sexta-feira,29 março 2024
ArtigosFenômeno da Desmaterialização do Título de Crédito

Fenômeno da Desmaterialização do Título de Crédito

O título de crédito é um dos institutos mais importantes do Direito Empresarial, pois exerce influência, particularmente, na economia moderna, propícia mobilização de riqueza e de circulação de crédito, não obstante sua criação e seus precursores remontarem há séculos passados.

O conceito clássico mais utilizado é o de Cesare Vivante que o define como sendo o “documento necessário para o exercício do direito literal e autônomo nele mencionado”.

Para perfectibilização do título de crédito, o Código Civil determina o preenchimento de certos requisitos: data de emissão, indicação precisa dos direitos conferidos e assinatura do emitente (889, caput, CC). Em tempos remotos, o extravio do documento físico prejudicava sua cobrança mediante execução de título extrajudicial, que tem por princípios a satisfatividade, economia, especificidade, em caso de impossibilidade de emissão de triplicata, fazendo com que o credor buscasse outros meios de satisfação do crédito, demandando mais tempo e recursos que por vezes não traria a mesmo resultado prático.

Daí, com o avançar da internet e dos contratos eletrônicos, sobreveio a necessidade de regulação. O termo eletrônico, em tempos de ia – inteligência artificial – e prestação der serviços e contratos por meio da rede mundial de computadores induz a crer tratar-se de novidade, porém a regulação surgiu em 2002 com o Código Civil (art. 889, §3º):

Art. 889. Deve o título de crédito conter a data da emissão, a indicação precisa dos direitos que confere, e a assinatura do emitente.
§3° O título poderá ser emitido a partir dos caracteres criados em computador ou meio técnico equivalente e que constem da escrituração do emitente, observados os requisitos mínimos previstos neste artigo. (grifei)

A virtualização e a instantaneidade de perfectibilização de negócios jurídicos ao alcance de um “clique” trouxe uma melhora no fluxo de consumidores, diminuindo as taxas de desistência nas compras. No entanto, o alcance de públicos cada vez maiores e a evolução das vendas foi acompanhado pelo intricamento da formação dos contratos.

Necessário destacar que a duplicata digital, eletrônica ou escritural não corresponde a duplicata virtual também tida como título executivo extrajudicial, desde que acompanhada de instrumento de protesto por indicação e dos comprovantes de entrega da mercadoria e da prestação do serviço (RESP Nº 1.024.691 – PR; AgRg no REsp 1559824/MG) .

A prática da execução da duplicata escritural não era aceita por todos os tribunais, sob fundamento de que faltava ao título a cartularidade, ou seja, a materialização do documento.

Entretanto, esse impasse foi superado após a edição da Lei 13.775 em 2018, que passou a regulamentar a emissão de duplicatas escriturais. A definição deste título de crédito pode ser tida como duplicata virtual com lançamento em sistema eletrônico de escrituração, pela empresa credora da subjacente relação de compra e venda mercantil/prestação de serviços (RECURSO ESPECIAL: REsp 1797196 SP 2017/0238573-1).

A referida Lei prevê expressamente que “a duplicata emitida sob a forma escritural e o extrato de que trata o art. 6º desta Lei são títulos executivos extrajudiciais, devendo-se observar, para sua cobrança judicial, o disposto no art. 15 da Lei nº 5.474, de 18 de julho de 1968.”

Com isso, a cobrança judicial de duplicata escritural por meio de execução de títulos executivos extrajudiciais, em caso de aceite e independente de protesto; ou não aceita com exigência de protesto, comprovante de entrega e do recebimento da mercadoria, caso o sacado tenha comprovado os motivos constantes nos arts. 7º e 8º da lei de duplicatas, passou a ser tranquila perante os tribunais.

As discussões acerca da exequibilidade desses títulos formados virtualmente comumente chegam ao Superior Tribunal de Justiça, inclusive tendo este já publicado entendimento a respeito:

EDIÇÃO N. 56 do STJ: TÍTULOS DE CRÉDITO
3) As duplicatas virtuais possuem força executiva, desde que acompanhadas dos instrumentos de protesto por indicação e dos comprovantes de entrega da mercadoria e da prestação do serviço.

