quinta-feira,28 março 2024
ContraditórioDelinquência e Dependência Química

Delinquência e Dependência Química

Em “Alcoolismo, Delinquência, Toxicomania”, Charles Melman[1] afirma:

“ O que caracteriza a delinquência é que o acesso ao objeto é organizado não pelo símbolo, que é o quinhão de todos os neuróticos, mas pela apreensão, pelo rapto, pela violação. É preciso desenvolver esta observação notando que não é somente o acesso ao objeto que se encontra assim particularizado na delinquência, mas o objeto mesmo não parece tomar seu preço senão justamente à condição de ser raptado. ”

“ Em outras palavras, o que faz seu preço não é seu valor venal. Creio que todos conhecem o valor bricabraque dos objetos que podem ser colecionados por um delinquente, como se o preço deste objeto fosse feito apenas pelas condições de sua aquisição. ”

“ Lacan enuncia, a esse respeito, uma fórmula que pode servir de referência, quando diz que o que é recalcado no Simbólico reaparece no Real. As estruturas sociais são simbólicas e nos permitem assim condutas reais. Quando as estruturas sociais se tornam reais, são as condutas que se tornam simbólicas. ”

“ Isto quer dizer que as estruturas sociais são efetivamente simbólicas para o neurótico. Basta considerar que o poder que aí se exerce é ordinariamente indolor, inaparente, e que seu caráter propriamente simbólico é suficientemente eficaz para a maioria. Poderíamos desenvolver este simbólico, pois nestas estruturas a troca mesma só tem preço por que é simbólica. Na distinção entre valor de uso e valor de troca, o caráter simbólico pode primar sobre o valor de uso. ”

“Vocês conhecem a circunstância em que estas estruturas sociais são reais. Por exemplo, quando o poder destas estruturas não vale para um sujeito senão em sua face encarnada, policial, armada ou outra. Isto é, quando o poder vale somente por sua presença real. Neste caso, as condutas do sujeito se tornam simbólicas. Simbólicas do que? É o que tentarei desenvolver. ”

5“ As condutas do delinquente são simbólicas de uma falta, e de uma falta essencial, uma vez que é a falta de acesso ao objeto que conta. Não deste ou daquele objeto, nem mesmo de objetos dos quais ele faz coleção em sua diversidade heteróclita. Trata-se de acesso a este objeto que comanda o gozo, isto é, ao falo. ”

 

O termo “ falo” não guarda qualquer similitude como a representação orgânica do pênis, ao revés, é usado indiscriminadamente para os dois sexos – é a posição do sujeito em relação a ele que implica a diferença sexual.

Pode ser compreendido de vários modos distintos, ainda que as vezes sejam super ou sobrepostos.

6

Como significante, aquele que representa um sujeito para outro significante, o falo é o significante do desejo. Uma imagem didática e figurativa dessa afirmação é exemplificada pela criança que, percebendo que sua mãe tem outros interesses que não somente o de cuidar dela, e que esses interesses se manifestam quando ele olha para além da criança, para outro lugar que não para ela, tenta, através de seu próprio olhar, localizar esse ponto outro no espaço para o qual olha sua mãe. Nesse ponto estará o falo. E nesse ponto, e da indagação feita – o que ela quer? – não há como a criança obter qualquer resposta. Nessa falta, dessa falta, há o ponto de desejo. A falta é o que causa desejo.

Portanto é também o significante da falta. Falta, buraco, furo, que representa a divisão interna do sujeito, da impossibilidade de se fazer Um, de obter o gozo pleno. É o significante desse gozo parcial, limitado e finito, precário, único admitido ao ser humano.

Como signo, aquilo que representa alguma coisa para alguém, o falo denuncia e recobre, ao mesmo tempo, essa falta, através de uma série de objetos que nos dão a ilusão de completude. Neste sentido, os símbolos fálicos corriqueiros, bens materiais, prestígio, poder, sexo, etc.

