quinta-feira,28 março 2024
ArtigosEncontre os charlatões 2 – A saga continua

Encontre os charlatões 2 – A saga continua

Há pouco tempo escrevemos a respeito da inviabilidade da pretensa imputação de crimes de “Charlatanismo” e “Curandeirismo” ao Presidente da República, conforme alardeado por componentes da CPI da Covid 19. Nascia então o artigo com o título “Encontre os Charlatões”, cuja leitura antecedente recomendo àqueles interessados.
Havia até então a notícia de que a CPI detectara esses supostos crimes perpetrados pelo Presidente.
Em seguida vem a público a notícia de que a Consultoria Legislativa havia apontado a impossibilidade de imputação do crime de Charlatanismo ao Presidente, devido à atipicidade de sua conduta, conforme já havia sido demonstrado em nosso artigo anterior. Não obstante, segundo consta do noticiário, o Vice – Presidente da CPI, Senador Randolfe Rodrigues, teima em manter a imputação, mesmo sem qualquer lastro jurídico: “O vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), defende que Bolsonaro seja indiciado também por charlatanismo”.
É de se imaginar o sacrifício de paciência, tolerância e, muitas vezes, de conformismo diante da impossibilidade de sustentar tecnicamente seus conhecimentos, devido ao autoritarismo, aos caprichos e à arrogância ignorante, a que estão sujeitos aqueles que trabalham na Consultoria Jurídica Legislativa Federal. Não é de se estranhar a edição reiterada de leis prenhes de falhas primárias. Certamente, muitas vezes devem sentir-se como o advogado descrito por Dostoiévski na obra “O Adolescente”: “Sabe-se o que é um advogado: um advogado é uma consciência de aluguel”. Tanto é fato que essa mesma Consultoria, sobre a qual não se pode concluir que desconheça tão profundamente o Direito Penal, ainda abre a possibilidade de que se atribua ao Presidente o crime de “Curandeirismo” , o que, como já se demonstrou no texto antecedente a este, é ainda mais inviável. É que comumente é necessário fazer concessões para sobreviver num ambiente hostil, sob o tacão de tiranetes.
Acaso a notícia parasse por aí, não haveria justificativa para a continuação dessa série de terror jurídico, tudo já estaria dito no texto anterior.
Acontece que surgem novas imputações ao Presidente e a outras figuras envolvidas na “investigação” (sic) da CPI, primando, novamente, pela falta de sustento jurídico mínimo.
O apontamento da inanidade jurídica dessas imputações está se tornando cansativo, mas o fazemos em atenção, principalmente, aos estudantes de Direito que podem sair dessa pandemia sem contrair Covid, mas com sérios danos intelectuais e cognitivos, acaso se deixem guiar pela inovadora dogmática penal e processual penal de alguns parlamentares e até mesmo de tribunais superiores.
Vamos, porém, tentar atuar com o máximo de objetividade e sumariedade possíveis, já que a absurdidade é tão grande que não merece sérios aprofundamentos.
Com relação ao Presidente da República aponta-se a prática do crime de “Epidemia”, previsto no artigo 267, CP, contando com formas dolosa e culposa. Acontece que o tipo penal é daqueles classificados como “crimes de forma vinculada”, ou seja, em oposição aos chamados “crimes de forma livre”, que “admitem inúmeros meios de execução”, os de forma vinculada, “só podem ser executados através de meios especificados no tipo penal”. E o meio específico é o seguinte, “causar epidemia”, não por qualquer atitude, mas somente “mediante propagação de germes patogênicos”. Logo de cara se percebe que o autor do crime deve ser aquele que “causou” a epidemia. A causalidade da chamada pandemia, de acordo com as versões correntes, pode se resumir a duas hipóteses ventiladas: o fato aconteceu naturalmente ou o fato foi obra humana, mas nunca se pensou que fosse Bolsonaro o autor disso, há suspeitas de interesses militares, econômicos, farmacêuticos, geopolíticos etc. A versão de que Bolsonaro tivesse alguma vez espalhado patógenos pelo mundo para causar a pandemia, nunca passou pela cabeça de qualquer pessoa com um mínimo de sanidade mental. Frise-se que a pandemia sequer é algo que ocorre apenas no Brasil, mas um fenômeno global e que teve origem na China. Será que há algum indício de que logo antes do início da pandemia Bolsonaro tenha ido furtivamente até a China e lá propagado os germes patogênicos? Mas, não seria possível a conduta culposa ou omissiva? Também não porque o tipo penal se refere à causação da epidemia, não a uma epidemia instalada global e localmente de forma prévia em situação na qual se pretenda discutir se medidas tomadas ao seu combate foram ou não acertadas. Esse debate é legítimo, mas não criminaliza uma ou outra posição de quem quer que seja. Como aduz Greco, o “núcleo” usado no “texto legal” é o verbo “causar”, empregado no sentido de “produzir, originar, provocar a epidemia”. Note-se, por derradeiro, que não pode jamais existir uma imputação retroativa de responsabilidade penal, ou seja, a epidemia já está instalada, naturalmente ou devido à ação humana de alguma outra pessoa ou grupo e agora se pretende afirmar que novo imputado a causou em tempo posterior ao seu início, mas cuja responsabilidade se pretende retroagir ao começo. É incrível o absurdo dessa espécie de raciocínio, cuja exposição é até mesmo difícil.
