sexta-feira,29 março 2024
ArtigosDireito, ética e sentido da vida: a miséria do materialismo naturalista

Direito, ética e sentido da vida: a miséria do materialismo naturalista

Sempre me pareceu de extrema pertinência o ensinamento de Goffredo Telles Júnior acerca do fato de que nossas experiências de vida são muito limitadas e que o único recurso que nos resta para a ampliação de nossas vivências é a sua busca na literatura dos grandes autores que são capazes de expressar sentimentos, situações e vivências de forma profunda, tocante e o mais próximas possível da realidade. Na medida em que o Direito (e também a Ética) busca disciplinar a “convivência humana” e promover o “entendimento universal”, essa empreitada que consiste em ampliar nosso horizonte de conhecimento humano, é imprescindível.

O mesmo Telles Júnior chama a atenção para uma questão transcendente a todas as demais na área da Filosofia do Direito. Aquela referente ao referencial antropológico do homem e da sua liberdade:

Se a liberdade do homem existe, nada, nas sociedades humanas, sobrelevaria em importância o Direito, que seria uma disciplina da liberdade. Mas se esta não existe, o Direito passaria a ser uma fantasia vã. Num mundo sem liberdade, o Direito não vale que se lhe dedique um minuto de esforço e de pensamento. Bastava lembrar que o fim do Direito é conduzir os homens em suas relações sociais, e que para nada serviria se os homens já fossem necessariamente conduzidos pelas leis da natureza (grifos nos original).

Sem o reconhecimento da liberdade do homem, de sua autonomia condicionada (mas não determinada), de sua transcendência ao material, matemático, biológico, físico, recaímos no fracasso iluminista em fundamentar a dignidade humana. Enveredamos por caminhos como os citados pelo mesmo Telles Júnior ao apontar declarações como as de Moleschott (“o pensamento é um movimento da matéria”) ou de Vogt (“o cérebro segrega o pensamento como os rins segregam a urina”).

É claro que existe quem afirme ser plenamente possível encontrar sentido na vida sem recurso a qualquer transcendência. A questão é que esse sentido encontrável na mera imanência não irá diferir do sentido que encontra na existência um porco, um cão ou um gato. Acaso recorramos aos ensinamentos aristotélicos é possível chegar à conclusão de que, abrindo mão da transcendência, nosso sentido na vida não poderia jamais ultrapassar o âmbito “vegetativo” (de mera nutrição e reprodução) e “sensitivo” (de mera percepção, apetite e movimento). Atingiríamos tão somente a escala de evolução dos vegetais e dos animais, sem poder jamais chegar àquilo que seria a substância da humanidade (“alma intelectiva”). E não é próprio do homem satisfazer-se e muito menos “perfazer-se” (sentir-se “perfeito” na acepção de “completude”) nessas limitações. Até mesmo quem afirma poder encontrar sentido sem transcendência, faz essa afirmação sem a viver em concreto, pois que para fazê-la lança mão do exercício intelectual, embora desvirtuado e afastado da realidade e até da sua própria realidade.

O cientificismo materialista naturalista elege a linguagem da ciência como a única válida. Esse reducionismo intelectual nos comprime num mundo em que se pode “descrever” alguns fenômenos, mas é impossível “explicar” qualquer coisa. Trata-se de um universo do “como” desprovido de “porquês”.

Hawking alerta para o fato de que “a abordagem habitual da ciência” consistente na construção de “modelos matemáticos, não consegue responder a perguntas sobre por que existe um Universo a ser descrito pelos modelos”.

Não sem razão acreditava Weinberg que a ciência não consegue explicar “a existência de verdades morais”, isso porque há “uma defasagem lógica entre o é científico e o deve ser ético” (grifos no original). Obviamente a mesma defasagem se encontra entre a ciência normativa do Direito ligada ao “dever ser” e as ciências da natureza orientadas pelo “ser”.
Na realidade qualquer manifestação humana enclausurada numa clave materialista seria passível de mera descrição fenomenológica (v.g. observação das áreas do cérebro em atividade; percepção de sons e gestos; representação de relações entre signos da escrita e seus significados etc.), mas jamais poderia ser dotada de alguma relevância significativa. Tudo o que falamos não passaria de emissões fonéticas, de movimento do ar passando por nossas bocas (“flactus vocis”), tudo que escrevemos seriam garatujas sem importância, desenhos de criança ignara, rabiscos ou manchas de chimpanzés com as patas sujas de tinta. E, ademais, ao contrário do que dizia Buber, seria o homem apenas uma coisa entre outras coisas.

Esse é um perigo terrível que já era apontado por Hugo de São Vitor ao afirmar que quando o homem não tem a noção de que foi feito acima das outras coisas, acaba se julgando semelhante a qualquer outra coisa e se afastando da sapiência que lhe permitiria conhecer-se a si mesmo. Enfim, abrem-se as portas das possibilidades temíveis da zoologização e da reificação humanas.