Ele também é o representante da lei, lei que ordena os modos de gozo. A ordem simbólica interdita determinados modos de acesso aos objetos e a determinadas modalidades de sua fruição; no entanto admite outras vias de acesso e outros modos de satisfação.

Enquanto símbolo, o falo demarca as insígnias da virilidade e da feminilidade. Designa também os objetos passíveis de dar satisfação ao ser humano, quer tenham a marca da necessidade (água, comida, etc.) ou do desejo (amor, poder, dinheiro, etc.)

“É portanto precisamente a falta de tomada pela ordem simbólica, na medida em que esta dá acesso a este objeto essencial, que não deixa ao delinquente outro recurso que não seja o do rapto, da apreensão violenta, da violação. Mesmo porque para ele não há outra maneira de entrar em relação com o falo, de detê-lo, de possuir dele uma parte, se deseja manter-se na virilidade.”

Podemos então compreender porque ele se mantém em uma posição de não poder ter acesso ao objeto que conta, senão pela violência. Por isto, todos os objetos que furta tem valor de equivalentes sexuais, de estigmas da virilidade que viria, enfim, possuir por intermédio deles.

A este propósito, pode ser observado que o ato delinquente não é feito de um sujeito – Lacan assinala isto em seu trabalho sobre criminologia – mas se exercita em um estado crepuscular, com uma sorte de obnubilação da consciência. É como se o sujeito estivesse efetivamente ausente de seu ato, como se somente após sua execução o dito sujeito pudesse encontrar um momento de respiração, um momento de ex-sistência ligado à posse e à contemplação do objeto, na medida em que ele enfim o possui, mas sem que essa posse será jamais satisfatória. Em outras palavras, o ato será sempre apenas parcial, o que vai leva-lo inelutavelmente a recomeçar, porém aumentando o lance, logo, o risco.

Neste caso, de que modo este traço que seria uma falta de introdução a ordem simbólica é suscetível de situar-se? Isso põe em causa a função do Nome-do-Pai, isto é, encontra-se em uma posição onde não pode ser reconhecido por ele, portanto não pode valer-se de sua filiação, de sua autoridade.

O Nome-do-Pai é um termo pelo qual se designa aqueles que representam a figura da autoridade e da lei. Essas figuras, normalmente o casal parental, transmitem para a criança os interditos e as autorizações necessárias para ela participar, dentro de critérios que ordenam os desejos e o gozo, das trocas entre os seres humanos cotidianamente efetuadas. Se por parte da mãe ou do pai, há dificuldades de transmissão da lei para a criança, ou se por parte desta há recusa em receber, a função do Nome-do-pai não se aperfeiçoa.

Como é função, e não uma figura propriamente dita, é exercida pelo adulto em posição terceira, para além das relações duais, função de partição e distribuição, de regramento das relações duais. É a função de interdição do “ Eu posso tudo”, e, ao mesmo tempo, de autorização do “ Eu posso. ”  

“ As razões e as circunstâncias nas quais uma tal falta pode ser constituída são evidentemente numerosas e diversas. Pode ser de origem neurótica, e ligadas a opinião preconcebida do sujeito, ou seja, a uma recusa de sua parte em inscrever-se na linguagem das gerações. Pode estar também ligada ao que se passaria ao nível dos pais, quer do fato de uma recusa paterna, quer de um obstáculo colocado pela mãe. “

As razões podem estar mais corriqueiramente ligadas a estrutura da família. Também podem ser de ordem social, quando o pai real, o pai presente na família é demasiadamente desprovido, desmuniciado, em falta com relação à referência fálica para poder funcionar como aquele que poderia introduzir sua criança na cadeia simbólica.

Quando as estruturas da sociedade se tornam reais, o poder é, então, figurado na sua representação real e inclusive policial. O objeto mesmo, o objeto que conta, cessa de ser simbólico para tornar-se nada mais que um objeto real. O pai assim vai estar privado de todas as suas evidências simbólicas para valer somente em sua realidade.

