quinta-feira,28 março 2024
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Ejaculação no rosto de inopino: Tipificação penal e o perigo de uma “ejaculação jurídica precoce” da doutrina, dos operadores do direito e do legislativo

O fato noticiado na imprensa de que um indivíduo teria se masturbado dentro de um ônibus e se aproximado de uma mulher, que estava sentada distraidamente olhando seu celular, e ejaculado, de inopino, em seu rosto, vem causando polêmica quanto à tipificação penal da conduta.

Fala-se em Estupro (artigo 213, CP), Estupro de Vulnerável (artigo 217 –A, CP), Ato Obsceno (artigo 233, CP), Contravenção Penal de Importunação Ofensiva ao Pudor (artigo 61, LCP) e em Violação Sexual Mediante Fraude (artigo 215, CP).

Entende-se que toda essa polêmica não se justifica diante da clareza e evidência da situação a configurar infração ao artigo 215, CP (Violação Sexual Mediante Fraude), de acordo com a parte final do dispositivo.

O crime de estupro é inaplicável porque o agente praticou sim ato nefando, mas não o fez pelos meios exigidos pelo artigo 213, CP (violência ou grave ameaça). Não há dúvida de que o ato é “constrangedor”, mas o constrangimento e o ato libidinoso são os “fins” visados pelo agente, os quais devem, para a configuração do tipo em análise, ser perpetrados pelos “meios” da violência ou da grave ameaça, que não se verificaram na espécie. Também não vinga a tese de equiparar a ejaculação a um ato de violência pelo mesmo motivo. A violência no estupro é “meio” e não o próprio ato sexual visado. É também inegável que a mulher vitimizada ficou constrangida, psicologicamente abalada, como qualquer pessoa normal ficaria, mas esses são resultados da conduta abominável do infrator e não os meios violentos ou ameaçadores para sua execução, exigidos pelo tipo penal em estudo.

Afastada a possibilidade de configuração de violência, aventa-se a hipótese de crime com pena ainda maior, que seria o Estupro de Vulnerável (artigo 217 – A, CP), pois que ali não é necessária nem violência nem grave ameaça. Mas, o problema é que a vítima não é alienada mental, menor de 14 anos e nem mesmo pessoa que por qualquer outra causa não podia ofertar resistência; em suma, não se tratava de um vulnerável enumerado na legislação. Sua classificação nessa categoria devido a estar distraída somente seria possível por equiparação ou analogia, as quais seriam feitas “in mallam partem”, o que é inadmissível na seara penal. A verdade é que a vítima não era uma pessoa absolutamente vulnerável, mas apenas circunstancialmente ou relativamente. Ela não era uma pessoa em estado comatoso, paralisada, embriagada completamente ou narcotizada de forma total, sem ação ou reação. Havia nela o potencial de reação. O que houve foi um ataque de surpresa. É claro que é tentador fazer essa analogia, mas a legalidade é impeditiva.

Também não se configura o simples Ato Obsceno (artigo 233, CP), eis que houve invasão da esfera corporal da vítima e não a mera prática de exibicionismo, conduta despudorada. O fato de a vítima haver sido atingida pelo autor afasta o crime em destaque, cuja pena também seria muito leve para a gravidade da situação.

Hipótese diferenciada seria a de crime contra a honra, consistente em “Injúria Real” (artigo 140, § 2o., CP). Não é possível aventar a injúria real, mas apenas outros crimes e a contravenção acima mencionada.  A questão é a seguinte:  os crimes contra a dignidade sexual, em geral (estupro, estupro de vulnerável, violação sexual mediante fraude), segundo doutrina pacífica,  não exigem fim de satisfação da lascívia (aliás, os tipos penais não descrevem esse dolo específico) (vide por todos GRECO, 2016, p. 737). É possível praticar um ato sexual com qualquer fim, inclusive de simples humilhação, e continua sendo crime contra a dignidade sexual. Por exemplo, digamos que um indivíduo que não é homossexual, nem gerontófilo, não tenha qualquer atração ou satisfação sexual em relação a um senhor de idade, mas, mesmo assim, o submeta à força, com o intuito de humilhá-lo, a atos sexuais, libidinosos de qualquer espécie. Não há fim de satisfação de lascívia, mas apenas intuito de humilhação, típico da injúria real. No entanto, no caso da prática de atos libidinosos, o crime será normalmente de estupro, eis que o tipo penal não exige esse dolo específico de satisfação da lascívia. O mesmo ocorre com o estupro de vulnerável e a violação sexual mediante fraude. Só excepcionalmente e expressamente, em alguns tipos penais, a satisfação da lascívia é elemento do tipo subjetivo, como, por exemplo, nos artigos 218 e 218 – A, CP. No caso concreto, é muito difícil entender que não houve fim nitidamente libidinoso , até pelos antecedentes do infrator, mas ainda que não houvesse, isso em nada afetaria a tipificação penal quanto a uma eventual guinada de crime contra a dignidade sexual para crime contra a honra. A violência ou vias de fato no crime contra a honra (injúria real) não pode ser ato nitidamente libidinoso, ainda que com o fim de humilhação. O que se poderia, talvez, cogitar, seria de um concurso formal, mas entende-se que o certo seria a absorção do crime contra a honra.

