sexta-feira,19 abril 2024
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Decisões Judiciais e a Teoria Love’s Knowledge de Martha Nussbaum

Na práxis jurisdicional há a adoção da linguagem técnica, mas são perceptíveis traços de emotividade nas decisões judiciais. O que pode ser algo passível de crítica, pois quanto mais racional aparenta ser o argumento, mais credibilidade ele possui dentro do campo jurídico. Talvez, pela imparcialidade que a sociedade busca na figura do julgador.

Porém, não são raros os casos em que o argumento que aparenta ser puramente jurídico possui conteúdo essencialmente subjetivo e emocional.  Alguns autores [i]  questionam se não seria mais “honesto” que o julgador apresentasse os reais motivos que o levaram a tomar determinada decisão e a partir do que foi externado, seriam criados critérios de argumentação jurídica.

Assim, descreveremos algumas características da Teoria do Love’s Knowledge de Martha Nussbaum[ii]  para uma compreensão da sua possível aplicabilidade às decisões judiciais.

  1. As emoções como objeto de investigação

Martha Nussbaum[iii] entende que é possível atribuir  valor ético às emoções, e por essa razão, seria incorreto entendê-las como irrelevantes sob o ponto de vista filosófico. Para a autora, o indivíduo precisa compreender as suas emoções para que possa contribuir com uma sociedade moralmente justa, pois isso aperfeiçoaria os relacionamentos, que poderiam ser mais respeitosos e morais. A partir do momento em que o indivíduo visualiza os sentimentos, a rejeição do “outro” deixa de se manifestar, trata-se de uma visão mais humana e que colabora para a noção de democracia saudável.

Nussbaum entende que as emoções têm valor cognitivo, e, por esse motivo, também devem ter algum valor ético.  Assim, a partir da investigação sobre as emoções pode se observar a coerência presente em determinado discurso. Ana Sandoiu exemplifica o pensamento da autora[iv]:

[…] se uma pessoa afirma que é feminista, e testemunha um ato de abuso contra as mulheres e ainda assim não tem reação (isto é, indignação), isso nos faz questionar a sinceridade das convicções dessa pessoa. Devemos admitir, junto com Aristóteles que emoções são “respostas discriminativas intimamente ligadas a crenças sobre como as coisas são e o que é importante”. Às vezes, elas podem ser ainda mais confiáveis ​​como nossas bússolas morais do que os julgamentos intelectuais desprendidos, já que incorporam nossas visões mais profundamente enraizadas sobre o mundo (tradução e grifo nosso).[v]

Nussbaum menciona a existência de princípios gerais e universais, que são aqueles que são utilizados como parâmetro do comportamento individual, mas que em alguns momentos podem ser considerados como “eticamente cruéis” (p. 37), se aplicados de maneira automática. Para a autora a “sabedoria prática” consiste na escolha dos princípios gerais como norteadores de determinada conduta, uma vez que eles não conseguem alcançar as situações “inesperadas”[vi].

Abdelkader Aoudjit[vii] exemplifica o pensamento de Nussbaum:

A autora entende que não existe apenas uma medida para os diferentes argumentos sobre o que é considerado como bom, não existe sequer uma pequena pluralidade para se alcançar essa medida (p. 36)”. Ainda que as emoções sejam essenciais e centrais em nosso esforço para obter entendimento sobre qualquer questão ética importante” (p.21). Ela prossegue dizendo que os princípios nada mais são do que resumos de bons julgamentos, e como as situações particulares são únicas e podem conter “características novas e imprevistas” (p.38), os princípios não são mais do que regras práticas e devem sempre estar sujeitos à revisão. Ela menciona que as decisões morais não devem ser realizadas usando argumentos lógicos, mas com base em uma visão intuitiva sobre as pessoas e situações particulares, com todas as suas ambiguidades e nuances, bem como os compromissos emocionais de todas as pessoas envolvidas. Ela encoraja o leitor a “ver e sentir e julgar”, “perder menos” e “ser responsável por mais” (p.164- tradução e grifo nossos).

Assim, a capacidade ética seria definida pelo discernimento entre as características importantes da situação particular. Percepções, em combinação com uma dose saudável de responsabilidade moral.

  1. A aplicação da teoria nas decisões judiciais

Observar as emoções de todos os envolvidos no processo (jurisdicionados e julgadores) é algo que pode ser bem visto no tocante a um aperfeiçoamento da hermenêutica jurídica e dos critérios de justiça. Porém, como essa visão pode ser aplicada no controle das decisões judiciais?

Geilza Diniz[viii] analisou algumas decisões proferidas em casos de abortos de fetos anencéfalos, observando a fundamentação utilizada pelos julgadores para deferir ou indeferir a medida. Assim, citamos como exemplo um caso julgado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em 2006, em que o Ministério Público requeria a interrupção de uma gestação de 14 (quatorze) semanas, utilizando como argumentos “a ausência total ou parcial do encéfalo que inviabilizaria a vida e o teor da Resolução nº 1.752/04, do Conselho Federal de Medicina, segundo a qual o ser proveniente dessa gestação não teria como escapar de uma fatal parada cardiorrespiratória ainda durante as primeiras horas após o parto. Alegou-se, ainda, atentado à dignidade da gestante.”[ix] Com esses argumentos a autorização judicial foi negada em primeira instância, o que gerou a manifestação do Desembargador Nilo Lacerda  [x] em nível recursal:

