quinta-feira,28 março 2024
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Fake News e a liberdade de expressão: a diferença entre remédio e veneno está na dosagem

O desenvolvimento dos meios tecnológicos e a consequente ampla difusão da internet e os meios digitais na sociedade proporcionaram o movimento da democratização da informação, em que permitiu, a um só tempo, que todos os cidadãos, além de serem informados, passassem a expressar e a divulgar informações, e que os veículos da grande e tradicional imprensa perdessem o monopólio da criação e da disseminação da informação. A sociedade em redes mediante o uso da tecnologia fez com que Manuel Castells propusesse modelo de democracia exercido diretamente pelo cidadão, numa participação integrada com as novas tecnologias, visando à transparência da gestão pública, da minimização do controlo estatal, do poder legislativo no cidadão, onde possa discutir e votar diretamente nas propostas efetuadas (Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 2009). Não há dúvidas de que a internet e os meios digitais deram voz à sociedade e à cidadania, tirando o monopólio da informação dos grandes veículos da imprensa, o que causa horrores à classe política em geral.

A liberdade de expressão é um direito fundamental protegido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e por Constituições de países que se apoiam no regime Democrático de Direito. Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quais quer meios e independentemente de fronteiras. A Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 consagra que toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão, incluindo a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha. O seu exercício não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas. Não se pode restringir o direito de expressão por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões. No Brasil, desde a Constituição de 1824 até a atual de 1988, consagrou-se o princípio da liberdade de pensamento. Um regime estatal pode se amparar na ideia de legalidade, mas ser antidemocrático. No período dos governos militares, em que, apesar da vigência da liberdade de expressão, foram editadas normas – a Lei de Imprensa (5.250/67) e Ato Institucional nº 5 – que previam a censura prévia em defesa da moral e dos bons costumes.

A Constituição de 1988 ampliou substancialmente a proteção à liberdade de manifestação, inserindo-a no rol dos direitos e garantias individuais. A par de uma sociedade democrática e plural, impôs-se que as manifestações do pensamento, da criação, da expressão e da informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observadas as restrições previstas no seu próprio texto. Difundiu-se o princípio de que uma sociedade que não garanta o direito de seus cidadãos de se expressarem, informarem e serem informados livremente, sem quaisquer restrições ou censura, não pode ser considerada como democrática (cf. José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2010). Um estado somente será considerado democrático, se houver o respeito irrestrito a todas as manifestações da liberdade de expressão, incluindo as críticas veementes à estrutura do próprio poder estatal e seus órgãos, seu funcionamento e ao pensamento majoritário. A liberdade de expressão é gênero da qual são espécies as liberdades de expressão artística, intelectual, científica, liberdades religiosas e liberdades de comunicação (cf. Ingo Wolfgang Sarlet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: RT, 2014, p. 446).

A liberdade de livre manifestação de pensamento não se traduz em princípio absoluto, eis que foram previstas restrições, a saber: honra, intimidade, vida privada, dignidade da pessoa humana, direito de resposta proporcional ao agravo cometido, indenização por dano material, moral ou à imagem, direito ao sigilo da fonte quando necessário ao exercício profissional, vedação ao anonimato. Ao vedar a censura prévia ou qualquer restrição, adota-se uma “presunção de legitimidade da liberdade de manifestação”, em que as restrições constitucionais somente podem ser impostas em momento posterior pelo Poder Judiciário, diante da comprovação de violação a tais direitos previstos no texto constitucional, dentro de um juízo de ponderação ou de proporcionalidade (cf. J.J. Gomes Canotilho, Gilmar Ferreira Mendes, Ingo Wolfgang Sarlet e Lenio Luiz Streck. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 275). O Código Penal tipifica a calúnia, a injúria e a difamação como crimes contra a honra. Vale dizer, a Constituição de 1988 imuniza a liberdade de manifestação do pensamento frente à eventual atividade legiferante do Poder Legislativo, impedindo que haja a ampliação além das restrições já existentes à liberdade de pensamento.