Em seguida menciona-se o crime de “Infração de Medida Sanitária Preventiva” (artigo 268, CP) devido a apresentar-se em público sem máscara e desrespeitar normas de distanciamento social. Nesse caso específico não estamos diante de uma patente atipicidade. Entretanto, não é pacífico o entendimento quanto à efetiva configuração desse crime por tais condutas, valendo isso para qualquer cidadão, inclusive o Presidente, devendo-se lembrar sempre do “Favor Rei” ou “Favor Inocentiae”. Em texto produzido pela Escola Superior do Ministério Público da União, Panoeiro e Neves apresentam todo o quadro polêmico e de insegurança jurídica, inclusive violação da isonomia na aplicação da lei penal, ocasionado pela pulverização das normas restritivas entre União, Estados e Municípios. A conclusão é que o Direito Penal nessas circunstâncias não é o melhor instrumento para lidar com tais questões, valendo isso para qualquer brasileiro, tirante os casos patentes em que há restrição imposta por decisão médica direta, aí sim se podendo falar em dolo por parte do agente que sabe estar infectado e, mesmo assim, descumpre as determinações médicas. Afirmam em conclusão os autores:
Contudo, quanto à medida de isolamento imposta por determinação médica, em se tratando de medida de caráter compulsório, a violação da determinação é suficiente a caracterizar o delito. Em momentos extremos como o presente é preciso de mais saúde pública e educação do que de sanções penais. Permanecer em casa é um ato de solidariedade que traduz nossa compreensão enquanto ser social transcendo o individualismo hoje reinante. O estímulo a tais medidas há de ser feito por meio da sensibilização social e não por meio do sancionamento de condutas que, salvo melhor juízo, parecem carecer de legitimidade na incriminação como exposto.
Sabe-se que por todo o país houve prisões e responsabilizações de algumas pessoas, muitas vezes com truculência policial e de outras autoridades. Isso somente reforça a conclusão de que o tipo penal em testilha é apenas fonte para abusos e que sua aplicação em geral não é aconselhável, especialmente tendo em vista a insegurança jurídica reinante sobre o tema. Ademais, muitos políticos (deputados, senadores, governadores etc.) foram flagrados diversas vezes sem as máscaras, em aglomerações, em manifestações públicas, em nababescos hotéis no Brasil e no exterior, ou estando sem máscara antes do início de uma filmagem de entrevista e a colocando somente para o ato. Coisas assim aconteceram e acontecem diuturnamente. Se formos criminalizar somente a classe política com igualdade de tratamento, isso já seria uma avalanche de inquéritos e processos criminais. Imagine-se a responsabilização penal de todas as pessoas do Brasil!? Realmente a CPI não nos deixa esquecer o conto machadiano intitulado “O Alienista”, em que o personagem, Simão Bacamarte, interna toda uma população como louca e depois percebe que deveria liberá-los e internar somente a si mesmo.