A condição em que se encontra o ser humano não importa: se ele está doente, se está em fim de vida, se gostamos dele, se sua existência nos faz sofrer, tudo isso é secundário em relação ao direito primário a vida. Fetos e bebês anencéfalos são seres vivos, são seres humanos: e esta convicção tem inquestionável base científica. Portanto, devem ser respeitados como seres humanos, criaturas do Criador. Além de todo o aspecto legal supra abordado, autorizar a interrupção de uma gravidez, atormentaria a minha convicção Cristã de que a vida vem de Deus e somente Ele tem o poder de dela dispor (grifo nosso)”(MINAS GERAIS…, 2006).[xi]

Observa-se que o julgador expôs as suas emoções, principalmente no momento em que menciona que se sentiria atormentado pela concessão da medida. A decisão sofreu fortes críticas, sob o argumento de que a racionalidade estaria sendo deixada de lado, em virtude daquelas expressões. Porém, a partir do momento em que essas emoções são transformadas em linguagem há a possibilidade de um controle mais direcionado daquela decisão. É assim que Diniz analisa a decisão prolatada pelo desembargador:

O principal equívoco da decisão refere se ao fato de ter o desembargador ignorado completamente as alegações relativas ao direito da mãe. Verifica-se, no inteiro teor da decisão, que o julgador fez um amplo exercício retórico, mas somente no sentido pejorativo do termo utilizando apenas as teses religiosas e emocionais relativas ao direito à vida para falar reiteradamente sobre a proteção dos interesses e direitos do feto, omitindo-se completamente quanto à possibilidade de risco à vida e saúde da gestante, ao peso que ela enfrentara ao gestar um feto inviável, aos danos psicológicos que poderiam advir etc. Não obstante, a decisão permitiu uma fácil impugnação não somente pela omissão quanto aos direitos da mãe, mas também quanto à base científica mencionada pelo desembargador, quanto à laicidade do Estado, quanto à condição de ser humano de uma pessoa sem cérebro. Em outras palavras: o recurso às convicções pessoais ampliou a possibilidade de debate jurídico sobre o tema, demonstrou honestidade do julgador, porque qualquer pessoa que se proponha a analisar a decisão sabe exatamente quais os reais fatores que o levaram a tomar a decisão no sentido do impedimento da antecipação do parto.(grifo nosso) [xii]

No momento em que o desembargador expôs as suas emoções a decisão aparentou uma maior transparência e se pôde verificar quais as suas reais convicções.

Considerações Finais

Por meio do presente artigo, buscamos trazer ao leitor alguns aspectos da Teoria  Love’s Knowledge de Martha Nussbaum, que embora não seja tão utilizada quando do estudo dos critérios da argumentação jurídica, se demonstra passível de reflexão quanto à  sua aplicabilidade. Principalmente na utilização de critérios de racionalidade para o controle de decisões que analisem as emoções dos envolvidos na atividade jurisdicional.

[i]  Geilza Diniz bem explica a relação entre a exposição dos sentimentos e o controle realizado pelo sistema jurisdicional: “Dado que a atividade racional não precisa e não consegue abandonar a análise das emoções e sentimentos daquele que profere a decisão, especialmente nos casos difíceis ou trágicos. Nessa esteira, uma boa teoria da argumentação jurídica deve incluir na sua sistematização a análise das convicções pessoais do julgador, para então poder aumentar o espectro de correção das decisões, dado que a emoção e a razão, habitantes do mesmo cérebro humano, são indissociáveis. A emoção, na realidade, exerce uma forte influência sobre a razão e vice-versa, como no exemplo de Nussbaum, pois é cientificamente comprovado que os sistemas cerebrais necessários aos sentimentos se encontram enredados nos sistemas necessários à razão, não sendo completo, pois, um estudo isolado de qualquer um desses sistemas (grifo nosso) (DINIZ, Geilza Fátima Cavalcante. Teoria da argumentação jurídica e love’s knowledge no caso da antecipação do parto do feto anencéfalo. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 47 n. 188 out./dez. 2010. P. 255.)

[ii]  Martha Craven Nussbaum é uma filósofa norte-americana, professora de Direito e Ética da Ernst Freund na Universidade de Chicago . Escola e Departamento de Filosofia. Ela pesquisa filosofia grega e romana , na filosofia política, no feminismo e na ética , incluindo os direitos dos animais . Também possui nomeações para associados em clássicos, divindade e ciências políticas , é membro do Comitê de Estudos do Sul da Ásia e membro do conselho do Programa de Direitos Humanos. Também já ensinou em Harvard e Brown (Disponível em: https://www.law.uchicago.edu/faculty/nussbaum)

[iii] NUSSBAUM, Martha. C. Love’s knowledge: essays on philosophy and literature. Oxford: Oxford University Press, 1990.

[iv] SANDOIU, Ana. Martha Nussbaum on Emotions, Ethics, and Literature. 2016. Disponível em: <https://partiallyexaminedlife.com/2016/08/12/martha-nussbaum-on-emotions-ethics-and literature/>. Acesso em: 10 jan. 2019.

[vi] NUSSBAUM, Martha. C. Love’s knowledge: essays on philosophy and literature. Oxford: Oxford University Press, 1990 p. 48.

[vii] AOUDJIT, Abdelkader. Love’s Knowledge: Essays on Philosophy and Literature by Martha Nussbaum. 1995. Disponível em: <https://philosophynow.org/issues/13/Loves_Knowledge>. Acesso em: 10 jan. 2018.

[viii] DINIZ, Geilza Fátima Cavalcante. Teoria da argumentação jurídica e love’s knowledge no caso da antecipação do parto do feto anencéfalo. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 47 n. 188 out./dez. 2010. P. 273

[ix]  Idem. P. 272.

[x] BRASIL, Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Ap. 1.0024.06.199818-3/001(1), Rel. Des. Nilo Lacerda, 2006.

[xi] DINIZ, Geilza Fátima Cavalcante.. p. 272

[xii]  Idem.

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