Mais inviável ainda, especialmente pela insuficiência protetiva, seria a aplicação da simples Contravenção Penal de Importunação Ofensiva ao Pudor (artigo 61, LCP), pois que também não admite a invasão do espaço corporal da vítima, toques, manipulações etc., mas tão somente gracejos, “cantadas”, abordagens verbais e sinais constrangedores.

Observe-se que no caso de outros atos libidinosos diversos da conjunção carnal a jurisprudência, antes do advento da Lei 12.015/09, vinha equiparando à violência a ação rápida que pega a vítima de surpresa, cerceando-lhe a possibilidade de defesa ou resistência. Por exemplo, um indivíduo que, repentinamente, apalpa os seios de uma mulher, sem que ela tenha tempo ou chance de reagir ou o caso enfocado neste trabalho. Estes casos devem também ser analisados tendo em conta a contravenção penal de “Importunação Ofensiva ao Pudor” (artigo 61, LCP), quando não houver invasão ao espaço corporal da vítima ou crime previsto no artigo 215, CP (“Violação Sexual Mediante Fraude”), quando trata de “praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima” (grifo nosso). Aliás, este último dispositivo parece o mais correto para aplicação a tais casos. Frise-se que o artigo 215, CP, com a nova redação dada pela Lei 12.015/09, veio também a unificar, a exemplo do que ocorreu com o estupro e o atentado violento ao pudor, os crimes de “posse sexual mediante fraude” e “atentado ao pudor mediante fraude”, inclusive revogando o artigo 216, CP, que se referia à segunda conduta criminosa, agora unificada sob o título de “Violação Sexual Mediante Fraude”, abrangendo, destarte, tanto a conjunção carnal, como outros atos libidinosos. Antes os tipos penais somente tratavam da “fraude”, não abrindo a possibilidade de “interpretação analógica” (que não se confunde com analogia), conforme o faz hoje o artigo 215, CP com sua parte final para abranger atos que não são fraudulentos, mas que, similarmente, reduzem, ou mesmo impedem, a reação ou a manifestação de vontade livre e informada da vítima.

Para os fatos ocorridos antes da entrada em vigor da Lei 12.015/09, envolvendo ações rápidas que impossibilitam a reação da vítima, conforme acima exposto, pensa-se que a melhor solução seria mesmo a contravenção de “Importunação Ofensiva ao Pudor” (artigo 61, LCP), havendo certo exagero na utilização do crime de “Atentado Violento ao Pudor” (artigo 214, CP) então vigente. Entretanto, para não haver excesso, havia insuficiência protetiva. Com o advento da Lei 12.015/09, a melhor solução para os casos vindouros é a da aplicação do artigo 215, CP, conforme acima consignado, sendo exagerada a tipificação do crime de estupro (artigo 213, CP) ou e Estupro de Vulnerável (artigo 217 – A, CP). Criou-se um meio termo justo e criminologicamente adequado, pois que a equiparação ao estupro seria um incentivo político criminal a que o agente fosse mais longe em seus atos libidinosos e a aplicação da simples contravenção uma descarada impunidade.
Neste caso (“Violação sexual mediante fraude”) a vítima não pode ser vulnerável e a conduta é obtida somente mediante fraude e jamais mediante violência ou grave ameaça. Trata-se de verdadeiro “estelionato sexual” no dizer de Rogério Sanches Cunha (GOMES, CUNHA, MAZZUOLI, 2009, p. 42). Imagine-se o médico que realiza desnecessariamente um exame de toque em uma mulher, não com objetivos clínicos, mas com fins libidinosos. Ou um líder religioso que afirma estar em transe e mantém atos libidinosos com suas fiéis sob o pretexto místico.