Continua a lista de supostos crimes com a atribuição de “Advocacia Administrativa” (artigo 321, CP) e “Corrupção Passiva” (artigo 317, CP), agora não sendo mencionado o Presidente, mas o governo e alguns agentes públicos. Uma primeira observação a ser feita é a respeito do erro crasso de identificação de agentes. Apontar um entre abstrato como “o governo”, “o Estado”, “a indústria” ou seja lá o que for, como autor de qualquer conduta, criminosa ou não, constitui uma confusão demoníaca de categorias. “O governo” não é agente de coisa alguma. Atribuir crimes ou mesmo qualquer conduta ao “governo” ou outro ente abstrato não passa de uma figura cretina de linguagem. Dito isso, quando são apontados nomes de alguns agentes públicos, seria crível ou possível pensar que houve infração a tais tipos penais. Entretanto, foi notório e público que todas as imputações feitas não restaram em nada comprovadas. Pessoas disseram ter documentos e não apresentaram, disseram ter conversas em celular e depois “perderam” o celular, disseram ter havido superfaturamento e depois desmentiram, disseram ter conversado com o Presidente e gravado a conversa e depois desmentiram a própria estória, bem como foi comprovado que se tratava de um erro material em um documento de mera proposta inicial, o qual foi corrigido. Por fim, nem mesmo a compra das vacinas mencionadas em tal episódio se concretizou. Sabe-se que os crimes em destaque são formais e independeriam da efetiva obtenção de vantagem ilícita. Porém, para o indiciamento e deflagração de uma investigação criminal contra alguém é indispensável a existência de um mínimo indiciário, não há necessidade de cognição exauriente, de prova cabal, obviamente, pois se trata de dar início a uma investigação. Não obstante, é preciso haver um mínimo indiciário para que exista justa causa. E o que se viu nessa CPI foi que narrativas escandalosas foram uma a uma desmentidas, muitas vezes pelos seus próprios propagadores. Não há qualquer indício que justifique imputações graves como essas. A prova testemunhal colhida é incoerente e contraditória, a prova documental desmente as versões acusatórias, não há prova de corrupção, de recebimento de valores indevidos, nada. Não por outro motivo, nas Polícias Judiciárias, quando notícias de crimes não contam com o devido respaldo mínimo, são objeto não de instauração de Inquérito Policial, mas de “Verificação de Procedência de Informações” (VPI), nos termos do artigo 5º., § 3º., “in fine”, CPP. No caso concreto em discussão, a VPI foi a própria CPI, que carreou elementos a desmentirem totalmente narrativas fabulosas, tornando absolutamente ilegítimo qualquer ato que se queira chamar de “indiciamento” (sic) ou a instauração de investigações daquilo que já foi comprovado como falso.
Retornando à figura do Presidente, se fala em “Crime de Responsabilidade” (Lei 1.079/50) e “Prevaricação” (artigo 317, CP), porque teria sido informado de negociações nefastas sobre vacinas por um funcionário federal, irmão de um deputado, e nada teria feito. Em primeiro lugar, como já exposto acima, nada ficou comprovado quanto à real existência dessas tais negociações ou tentativas de fraude. Em segundo lugar o próprio indivíduo que alegou ter alertado o Presidente, depois se retratou. Disse que tinha inclusive uma gravação dessa suposta conversa, mas depois afirmou que já não existia. Ou seja, novamente estamos diante de um quadro cuja narrativa hipotética poderia realmente configurar crimes, mas que após a devia apuração se desfez como gelo ao sol. Dessa forma, inexiste qualquer justa causa para atribuição de tais figuras criminais ao Presidente da República. O que se vê é uma saga no intento de encontrar algum tipo penal na legislação brasileira para imputar especialmente ao Presidente ou a alguém em seu entorno, não importando a atipicidade ou a falta de qualquer sustento fático, probatório ou mesmo minimamente indiciário.
Na notícia que veicula essa lista de infrações penais garimpada pelos componentes da CPI há a informação de que as “empresas” de medicamentos seriam também responsabilizadas por “Publicidade Enganosa” (artigo 67 c/c 37, § 1º., da Lei 8.078/90), “Corrupção Ativa” (artigo 333, CP) e “Corrupção Passiva” (artigo 317, CP).
Espera-se que os jornalistas tenham se enganado ou exposto de forma lacônica o que consta do documento a que tiveram acesso relativo a parecer da Consultoria Legislativa. Isso porque é impossível no Brasil atribuir crimes a pessoas jurídicas, salvo se forem crimes ambientais. Portanto, constar de uma orientação jurídica que “empresas” serão responsabilizadas por crimes que não são ambientais seria um erro até mesmo mais terrível do que as atribuições de curandeirismo ou charlatanismo ao Presidente. Isso porque estar-se-ia fazendo referência a uma espécie de responsabilidade jurídico – penal inexistente no nosso ordenamento.
