quinta-feira,28 março 2024
ColunaPapo JurídicoComo fica o princípio da irretroatividade no consumo?

Como fica o princípio da irretroatividade no consumo?

1. Introito

O diploma consumerista se impõe sobre a própria vontade dos contratantes, ditando regras e estabelecendo obrigações imutáveis, excepcionando-se, apenas, alguns aspectos de natureza patrimonial (arts. 107 e 51, I, da Lei 8.078/90). Mas, em sendo assim, como fica o princípio da irretroatividade no consumo?

A colisão da lei nova com a anterior, algumas vezes, gera problemas. Isso porque determinadas circunstâncias estabelecidas pela lei antiga podem permanecer sob a vigência da nova lei; ou, por outro lado, situações outras que foram criadas pela lei velha já não vão encontrar guarida na novel legislação.

Destarte, há que se estudar

Vamos lá?

Até que ponto a lei antiga pode gerar efeitos e até que ponto a lei nova não pode impedir esses efeitos da lei antiga, caso a caso?

2. Da Irretroatividade das leis

A blindagem constitucional ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada configura cláusula pétrea de nosso Texto Magno, e também um dos pilares de sustentação do Estado Democrático de Direito, o que os torna garantias individuais de todos os cidadãos.

Não se pode duvidar de que a intenção da atual Carta Magna foi adotar, como regra geral do sistema, o princípio da não-retroatividade da lei, admitindo-se, por outro lado, a sua retroatividade como exceção.

Assim o fez ao prescrever que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” (art. 5º, XXXVI).

Não outro o sentido imposto pelo comando legal constante do art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, que considera como ato jurídico perfeito aquele já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.

Isso revela que não só as situações não definitivamente constituídas (facta pendentia), como também os efeitos presentes e futuros dos fatos já consumados (facta praeterita), serão abarcados pela novel legislação.

Caio Mário e Paul Roubier[1], maiores defensores da teoria da não-retroatividade, considera as três etapas do tempo (passado, presente e futuro), entendendo que elas condicionam três possibilidades de aplicação da lei: a) se a lei se aplica ao passado, diz-se que seu efeito é retroativo; b) se a lei aplica-se ao presente, diz-se imediato seu efeito; e c) se a lei aplica-se ao futuro, seu efeito será diferido.

E justamente dentro do campo da aplicação da lei civil no tempo é que surgem os desafios da regulamentação do setor das relações de consumo e contratos privados.

3. Nova lei de ordem pública: quais os efeitos?

Normas de ordem pública, também chamadas de coercitivas, imperativas, taxativas ou cogentes, são aquelas que impõem ou proíbem de maneira categórica.

É interessante ainda observar que as normas de ordem pública não são atingidas pela preclusão.

Conforme ensina Cretella Neto[2],

“preclusão é o perecimento da pretensão de qualquer das partes à tutela jurisdicional, em virtude da perda de uma faculdade, de um poder ou de um direito processual que lhe caberia.” 

Noutras palavras, ultrapassado o momento procedimental próprio (fase procedimental) para a prática de determinado ato, ou tendo esse já sido realizado, ou, ainda, sendo incompatível com outro anteriormente consumado, diz-se que ocorreu a preclusão.

Como as normas de ordem pública não são atingidas pela preclusão – afinal resguardam interesses fundamentais da sociedade –, não estará o magistrado impossibilitado de decidir acerca das questões reguladas pelo CDC não resolvidas em momento apropriado.

Por outro norte, é aceitável admitir que a preponderância do interesse público sobre as conveniências dos cidadãos – como consequência proveniente da soberania da lei –, justifica sua aplicação a todos os fatos por ela regulados.

Assim, para que a legislação mais moderna possa realizar inteiramente sua finalidade benéfica, o interesse social exige que seja aplicada tão completamente quanto possível.

4. Do conflito intertemporal nos contratos.

Pergunta-se, pois, qual será a solução adequada aos problemas de conflitos de lei no tempo.

Dever-se-á dar privilégio à estabilidade jurídica e à paz social, impedindo a lei nova de abraçar situações concretamente abrangidas por leis anteriores.

Ou, ao contrário, evitar a estagnação social, buscando, sempre, o progresso do legislativo?

É de se notar que os contratos de consumo, muitas vezes conjugados, têm em sua essência a aleatoriedade, “[…] porquanto o ganho ou a perda dos pactuantes depende de circunstâncias futuras e incertas” [3]

É natural e lógico que, como em qualquer contrato de adesão com o viés da aleatoriedade tão acentuado, a contraprestação paga pelo consumidor seja atrelada aos riscos assumidos pela prestadora, sendo um dos critérios para o seu dimensionamento, sem dúvida, o exame de quais eram as normas vigentes à época de sua celebração.

Sob a perspectiva das partes, isso significa saber, previamente, quais são as regras legais que as vinculam e que serão norteadoras das cláusulas contratuais (pacta sunt servanda).

Consequentemente, tais relações jurídicas livremente pactuadas, com o uso da autonomia da vontade, devem dar valor à segurança jurídica, conferindo-se estabilidade aos direitos subjetivos e, mais ainda, conhecimento inequívoco das regras às quais todos estão vinculados, bem como a tão importante previsibilidade das consequências de suas respectivas condutas.

Nesse ponto, é de importância elementar a distinção entre efeito retroativo e imediato da lei.