O que pode gerar maior dúvida é a conduta descrita no final do dispositivo em comento que fala de “outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação da vontade da vítima”. Ocorre que tal meio não poderá ser a condição de vulnerabilidade própria da vítima, senão configurado estará o Estupro de Vulnerável (artigo 217 – A, CP). Esse outro meio tem de ser empregado pelo agente, como, por exemplo, uma ação rápida em que a vítima não tenha como defender-se, como ocorre no caso de uma apalpação rápida dos seios de uma mulher, sem chance de reação ou exatamente na conduta de quem se masturba às ocultas e ejacula rapidamente no rosto da vítima distraída. Em todos esses casos, sem que haja fraude especificamente, há uma conduta que reduz ou suprime a capacidade de reação ou de manifestação de vontade livre e consciente da vítima quanto ao ato libidinoso (CABETTE, 2010, p. 21 e 53 – 54). Aí se aplica a “interpretação analógica”, pois que a situação é semelhante, embora não idêntica aos casos de fraude. A vítima é uma pessoa normal, não doente, não paralisada, não deficiente, mas somente distraída, pega de surpresa. Mas, de qualquer forma, não conseguiu reagir ou manifestar livremente sua vontade porque surpreendida tal qual uma pessoa ludibriada pela fraude. Observe-se que a última parte do artigo 215, CP não comporta situações que sejam sinônimas de “fraude” ou que, de alguma forma constituam “meios fraudulentos” (isso seria consentir em que a lei tenha “palavras inúteis”, em frontal infração a regra geral da hermenêutica jurídica – MAXIMILIANO, 1999, p. 250). Nesse caso não se trataria de “interpretação analógica”, mas de aplicação do exemplo casuístico diretamente. Também importa lembrar a interpretação sistemática como altamente esclarecedora (MAXIMILIANO, 1999, p. 128). Note-se que no crime de “Estelionato” (artigo 171, CP) o legislador fala em “artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento”. Ali sempre se trata de “fraude”. O mesmo não ocorre no artigo 215, CP. Nele o legislador menciona da “fraude” (ou seja, “artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento”) e na segunda parte a impossibilidade de resistência ou reação ou de livre manifestação de vontade que não se dê, obviamente, por meios fraudulentos, mas por outros meios capazes de obstar a capacidade de reação e/ou decisão da vítima, os quais não sejam “fraude” e nem cheguem a constituir vulnerabilidade que levaria ao artigo 217 – A, CP.
É válida a lição de Nucci sobre a distinção entre o estupro, seja o comum, seja o de vulnerável:

“Para compatibilizar os dois tipos penais, considerando-se, inclusive, a diversidade das penas, parece-nos seja a solução analisar o grau de resistência da vítima ou, sob outro ângulo, o grau de perturbação da sua livre manifestação” (2009, p. 29).

A pena do artigo 215, CP é de reclusão, de 2 a 6 anos, evitando o laxismo da contravenção penal ou do ato obsceno e a exacerbação punitiva dos crimes de estupro ou estupro de vulnerável.
A repercussão midiática do caso já está causando reações do legislativo no sentido de criar um novo tipo penal para essas situações, o que é de todo desaconselhável. Seria mais uma demonstração do Direito Penal Simbólico e demagógico e certamente resultaria na criação de mais um monstrengo jurídico. O artigo 215, CP é um instrumento bastante eficaz para a repressão dessa espécie de conduta com a devida proporcionalidade e razoabilidade, ao menos no caso de imputáveis, pois que boa parte desses indivíduos certamente sofre de algum distúrbio psíquico a indicar a aplicação de medida de segurança. Cada caso concreto deve ser analisado cuidadosamente e aplicadas as medidas cabíveis no campo penal e profilático. O que não resolve é a reação emocional, simbólica, violadora da legalidade ou mesmo que desconsidera os mecanismos legais já existentes para optar por uma inovação absolutamente dispensável ou pela polêmica aplicação de dispositivos para cuja configuração faltam elementos básicos.


REFERÊNCIAS
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Crimes Contra a Dignidade Sexual – Temas Relevantes. Curitiba: Juruá, 2010.
GOMES, Luiz Flávio, CUNHA, Rogério Sanches, MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Comentários à Reforma Criminal de 2009. São Paulo: RT, 2009.
GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 10a. ed. Niterói: Impetus, 2016.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 18ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual. São Paulo: RT, 2009.

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós Graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

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