Quando um autor como Frankl defende em sua logoterapia a necessidade de busca de um sentido para a vida como constitutiva do homem, obviamente não se limita ao mero labor da subsistência ou à simples capacidade de percepção sensível. Pode-se afirmar, em linhas gerais, que a teoria de Frankl se embasa na noção de que o ser humano é um ser em busca de sentido, um ser que se transcende em direção a algo fora de si, a um fim, um objetivo. Ora, um ser assim constituído não pode ser simplesmente determinado tal qual um animal, atuar tão somente movido por instintos ou reações, muito menos se reduzir a uma vida vegetativa. Um ser em busca de sentido é sempre um ser livre. Reconhecer essa condição humana é a única via para respeitar a humanidade do homem e tratá-lo de forma efetivamente humana. O ser do homem é necessariamente voltado para perspectivas futuras, sua racionalidade é marcada pela abstração, chegando a uma necessária existência “sub specie aeternitatis” ou sob o “ponto de vista da eternidade”. Não se trata de apenas “suportar a falta de sentido da vida”, como afirmam alguns existencialistas, mas de “suportar a incapacidade de compreender, em termos racionais, o fato de que a vida tem um sentido incondicional. O logos é mais profundo que a lógica” (grifo no original).

Mais claramente:
A busca do indivíduo por um sentido é a motivação primária em sua vida, e não uma “racionalização secundária” de impulsos instintivos. Esse sentido é exclusivo e específico, uma vez que precisa e pode ser cumprido somente por aquela determinada pessoa. Somente então esse sentido assume uma importância que satisfará a sua própria vontade de sentido. Alguns autores sustentam que sentidos e valores são “nada mais que mecanismos de defesa, formações reativas e sublimações”. Mas, pelo que toca a mim, eu não estaria disposto a viver em função dos meus “mecanismos de defesa”. Nem tampouco estaria pronto a morrer simplesmente por amor às minhas “formações reativas”. O que acontece, porém, é que o ser humano é capaz de viver e até de morrer por seus ideais e valores”!

Fora dessas concepções, encontrar sentido na vida sob o influxo de um materialismo reducionista é elevar uma tautologia em fundamento existencial, é afirmar que a vida tem um sentido porque é vida e então deve ser vivida, nada mais do que derivar o “dever ser” do “ser”, o que não é uma transposição defensável e tem sido reconhecida como a chamada “Falácia Naturalista”, apontada originalmente por G. E. Moore, em 1903, em seu “Principia Ethica”.

Pontes de Miranda exaltava o aprendizado do homem em “diminuir em si o animal”, “em si e ao redor de si”. E concebia a distinção entre a animalidade e a humanidade como a capacidade da segunda de apontar para o futuro abstrato (conversão da garra em dedo):
O que nós chamamos, de ordinário, “fim” do ato do animal não é mais do que “objetivo”, objeto que se deseja, que se pretende colher ou afastar. O fim mesmo, esse, é abstrato. O animal não tem. Porque não representa como o homem e porque não abstrai como o homem, não pode viver nem prever até qualquer futuro abstrato, invisível, inaudível, inolfatável, insaboriável, como o futuro – amanhã, o futuro próximo ano, o futuro daqui a cinco, a vinte anos, a trinta. (…).
Concebido como feito de pontos – finitos, e não como linha, o presente dos animais (excluído o homem) não se liga ao futuro, se bem que tenha, atrás de si, o passado, tal como se manifesta quando o animal reconhece alguém ou alguma coisa. O presente humano confina com o passado e com o futuro, tecendo-se uma trama fina, compacta, com esse. (…).
E esse enjaulamento no presente (natural para os animais), esse “ir até ali e só até ali” na ligação dos fatos sucessivos e dos fatos de hoje a fatos futuros, é tão invencível, que a conduta adquirida pelo animal ensinado nunca se prolonga para além do domesticador ou dos seus substitutos (grifos no original).

Para ser coerente com o materialismo naturalista é preciso admitir a falta de fundamento do “ser”, inclusive do homem, inclusive de si mesmo. Coerente com isso, ao menos em teoria, em seu niilismo, é Emil Cioran ao afirmar em um livro cujo título (“Do inconveniente de ter nascido”) é bastante eloquente:

Que tudo seja desprovido de consistência, de fundamento, de justificação, é algo de que estou habitualmente tão convencido que aquele que ousar contradizer-me, mesmo que se trate do homem que mais estimo, me parecerá um charlatão ou um idiota.

Menos convencido de ter uma resposta pronta e incontrastável, Camus prefere indicar uma pergunta como a única realmente relevante sob o ponto de vista filosófico. Para o autor, a única questão importante é a do suicídio, porque versa sobre ser a vida digna de ser vivida ou não.

Retomando a ideia com a qual se iniciou este texto, referente à busca da experiência nas grandes obras literárias, parece oportuno fazer esse exercício a respeito da miséria do materialismo. Isso porque ou a pessoa não se concebe numa visão estritamente materialista e, portanto, não vive essa experiência, ou até se concebe, mas não assume, com coerência e até as últimas consequências, inclusive práticas, essa sua posição. Na verdade, não se encontram exemplos de indivíduos (ao menos vivos) que realmente levem seu materialismo às últimas consequências. Trata-se, portanto, de uma experiência que somente se poderá encontrar no âmago da sensibilidade e do talento dos grandes escritores.