Aliás, a doutrina tradicionalmente tem formulado diferentes graus de intensidade da retroatividade, como destacado por Carlos E. Elias de Oliveira[4], em alentado estudo dedicado à retroatividade das leis, ao lecionar que:

“Quanto aos efeitos, a retroatividade pode ser dividida em três espécies: (1) máxima : é a máxima intensidade de uma retroatividade, pois a nova lei atinge efeitos pretéritos, pendentes e futuros de um ato pretérito; (2) média : a nova lei atinge apenas efeitos pendentes e futuros de um ato pretérito; (3) mínima : a nova lei atinge apenas os efeitos futuros de um ato pretérito”

A distinção entre efeito retroativo e efeito imediato proposta por Rubens Limongi França[5] no sentido de que a lei nova poderia ser aplicada aos facta pendentia, foi considerada como retroatividade mínima por grande parte da doutrina pátria, e ofensiva ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada.

5. E nos contratos de consumo?

Neste contexto, poderia ser dito que, uma vez constatado algum dos óbices constitucionais pétreos – direito adquirido, ato jurídico perfeito ou coisa julgada – leis ou normas, como regra geral, não podem atingir situações jurídicas pretéritas à sua vigência.

Por outro lado, já se entendeu que a norma constitucional poderá ter retroatividade máxima ou média, diante de situações jurídicas de violação de seus princípios, ou mesmo de preservação a direitos fundamentais de indivíduos em situação de vulnerabilidade.

Caso, então, que a lei nova passará a afetar o conteúdo do ato jurídico instituído em momento pretérito (plano existencial), a ponto de interferir no seu plano de validade.

Tal entendimento, inclusive, foi assentado no julgamento do RE 140.199/RJ, de relatoria do Ministro Moreira Alves, tendo sido reconhecida a mitigação à regra da irretroatividade da lei civil.

Assim, diante de nova lei de regulamentação estatal no setor de consumo, o Código de Defesa do Consumidor, bem como a nova lei, também de ordem pública, aplicam-se àqueles contratos assinados antes de sua vigência, anulando cláusulas leoninas ou abusivas cuja eficácia prática ocorreria agora, ou no futuro – os chamados contratos de trato sucessivo.

Nesse ponto não há lesão alguma ao princípio da irretroatividade das leis, pelo simples fato de inexistir direito adquirido ou ato jurídico perfeito.

Não há se falar aqui em retroatividade da lei, mas, sim, em sua aplicação imediata, uma vez que a cláusula passível de anulação não se consumou ou se exauriu antes da publicação da nova lei de ordem pública.

Isto é, embora constituído o contrato, algumas de suas cláusulas, agora abusivas, não se consumarão em razão da aplicação imediata da nova lei.

Ademais, Marques[6] assevera, nesse sentido, que “o ato jurídico pode ser assinado e não ser juridicamente perfeito.”

E mais, também explica Marques[7]:

“Um ato assinado pode não ser gerador de direitos adquiridos, mas pode ser gerador de efeitos já consumados, agora intocáveis, por isso mesmo a definição do art. 6º, §1º, da LICC prioriza a expressão “consumado”, para frisar sua diferente função em relação ao direito adquirido.”

Deparando-se, assim, o intérprete com situações concretas em que, aparentemente, existam conflitos entre o Código de Defesa do Consumidor e outras leis (sejam elas gerais ou especiais, nacionais ou provenientes da ordem internacional), deverá buscar a solução no próprio sistema normativo consumerista, haja vista sua supremacia legal.

6. Conclusão

Diante de toda essa digressão como fica o princípio da irretroatividade no consumo?

Destarte, em primeiro lugar, deve-se tentar, com harmonia, adequar a lei supostamente conflitante ao microssistema das relações de consumo.

Como ensina o eminente Cavalieri Filho[8],

“os institutos e contratos continuam regidos pelas normas e princípios que lhe são próprios, mas sempre que gerarem relações de consumo, ficam também sujeitos à disciplina do Código de Defesa do Consumidor.”

 Essa é a lógica da Lei 8.078/90 em conflito com outra lei de ordem pública: a compatibilização do microssistema consumerista com a norma supostamente com ela conflitante, sempre que possível.

E isso, principalmente quando diante de situações jurídicas de violação de seus princípios, ou mesmo de preservação a direitos fundamentais de indivíduos em situação de vulnerabilidade.

De fato, a vedação à retroatividade plena dos dispositivos inaugurados por nova lei de ordem pública obedece ao preceito pétreo estampado no art. 5°, XXXVI, da CF.

Ademais, também guarda submissão àqueles relativos à ordem econômica e à livre iniciativa, sem que se descuide da defesa do consumidor, pois todos encontram-se expressamente previstos no art. 170 da CF.

Porém, deve-se assentar que os contratos firmados antes do advento de nova lei de ordem pública podem não ser considerados atos jurídicos perfeitos ou blindados às mudanças supervenientes das regras vinculantes.

Isto porque, diante da necessidade de proteção a outros direitos fundamentais, ou mesmo a indivíduo em situação de vulnerabilidade, tais deverão nortear a interpretação dos contratos privados de regidos pelos princípios e normas decorrentes das relações de consumo.

Com isso se terá, não a retroação de lei nova, mas sua aplicação imediata e geral, mesmo aos contratos firmados antes de sua vigência.

[1] PEREIRA, Caio Mário. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974. p. 149

[2] CRETELLA NETO, José. Fundamentos principiológicos do processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 284.

 

 

[3] RIZZARDO, Arnaldo, Contratos , 16ª. ed. São Paulo: Editora Forense, 2016, pág. 894

[4] Retroatividade das leis: a situação das leis emergenciais em tempos de pandemia. Disponível em http://www.flaviotartuce.adv.br /artigos_convidados. Acessado em 21/10/2020

[5] A Irretroatividade das Leis e o Direito Adquirido, 5ª. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1998, págs. 29-30.

[6] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.

[7] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.

[8] Cavalieri FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 359.

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