A Constituição Federal somente prevê responsabilidade penal de pessoa jurídica em duas situações: crimes contra a ordem econômica e financeira e a economia popular, de acordo com o artigo 173, § 5º., CF (hipótese que nunca foi posta em prática pelo legislador ordinário) e crimes ambientais, nos termos do artigo 225, § 3º., CF (já com previsão prática pelo legislador ordinário no artigo 3º., da Lei 9.605/97). Não corresponde à realidade a afirmação de que a previsão de responsabilidade penal da pessoa jurídica é irrestrita na ordem constitucional brasileira. Embora os sistemas de “common law” (anglo – saxão) e de “civil law” (romano – germânico) venham se aproximando cada vez mais no que diz respeito ao reconhecimento da necessidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas , fato é que tal modelo é tradicional no sistema de “common law” e uma novidade e, portanto, uma exceção, no sistema romano – germânico que informa o ordenamento jurídico brasileiro. Sem previsão constitucional expressa, ordenamentos de origem romano – germânica como o brasileiro não admitem, como regra, a responsabilidade penal de pessoas jurídicas, sendo regidos, de ordinário, pela máxima latina “societas delinquere non potest” (a sociedade não pode delinquir). Enfim, “a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, em nosso ordenamento, constitui-se em novidade e excepcionalidade” que somente é constitucionalmente prevista de forma casuística em 1988, bem como regulada na lei penal ordinária em 1998, apenas no que diz respeito a crimes ambientais. Nem mesmo com relação à criminalidade econômica (outra excepcional permissão constitucional) houve até o momento previsão na legislação criminal. A abordagem é tão tímida e limitativa no ordenamento brasileiro que mesmo no que tange aos crimes ambientais existe discussão na doutrina se a responsabilidade penal de pessoas jurídicas ficaria limitada aos delitos previstos na Lei 9.605/98 ou poderia se espraiar para crimes de natureza ambiental com previsão em outros diplomas legais. E não há que confundir essa discussão acerca da restrição da responsabilidade penal de pessoas jurídicas à Lei Ambiental ou a sua expansão irrestrita a outros diplomas sobre o mesmo tema, com uma suposta previsão amplamente irrestrita de possibilidade de responsabilização criminal na legislação brasileira ao bel prazer do legislador ordinário. A Constituição, na verdade, é bastante limitativa no que diz respeito a isso. Eventual irrestrição dependeria de emenda constitucional, acaso se considere isso como algo adequado a se fazer em termos de Política Criminal. Nossas raízes romano – germânicas e a fórmula casuística e pontual com que o constituinte tratou do tema são incompatíveis com a hipótese de responsabilidade penal irrestrita das pessoas jurídicas. Para isso o modelo adotado pela Constituição teria de ter sido muito explícito no estabelecimento de norma permissiva genérica, o que afastaria a previsão específica para os casos de crimes ambientais e econômicos. Haveria uma guinada no modelo originário e não seria necessária a menção casuística, de modo que a sua própria previsão conforme consta dos artigos 173, § 5º. e 225, § 3º., CF, indica que se tratam de casos excepcionais, sendo a regra a vedação da responsabilização penal da pessoa jurídica.
Assim sendo, as “empresas”, em havendo comprovação de irregularidades, podem até ser responsabilizadas, mas não pelos crimes listados e sim nas searas independentes civil e administrativa.
Contudo, como dito acima, há que haver provas ou elementos indiciários mínimos para essa responsabilização futura, após o devido processo legal. Além disso, também podem perfeitamente serem responsabilizados os dirigentes pessoas físicas das empresas, nesse caso, inclusive no campo criminal. O problema está no fato de que também para isso há necessidade de comprovação das infrações penais.
Uma primeira inviabilidade técnica diz respeito à suposta incriminação (a partir de agora falamos tão somente das pessoas físicas dirigentes) por “Corrupção Passiva”. Essa alegação é assustadora, tendo em vista que o crime previsto no artigo 317, CP é funcional, ou seja, crime próprio, que só pode ser perpetrado por funcionário público no exercício ou em razão das funções. Sendo as empresas e, consequentemente, seus funcionários, da iniciativa exclusivamente privada, impossível a incidência desse tipo penal. Não se pode, como se diz popularmente, jogar num mesmo balaio, “Corrupção Passiva” e “Corrupção Ativa”. Elas geralmente se irmanam na atividade criminosa, mas têm agentes diversos e não coincidentes. Na lição de Bitencourt sobre a “Corrupção Passiva”:
“Sujeito ativo somente pode ser o funcionário público, ao contrário da corrupção ativa, que pode ser praticada por qualquer pessoa, independentemente de condição ou qualidade especial” (grifo no original). É que enquanto a “Corrupção Passiva” é crime próprio, a “Corrupção Ativa” é crime comum.
Acaso efetivamente essa informação veiculada midiaticamente conste realmente no relatório de Consultoria, fica muito patente que se está a fazer um catado aleatório de crimes com mira tão somente no efeito simbólico – midiático de sua veiculação para fins políticos escusos ou melhor dizendo, para fins de politicagem rasteira.
A “Corrupção Ativa”, no entanto, realmente seria, em tese, aplicável aos componentes humanos das empresas. Mas, isso novamente entra em choque com o fato de que toda a narrativa acerca de negociatas não foi, em momento algum, comprovada, nem mesmo coletados indícios mínimos a justificarem a deflagração de uma verdadeira investigação criminal e muito menos de um Processo Penal.