Nem há que se falar em violação ao princípio da literalidade, cuja preservação é assegurada por meio da assinatura digital, disciplinado pela Medida Provisória n. 2.200- 2/2001, que criou a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-BRASIL. Desta forma, o requisito de assinatura no corpo do próprio título é perfeitamente atendido mediante esse recurso tecnológico, como apontado por Raphael Velly de Castro.

Vale destacar que o posicionamento tranquilo do Superior Tribunal de Justiça:

EMENTA RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. EXECUTIVIDADE DE CONTRATO ELETRÔNICO DE MÚTUO ASSINADO DIGITALMENTE (CRIPTOGRAFIA ASSIMÉTRICA) EM CONFORMIDADE COM A INFRAESTRUTURA DE CHAVES PÚBLICAS BRASILEIRA. TAXATIVIDADE DOS TÍTULOS EXECUTIVOS. POSSIBILIDADE, EM FACE DAS PECULIARIDADES DA CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO, DE SER EXCEPCIONADO O DISPOSTO NO artigo 585, INCISO II, DO CPC/73 (artigo 784, INCISO III, DO CPC/2015). QUANDO A EXISTÊNCIA E A HIGIDEZ DO NEGÓCIO PUDEREM SER VERIFICADAS DE OUTRAS FORMAS, QUE NÃO MEDIANTE TESTEMUNHAS, RECONHECENDO-SE EXECUTIVIDADE AO CONTRATO ELETRÔNICO. PRECEDENTES.
1. Controvérsia acerca da condição de título executivo extrajudicial de contrato eletrônico de mútuo celebrado sem a assinatura de duas testemunhas.
2. O rol de títulos executivos extrajudiciais, previsto na legislação federal em “numerus clausus“, deve ser interpretado restritivamente, em conformidade com a orientação tranquila da jurisprudência desta Corte Superior.
3. Possibilidade, no entanto, de excepcional reconhecimento da executividade de determinados títulos (contratos eletrônicos) quando atendidos especiais requisitos, em face da nova realidade comercial com o intenso intercâmbio de bens e serviços em sede virtual.
4. Nem o Código Civil, nem o Código de Processo Civil, inclusive o de 2015, mostraram-se permeáveis à realidade negocial vigente e, especialmente, à revolução tecnológica que tem sido vivida no que toca aos modernos meios de celebração de negócios, que deixaram de se servir unicamente do papel, passando a se consubstanciar em meio eletrônico.
5. A assinatura digital de contrato eletrônico tem a vocação de certificar, através de terceiro desinteressado (autoridade certificadora), que determinado usuário de certa assinatura a utilizara e, assim, está efetivamente a firmar o documento eletrônico e a garantir serem os mesmos os dados do documento assinado que estão a ser sigilosamente enviados.
6. Em face destes novos instrumentos de verificação de autenticidade e presencialidade do contratante, possível o reconhecimento da executividade dos contratos eletrônicos.
7. Caso concreto em que o executado sequer fora citado para responder a execução, oportunidade em que poderá suscitar a defesa que entenda pertinente, inclusive acerca da regularidade formal do documento eletrônico, seja em exceção de pré-executividade, seja em sede de embargos à execução.
8. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
(REsp 1495920/DF, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/05/2018, DJe 07/06/2018)

Notadamente, por lei, é obrigatório o aceite na Duplicata (artigo 6º da Lei de Duplicatas), podendo ser ordinário, por comunicação ou por presunção; e não havendo pagamento no prazo estipulado, aceite ou devolução, deve ser protestada para que se prove o inadimplemento, suprindo o requisito da exigibilidade.

Em termos gerais, a Duplicata Escritural tem perfeitas condições de suportar os atos cambiários em decorrência da possibilidade de assinatura digital. O Código de Processo Civil traz como requisito da execução que a obrigação seja certa, liquida e exigível, nada mencionando acerca de necessidade da cártula.

Diante do noticiado, constata-se que as relações comerciais caminham, predominantemente, para a formação de contratos virtuais, por conseguinte, as garantias jurídicas e a própria legislação aquiescerão a esse viés como decorrência lógica das relações jurídicas.

Clinton Pereira

Advogado, bacharel em Direito pela Universidade Estácio de Sá (2019). Pós-graduando em Direito da Proteção e Uso de Dados pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil da Seção de São Paulo - OAB/SP.

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