Portanto vai se encontrar desfigurado por representações que serão asseguradas pelas instâncias educativas, correcionais, policiais ou judiciárias. Aqueles que se ocupam de delinquentes conhecem o investimento transferencial deles em relação a estas instâncias e, como se poderia esperar, toda ambivalência própria à transferência, o que ilustrará a relação que ele vai travar com o saber destas instâncias. Pois a exigência, se posso assim dizer, natural destas instâncias, é a de ter um saber absoluto sobre aqueles com os quais estão lidando.

A situação parece sem saída, uma vez que a condenação penal, inevitável a termo, vai somente confirmar o caráter real do pai do qual se trata, o pai da autoridade representado pelo sistema carcerário. Mesmo porque não se trata de uma pena simbólica: será uma pena real. Poderíamos fazer ainda a observação de que certos delinquentes, não todos, tem o sentimento de se realizarem enquanto sujeitos somente na medida em que estão na prisão, na posição em que são agarrados pelo Outro ( aqui a ordem simbólica), nesta apreensão deles mesmos não mais simbólica, mas real.

O característico do delinquente, contrariamente ao neurótico, é que ele age. Ele não se detém diante do que faz obstáculo, diante de clausuras, não importa de que ordem sejam. Ele é sempre pelo arrombamento. ição própria ao neurótico ou mesmo sobre o que é o agir. O delinquente, agindo, comete um ato ou uma ação? Não é a mesma coisa.

Seguramente o delinquente pretenderia que fosse um ato, isto é, que lhe daria um estatuto subjetivo, o que enfim o fundaria, o legitimaria em sua subjetividade. Mas é um ato que fracassa – salvo evidentemente se o delinquente se faz matar – de repente. E ele vai ser inevitavelmente levado a repeti-lo, apostando, como o jogador, um lance sempre crescente para empreender riscos sempre maiores.

Então, se não podemos dizer que é um ato, ainda que o delinquente o deseje, o que podemos chamar de ação é o fato de que o simbólico, mesmo que seja a ordem que nos coloca em posição de desejar e de ter acesso ao objeto, não pode ser suficiente para tudo. O sexo chama o sujeito a se engajar, a passar a ação, a servir-se de sua mão, do seu corpo ou do que ele quiser. Mas neste caso a ação não terá necessidade de ser violenta, pois de certa forma é o simbólico, a ordem paterna que a comanda.

Podemos dizer que a relação do delinquente com seu objeto não é dual, mas se funda na anulação do terceiro paterno, deste pai real, na medida em que o delinquente o reduz a impotência, o deixa cego, o amarra, testemunha-lhe que ali ele nada pode. Este ponto pode ser característico de certos cenários que passa pela preocupação de amarrar o guarda, o diretor, o pai, o marido, e de poder, sob seus olhos, cometer o delito mais infame possível. Esta dimensão da á delinquência seu caráter fundamentalmente incestuoso.

Por fim, sabemos que delinquo quer dizer: faltar com seus deveres; linquo é deixar cair, abandonar. O delinquente estima que se tenha faltado com o dever para com ele. Alguma coisa no dever com relação a ele não foi cumprida e sua ação não faz senão responder a esta falta, esta omissão do Outro. Em outras palavras, estamos engajados em uma competição recíproca e, de repente, não é sua culpabilidade que está em jogo.

Ele terá a tendência – que temos o hábito de acusar rápido demais de ser paranoica – de pôr em questão o conjunto dos mecanismos sociais aos quais atribuirá a responsabilidade desta falta, não sabendo, evidentemente, a quem e ao que culpar.

Forte abraço a todos.


[1] Charles Melman, psicanalista francês, foi um dos colaboradores mais próximos de Jacques Lacan (1901-1981), o principal herdeiro de Sigmund Freud na França.

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