Finalmente a prática de “Publicidade Enganosa”, nos termos do artigo 67 c/c 37,§1º., do Código de Defesa do Consumidor, também poderia ser apontada como hipótese na dependência de sua configuração no caso concreto, o que não ocorre.
A imputação é de que a empresa teria financiado a divulgação da defesa de tratamentos apontados como adequados pela “Associação Médicos pela Vida”. Para a configuração da “Publicidade Enganosa”, por óbvio, a propaganda deve veicular informação falsa e que se saiba, com absoluta segurança, ser falsa. Não há modalidade culposa e fala-se em dolo eventual de forma excepcional, mas para este segundo seria necessário haver dúvida acerca do conteúdo veraz veiculado. Ora, o posicionamento profissional e científico de pessoas habilitadas (médicos) a respeito de tratamentos e medicamentos não pode jamais ser enquadrado nessas condições. Eventual crime existiria se a referida associação não existisse, fosse inventada pela empresa ou, mesmo existindo de fato, não defendesse realmente os tratamentos e medicamentos ali mencionados. Mas, nada há de falso nessa publicidade. É sabido existir ampla polêmica científica em torno dos melhores tratamentos e até mesmo dos melhores procedimentos diante da pandemia, isso desde o início desse lamentável episódio da história da humanidade, sendo tal fato escancarado nas próprias audiências da CPI. Dessa forma, não há subsunção da conduta dos responsáveis pela empresa ao tipo penal em discussão, seja sob seu prisma objetivo ou subjetivo.
Em encerramento resta mencionar que o Relator, Senador Renan Calheiros, segundo a notícia veiculada, faz ainda uma afirmação que demonstra realmente a falta absoluta de conhecimento ou a má – fé em que se move. Alega que ainda haveria imputação, em seu entendimento, de crimes de “Medicina Ilegal” (sic) e “Homicídio”. Quanto à prática de “Homicídio”, não é possível sequer comentar, pois nunca houve notícia desse crime no âmbito da CPI, chegando a tratar-se, no melhor dos casos, de uma “delirium juris” ou de um fantasma que assombra o Relator. Por outro lado, ainda é preciso descobrir a que se refere o Senador quando menciona o tal crime de “Medicina Ilegal” (sic). É de nosso conhecimento a existência da expressão “Medicina Legal”, que se refere a um ramo do conhecimento da Medicina e do Direito em relação transdisciplinar. Também sabemos existir um crime de “nomen juris” “Exercício Ilegal da Medicina, Arte dentária ou Farmacêutica”, previsto no artigo 282, CP. Nunca se ouviu falar em crime de “Medicina Ilegal” (sic). Mas, concedamos ao Senador o benefício da dúvida de que não esteja se referindo a outra “delirium juris”, mas tenha cometido um erro vergonhoso, embora não delirante, de terminologia, ao pretender referir-se ao artigo 282, CP. Ainda assim, não há qualquer notícia no bojo da CPI a respeito de pessoas que, não tendo autorização legal ou a tendo e excedendo seus limites, tenham exercido a medicina, a arte dentária ou farmacêutica. Não compareceu à CPI, que é pública, um único falso médico ou se expôs a atuação de algum médico que tenha excedido a prática legal da sua arte. O mesmo se diga com relação a farmacêuticos e, ainda pior, dentistas!
Realmente, é preciso muita boa vontade para sequer compreender a que estão se referindo nossos parlamentares em suas desastrosas manifestações. Percebe-se também que nem mesmo a existência de uma Consultoria Jurídica consegue refrear os ânimos de esquadrinhar o Código Penal e a Legislação Especial à cata de alguma figura criminal para atribuir, ainda que sem o menor fundamento fático, probatório e de direito, especialmente ao Presidente da República ou, pelo menos, a alguém de seu círculo político.
Esperemos agora que não haja necessidade de prolongar essa série de artigos com um “Encontre os Charlatões 3, 4” “ad infinitum”. Oxalá nos poupem desse contínuo desserviço prestado à ciência jurídico – penal e também, em última instância, ao Estado de Direito.

REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de.O alienista e O espelho. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal. Volume 1. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

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CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica – Breve Estudo Crítico. Curitiba: Juruá, 2003.

CONTELLI, Everson Aparecido. Crimes Previstos no Código de Defesa do Consumidor Lei 8.078/1990. In: JORGE, Higor Vinicius Nogueira, LEITÃO JÚNIOR, Joaquim, GARCEZ, William (orgs.). Legislação Criminal Especial Comentada. Salvador: Juspodivm, 2021.

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Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós Graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

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