Em seu conto “A Formiga Elétrica” (1969), Dick nos apresenta um narrador que descobre acidentalmente ser um androide. Ele fica muito impressionado com a descoberta de sua natureza. Conserta a si mesmo e se programa para uma vida de apenas mais algumas horas muito intensas, cometendo em seguida suicídio cortando sua “fita de construção do suprimento da realidade”. Confrontado com a monstruosidade materialista o androide racional não é capaz de suportá-la.

Também no conto de E. T. A. Hoffman, que chegou a dar origem ao que se chamou de “Complexo de Coppelia”, o personagem Nathanael perde a sanidade quando fica sabendo que uma boneca – dançarina de nome Coppelia, que ele acreditava ser uma mulher verdadeira, de carne e osso, não passava de um aparato robótico. E mais, Coppelia o adverte que haveria a possibilidade de que ele mesmo, Nathanael, fosse também um mero robô. Então Nathanael sente que sua realidade e identidade foram destruídas e, movido pelo desespero, se mata, atirando-se do alto de uma torre. Novamente, o confronto da teratologia mecanicista materialista com a racionalidade simplesmente destrói qualquer perspectiva e encaminha o homem (homem?) ao suicídio.

Essas valiosas peças literárias retratam com maestria a nulidade, a falta absoluta de sentido da vida de um ser racional como são os seres humanos, acaso reduzidos a meros mecanismos, “homo ex machina”. Em “Os Demônios”, Dostoiévski põe na boca de um dos personagens a proclamação de um “direito à desonra”. Ao submeterem-se ao reducionismo mecanicista materialista naturalista, os seres humanos proclamam o “direito à degradação”.

É induvidoso que juntamente com essa falta de sentido do homem viria, por consequência direta, a total falta de sentido de suas obras, dentre elas a ciência normativa do Direito e o estudo da Ética, bem como a ereção das regras morais e legais. Sobre a miséria do materialismo sistemático não é possível construir absolutamente nada de relevante, não há justiça, moral, bem, mal, beleza, crime, humanidade, não há fundamento mínimo para nada. Há apenas um “ser” ontologicamente diverso do “nada” material, mas cuja contemplação é impossível ou pelo menos ilusória na falta do espírito humano reduzido à matéria, reações químicas e mecanismos biológicos. E nós, humanos, nos tornamos os indigentes do universo, condenados a uma racionalidade insana, doentia e evanescente.

 


REFERÊNCIAS
BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Trad. Desidério Murcho, et al. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

BUBER, Martin. Eu e Tu. Trad. Newton Aquiles Von Zuben. 2ª. ed. São Paulo: Moraes, 1977.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad. Mauro Gama. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.

CIORAN, Emil M. Do Inconveniente de ter nascido. Trad. Manuel de Freitas. Lisboa: Letra Livre, 2010.

DICK, Philip K. A Formiga Elétrica. Trad. M. Martins. Scribd E – Book. Disponível em https://pt.scribd.com/doc/278979640/A-Formiga-Eletrica-Philip-K-Dick , acesso em 25.10.2021.

DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Os Demônios. Trad. Natália Nunes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
FRANKL, Viktor E. Em Busca de Sentido. Trad. Valter O. Schullup e Carlos C. Aveline. 2ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.

HAWIKING, Stephen W. Uma Breve História do Tempo. Trad. Ribeiro da Fonseca. 3ª. ed. Lisboa: Gradiva, 1994.

HOFFMAN, E. T. A. O Homem de Areia. Trad. Ary Quintella. Ebook. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 1986. Disponível em https://pt.scribd.com/read/477950092/O-Homem-da-areia, acesso em 25.10.2021.

HOLT, Jim. Por que o Mundo Existe? Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2013.

MIRANDA, Pontes de. Garra, Mão e Dedo. Campinas: Bookseller, 2002.

PONDÉ, Luiz Felipe. Contraponto. Brasil Paralelo. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=GTVZH8aJMfc , acesso em 25.10.2021.

REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da Filosofia – Filosofia pagã antiga. Volume 1. Trad. Ivo Storniolo, São Paulo: Paulus, 2003.

SÃO VITOR, Hugo de. Didascalicon – A Arte de Ler. Trad. Tiago Tondinelli. Campinas: Vide Editorial, 2015.

TELLES JÚNIOR, Goffredo. A Folha Dobrada. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós Graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

Receba artigos e notícias do Megajurídico no seu Telegram e fique por dentro de tudo! Basta acessar o canal: https://t.me/megajuridico.
spot_img

DEIXE UM COMENTÁRIO

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

spot_img

Mais do(a) autor(a)

spot_img

Seja colunista

Faça parte do time seleto de especialistas que escrevem sobre o direito no Megajuridico®.

spot_img

Últimas

- Publicidade -