço vazio”). Na verdade, a falta de um tratamento adequado da “Fraude Paternal” é uma verdadeira “lacuna do direito”, reclamando sua urgente colmatação, pois que geradora de desigualdade e injustiça.

Constatou-se que a questão é miseravelmente tratada na doutrina nacional e estrangeira, consistindo a “Fraude Paternal” na atribuição deliberada da paternidade de uma criança a um homem que se sabe não ser o pai biológico.

Essa situação é geradora de vários prejuízos das mais diversas ordens para o vitimado (financeira, sucessória, familiar, social, emocional etc.) e também para o Estado (fé – pública). Não obstante, o tema é simplesmente desprezado na seara penal, constituindo-se em fato atípico. No que tange ao campo civil a questão é tratada como se o homem lesado não merecesse quase nenhum amparo.

A falta de uma abordagem jurídica adequada e proporcional da “Fraude de Paternidade” é algo que remonta às origens do Direito, em especial do Direito de Família. Entretanto, entendemos que a temática respectiva se encontra emperrada ao longo do tempo, sem ser objeto de maior estudo e desenvolvimento, tendo em vista sua obnubilação pelas lentes de uma ideologia feminista radical que tende a ocultar os problemas masculinos, acabando por violar as regras de um “Garantismo Integral” com a criação de uma situação de “insuficiência protetiva”, lesando a igualdade e a justiça.

Propõe-se a criação de um tipo penal especial para a punição rigorosa da “Fraude Paternal”, bem como a colmatação da lacuna do regramento civil da questão, especialmente no que diz respeito à repetição do indébito em caso de alimentos prestados por vítima de engodo envolvendo “Fraude de Paternidade”.

Na seara penal a questão é urgentíssima, pois que a absoluta atipicidade da conduta não permite de forma alguma sua punição a qualquer título. Quanto ao campo civil, já há posições na doutrina defendendo que a má – fé gravíssima, que é ínsita a esse tipo de conduta, justifica uma exceção à regra da irrepetibilidade dos alimentos e também a indenização por dano moral do homem enganado. Não obstante, o fato de que o tema não é objeto de regulamentação expressa pela lei, mas de posições doutrinário – jurisprudenciais, torna relevante sua discussão e regramento expresso, inclusive para afastar entendimentos predominantes no sentido de que os alimentos são irrepetíveis sem qualquer exceção.

 

7 – REFERÊNCIAS
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BERISTÁIN, Antonio. Nova Criminologia à luz do Direito Penal e da Vitimologia. Trad. Cândido Furtado Maia Neto. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 10ª. ed. Brasília: UNB, 1999.

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Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós Graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

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