Em toda discussão sobre a liberdade de manifestação de expressão e seus limites, é imprescindível levar em consideração a paradigmática decisão do Supremo Tribunal Federal, que, em 2009 na ADPF 130, declarou a incompatibilidade da Lei de Imprensa frente à Constituição de 1988. Em primoroso voto, que é um verdadeiro compêndio em defesa da liberdade de manifestação, o Min. Ayres Brito sintetizou: (1) a plena liberdade de imprensa é um patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloquente atestado de evolução político-cultural de todo um povo, e, sendo visualizada como verdadeira irmã siamesa da democracia, passa a desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento, de informação e de expressão dos indivíduos em si mesmos considerados; (2) as liberdades de pensamento, criação, expressão e informação somente são passíveis de restrição pelos outros dispositivos constitucionais: vedação do anonimato, do direito de resposta, direito a indenização por dano material ou moral à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, direito ao resguardo do sigilo da fonte de informação, quando necessário ao exercício profissional; (3) primeiramente assegura-se a livre e plena manifestação do pensamento, da criação e da informação, e somente depois, em momento posterior e em decisão do Poder Judiciário, é que se passa a cobrar do titular um eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios, no regime de responsabilidades civis, penais e administrativas, com vistas a inibir abusos no desfrute da plenitude de liberdade de imprensa; (4) interdição ao poder legiferante do Congresso Nacional quanto às matérias nuclearmente de imprensa, retratadas no concreto exercício da liberdade, assim como de sua extensão ou tamanho do seu conteúdo, ressalvadas as restrições no “estado de sítio”, podendo apenas legislar sobre matérias lateral ou reflexamente de imprensa, tais como: direitos de resposta e de indenização, proteção do sigilo da fonte, responsabilidade penal por calúnia, injúria e difamação, diversões e espetáculos públicos,  estabelecimento dos “meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente”, participação do capital estrangeiro nas empresas de comunicação social, composição e funcionamento do Conselho de Comunicação Social.

Em defesa da liberdade de expressão e sua conjugação com os outros valores constitucionais, o STF orienta: (1) a crítica jornalista traduz direito impregnado de qualificação constitucional plenamente oponível aos que exercem qualquer atividade ou de interesse de coletividade em geral, pois o interesse social, que legitima o direito de criticar, sobrepõe-se a eventuais suscetibilidades que possam revelar as pessoas públicas ou as figuras notórias, exercentes ou não de cargo público. A crítica mais dura, impiedosa e veemente deixa de sofrer as limitações externas que ordinariamente resultam dos direitos de personalidade (AI 705.630); (2) impossibilidade do estabelecimento de controles estatais sobre a atuação do jornalista (RE 511.961); (3) o direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também àquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias, inclusive as declarações errôneas estão sob a guarda dessa garantia (ADI 4.451); (4) o exercício da liberdade de programação pelas emissoras de televisão impede que determinado espetáculo dependa de autorização prévia estatal, ainda que se trate de matéria sensível de proteção à criança e ao adolescente (ADI 2.404); (5) programas humorísticos, charges e modo caricatural compõem as atividades de “imprensa”, inclusive para considerar inadmissível a proibição pelo Poder Judiciário de exibição de sátira religiosa (Rcl 38.872); (6) o sigilo da fonte e de não sofrer qualquer sanção, direta ou indiretamente são oponíveis a qualquer pessoa, inclusive agentes, autoridades e órgãos do Estado (Rcl. 21.504); (7) exigir autorização prévia para publicação de biografias constitui censura prévia particular (ADI 4815); (8) a garantia da liberdade de expressão não constitui meio para que possa legitimar crimes contra a honra com evidente superação dos limites da crítica e da opinião jornalística (ARE 891647); (9) o debate em defesa da legalização de drogas não se confunde com a incitação à prática de delito nem se identifica como apologia de fato criminoso (ADPF 187); (10) a edição e publicação de obras escritas veiculando ideias antissemitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, equivalem à incitação com acentuado conteúdo racista; (11) o dever imposto ao Estado de não definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas inclui a própria atividade legislativa (ADI 4451); (12) não se pode anular ou restringir a liberdade de expressão por outra norma de hierarquia inferior (lei civil), ainda que sob o argumento de se estar a resguardar e proteger outro direito constitucionalmente assegurado. O recolhimento de obras é censura judicial a substituir a administrativa (ADI 4815).

