Como sempre salienta o Advogado Aury Lopes Jr., “forma é garantia e limite de poder” [1], o regramento processual apresentado pelo Código de Processo Penal e pelas garantias constitucionais são imprescindíveis ao Estado Democrático. Pois, limitam o poder punitivo Estatal, garantindo respeito aos direitos dos cidadãos. Por isso não se trata de mera formalidade, o processo é a garantia de um julgamento justo, nesse sentido a ordem dos fatores, ou seja, das formas, alteram e muito o resultado do processo.
Em respeito às garantias, já relatei noutros momentos o quão preocupante pode se tornar a realidade jurídica do país caso as referidas formalidades não fossem respeitadas com afinco. Nesse diapasão, relatei o quão deletério é a imparcialidade do magistrado (ver aqui), sobre a indevida relação entre Ministério Público e magistrado (ver aqui) que corrompe com o sistema acusatório. E até mesmo quando este ultrapassa os limites processuais para atingir os objetivos que julgam ser de nobre interesse da população (ver aqui) o que foi igualmente devastador para a justiça brasileira.
A partir dessa análise, tem-se que o juiz não pode agir de ofício, pois é um ente inerte e somente se manifesta sob provocação, entendimento basilar de direito processual. Isso decorre do sistema acusatório e pela imposição de imparcialidade do juiz, de modo que a sua atuação de ofício mostra que ele possui interesse no processo, logo seria suspeito e não poderia julga-lo. Nesse sentido cabe ao Ministério Público ou autoridade policial, pleitear a prisão preventiva, tal como bem assevera a doutrina:
“Mas o ponto mais importante é: não pode haver conversão de ofício da prisão em flagrante em preventiva (ou mesmo em prisão temporária). É imprescindível que exista a representação da autoridade policial ou o requerimento do Ministério Público. A “conversão” do flagrante em preventiva equivale à decretação da prisão preventiva. Portanto, à luz das regras constitucionais do sistema acusatório (ne procedat iudex ex officio) e da imposição de imparcialidade do juiz (juiz ator = parcial), não lhe incumbe “prender de ofício”.” [2]
A limitação do agir de ofício do magistrado deve ser uma constante para o Processo Penal, visto que o juiz não possui livre convencimento e a sua atuação está adstrita a norma processual e constitucional, nesse sentido Lenio Streck reiteradamente aponta que
“defender o livre convencimento ou a livre apreciação da prova pelo juiz, posturas que, por uma questão metodológica de fácil identificação, estão próximas ou diretamente ligadas aos diversos subjetivismos e voluntarismos interpretativos.” [3]
Esse é o entendimento sempre apresentado pela Constituição Federal, o juiz tem o dever de fundamentar as suas decisões motivando o deferimento ou indeferimento da medida solicitada, desde que após a devida provocação. No entanto, a aplicação do CPP nem sempre seguiu esse entendimento.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sempre fora continua na possibilidade de decretação da prisão preventiva de ofício [4] fundamentando esse entendimento no artigo 311 do CPP:
Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.
No entanto, atualmente, a redação do referido artigo fora modificada pela lei 13.964/2019, passando a constar com a seguinte redação:
Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.
Expungindo do CPP a possibilidade de concessão de prisão preventiva de ofício, ou seja, o legislador compreendeu que a atuação do magistrado não poderia ser livre para a decretação de uma medida como está sem a devida solicitação da acusação.
Nesse sentido, o STF modificou o seu ultrapassado entendimento sobre essa temática, para afirmar a ilicitude que decorre do agir de ofício do magistrado ao decretar a prisão preventiva:
“A Lei n. 13.964/19, ao suprimir a expressão “de ofício” constante na redação anterior dos arts. 282, § § 2º e 4º, e 311, ambos do Código de Processo Penal, veda, de forma expressa, a imposição de medidas cautelares restritivas de liberdade pelo magistrado sem que haja anterior representação da autoridade policial ou requerimento das partes.” [5]
Simples assim, a conversão de ofício da prisão em flagrante em prisão preventiva representa uma medida ilícita. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça se manifestou de modo diferenciado recentemente.
A quinta turma do STJ entendeu que não haveria ilicitude, não gerando nenhuma nulidade, no caso em que após a decretação da prisão preventiva de ofício, houvesse requerimento da autoridade policial pela decretação da prisão [6].
Ou seja, se houver posterior requerimento a atuação do magistrado deixaria de ser ilícita por ter sido realizada sem provocação? Nesse caso o juiz previu o futuro para saber que a medida que ele estava deferindo seria pleiteada posteriormente? A ordem desses fatores não altera o resultado?
O Entendimento questionado fora apresentado pelo Superior Tribunal de Justiça com grandes possibilidades de que outros tribunais sigam esse entendimento. Entendo que a ocorrência de posterior representação pela prisão preventiva não desfaz o ocorrido em que o juiz atuou de ofício para decretar a medida, o que por si só torna ilícita a decisão.
Referências Bibliográficas
[1] Direito Processual Penal, Aury Lopes Jr, página 659, ano 2020.
[2] Direito Processual Penal, Aury Lopes Jr, página 671, ano 2020.
[3] Dicionário de Hermenêutica, Lenio luiz Streck, página 194, ano 2020.
[4] HC 96.445, rel. min. Joaquim Barbosa, j. 8-9-2009, 2ª T, DJE de 2-10-2009.
[5] Supremo Tribunal Federal STF – AG.REG. NO HABEAS CORPUS: HC 0110693-64.2020.1.00.0000 MT 0110693-64.2020.1.00.0000
[6] AgRg no RHC 136708 / MG AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS 2020/0280100-8
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