Na mencionada ADPF 130, o STF manifestou-se também sobre a liberdade na internet e nos meios digitais de comunicação, emprestando-lhes o mesmo tratamento previsto no art. 220 que assegura a liberdade de manifestação. A liberdade de imprensa, qualificada por sua natureza essencialmente constitucional, assegura aos profissionais de comunicação social o direito de buscar, de receber e de transmitir informações e ideias por quaisquer meios, inclusive internet e meios digitais, ressalvada, no entanto, a possibilidade de intervenção judicial necessariamente a posteriori (Rcl 21504 e Rcl 22.328).

A toque de caixa sem uma ampla discussão com a sociedade civil, parlamentares da esquerda (senador pelo Cidadania, antigo PPS, Alessandro Vieira, e os deputados pelo PDT e PSB Tábata Amaral e Felipe Rigoni) intentam criar uma legislação que, a pretexto de proteção da liberdade, da responsabilidade e da transparência, visa regular a manifestação da expressão na internet. O que o projeto de lei 2630/20 periga implantar, em nome de uma causa justa, é a censura na internet. Vale o adágio de que “a diferença entre remédio e veneno está na dosagem”. O projeto, definindo o que é desinformação (“conteúdo, em parte ou no todo, inequivocamente falso ou enganoso, passível de verificação, colocado fora de contexto, manipulado ou forjado, com potencial de causar danos individuais ou coletivos”), tem os seguintes caracteres principais: (1) ressuscita a figura nefasta do censor, em que as redes sociais ou aplicativos de comunicação, valendo-se de auditores independentes, atuariam como um “tribunal da verdade”, decidindo se o conteúdo veiculado seria ou não uma desinformação; (2) evita contas inautênticas e redes ilegais de distribuição; (3) responsabiliza as plataformas pelo uso abuso dos seus usuários.

Comprometidas com os valores da liberdade de manifestação como um instrumento para assegurar a democracia e uma sociedade livre e plural, diversas entidades – Comitê Gestor da Internet no Brasil, Agência Lupa, Centro de Pesquisa sobre Direito e Tecnologia, Instituto de Tecnologia e Sociedade, Coalizão Direitos na Rede, Associação Brasileira de Provedores de Internet e Telecomunicações, Associação Brasileira de Internet, dentre outras – manifestaram críticas severas quanto ao conteúdo e à forma do projeto de lei. Pelo regime constitucional, podem ser apontadas ao projeto de lei as seguintes inconstitucionalidades e impropriedades: (1) cria-se um “tribunal privado da verdade”, dando-lhe poderes para decidir sobre a veracidade ou não do conteúdo e poder de retirada de conteúdo, o que é reservado apenas ao Poder Judiciário e em momento posterior; (2) criam-se censura e restrição prévias incompatíveis com a livre manifestação, na medida em que, ressuscitando a nefasta figura do censor, as plataformas poderiam inserir um selo de desinformação na informação veiculada e proibir a circulação de ideias; (3) impossibilidade de definição com clareza e objetividade o que é desinformação, sendo um conceito vago que permita ampla margem de ativismo; (4) está em descompasso com a Lei do Marco Civil da Internet, ao contrariar a neutralidade da rede e ao atribuir responsabilidade aos provedores por condutas de terceiros. O avanço no projeto consiste na previsão de mecanismos que asseguram a cláusula constitucional da vedação do anonimato, ao permitir a identificação da conta na rede social e de utilização de redes ilegais de distribuição.

A desinformação é um problema altamente complexo, cuja solução pressupõe a análise multidisciplinar abrangendo as áreas jurídica, econômica, social, educacional e tecnológica. Por isso que os EUA e a União Europeia não ousaram regulamentar a fake news. O mencionado projeto de lei, dada a sua dosagem, se traduz num veneno que coloca em risco a liberdade de expressão, caracterizando-se como manifestamente inconstitucional, com a ressalva das medidas voltadas a identificação de contas inautênticas e da distribuição ilegal de mensagens por aplicativos. Os abusos e as ilicitudes no exercício da liberdade de manifestação na internet corrigem-se segundo o direito, e não mediante a contrariedade a liberdades já conquistadas com duras lutas (cf. San Tiago Dantas. Programa de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977, p. 345). A legislação em vigor já dispõe de mecanismos para, no âmbito cível e penal, coibir os excessos e as ilicitudes, assegurando-se a liberdade de expressão como um dos instrumentos que assegura um regime democrático e uma sociedade livre e plural.

Mestre e Doutor pela PUC-SP. Professor da graduação e do Mestrado na UFRN. Advogado.

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