quinta-feira,28 março 2024
ColunaDiálogos ConstitucionaisCombate à escravidão e a dignidade em Kant

Combate à escravidão e a dignidade em Kant

A escravidão é a contracultura da modernidade. É a repulsa ao que de básico se inferiu a respeito da existência da pessoa humana: A dignidade. E ela só é possível a partir do momento em que a sociedade se organiza politicamente e consegue assegurar a capacidade de o individuo se autodeterminar.

Em Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant traz à lume que:

A vontade é concebida como a faculdade de se determinar a si mesmo a agir em conformidade com a representação de certas leis. Ora aquilo que serve à vontade de princípio objectivo da sua autodeterminação é o fim, e este, se é dado pela só razão, tem de ser válido igualmente para todos os seres racionais (KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela – Lisboa: Edições 70, 2007, p. 67).

É dizer, a liberdade de o indivíduo se autodeterminar compõe o que entende por imperativo categórico: agir de forma que esse modelo possa ser adotado universalmente por todos os demais membros da sociedade.

Uma lei para ser válida e geral precisa ser igualmente aplicável a todos, sem exceções.

Depois, prossegue o filósofo da Prússia, o homem é um fim em si mesmo, não pode ter sua vontade instrumentalizada, não pode ser utilizado como meio para alguém alcançar algo, sem que ele tenha se autodeterminado a fazer parte desse movimento:

Ora digo eu: – O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas acções, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ter considerado simultaneamente como fim ( KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela – Lisboa: Edições 70, 2007, p. 67).

Se o homem não pode se autodeterminar, se não é livre para que sua vontade e sua manifestação atinja um fim em si mesmo, então, a dignidade não é protegida por aquele ordenamento, é, simplesmente, ignorado pela proteção que o Estado deveria conferir aos seus súditos.

A história da colonização do Brasil é uma saga de atrocidades. Indígenas foram escravizados pela coroa portuguesa e utilizados na grande empresa colonial de extrativismo de toda quanta sorte de recursos naturais existentes naquela realidade das índias.

Conforme narra Darcy Ribeiro, “quase sempre fez vista grossa à escravidão indígena, que desse modo se tornou inevitável, dado o caráter da própria empresa colonial, especialmente nas áreas pobre” (O povo brasileiro, p. 53).

Tempo depois à escravidão indígenas sobrepôs-se a escravidão dos negros, “foram trazidos principalmente da costa ocidentalafricana” (RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 113).

Calcula-se que no ano de 1800 já havia no Brasil 1.500.000 (um milhão e quinhentos mil) negros escravizados. Ao final, em 1888 quando é aprovada a Lei Áurea abolicionista da escravidão do Brasil, Darcy Ribeiro relata que estudos demonstram ter passado por essas terras nada menos que 3.216.800 negros que foram subjugados pela escravidão (O povo brasileiro, p. 162).

O fim da escravidão formal não colocou fim à escravidão de fato. Além dos negros que, uma vez excluídos da mercancia, sem ter como trabalhar foram aos poucos marginalizados da sociedade.

Em 1930 é aprovada a Convenção n. 29 da OIT – Organização Internacional do Trabalho, comprometendo-se todos os membros que a ratificaram em “suprimir o emprêgo do trabalho forçado ou obrigatório sob tôdas as suas formas no mais curto prazo possível”.

De acordo com dados atuais, ainda hoje aproximadamente 25 milhões de pessoas, incluindo mulheres, idosos e crianças são submetidos ao trabalho forçado. Não se trata mais da velha escravidão, mas de uma forma incruenta de submissão. A luta pela sobrevivência, pelo ganho pão diário, pela obtenção da mínima capacidade de subsistência. Crianças que trabalham para ajudar os pais não passarem fome. Idosos desamparados que se submetem a condições insalubres e perigosas. Sem dizer na escravidão sexual que assola a juventude e dissemina a gravidez irresponsável e a proliferação de doenças sexualmente transmissíveis.

No ano de 2.017, a ONU – Organização das Nações Unidas lançou a campanha http://50forfreedom.org/pt/, concitando os Estados a aderirem à campanha de combate ao trabalho escravo. O Brasil também foi convidado, no mês de maio do mesmo ano, em fazer parte da campanha.

Em contrapartida qual a resposta do Governo Federal?

No dia 16/10/2017 o Presidente Michel Temer fez publicar a Portaria 1.129 do Ministério do Trabalho, que confere ao Ministro de Estado do Trabalho a legitimidade para decidir pela inclusão ou não da empresa no cadastro de empregadores que mantém empregados em situação de escravo:

Diante da decisão administrativa final de procedência do auto de infração ou do conjunto de autos, o Ministro de Estado do Trabalho determinará a inscrição do empregador condenado no Cadastro de Empregadores que submetem trabalhadores a condição análoga às de escravo.

E mais, além de a classificação do empregador passar a ser uma decisão política e não jurídica, a portaria também contraria as normativas designadas pela ONU no combate à escravidão, reduzindo de forma drástica a caracterização do trabalho escravo:

“I – trabalho forçado: aquele exercido sem o consentimento por parte do trabalhador e que lhe retire a possibilidade de expressar sua vontade; II – jornada exaustiva: a submissão do trabalhador, contra a sua vontade e com privação do direito de ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais aplicáveis a sua categoria”.

Destaca-se que o consentimento da pessoa feita escrava não pode ser o argumento de ouro para a descaracterização do trabalho escravo, eis que em parte dos casos o trabalhador não tem a consciência dos direitos que lhe são resguardados, bem como tem medo e receio de denunciar e sofrer retaliação.

Causa espécie que a Presidência da República trata de tema tão caro ao trabalhador por meio de portaria, reduzindo drasticamente a proteção de um direito fundamental social que o trabalho livre.

Não há dúvidas quanto a incompatibilidade da medida com a Constituição Brasileira e os Tratados e OIT. Nesse compasso, certamente a portaria deverá sofrer o controle de constitucionalidade e o Brasil fica exposto à comunidade internacional e sujeito às sanções por conta de tal gravame governamental.

Cristiano Quinaia

Mestre em Direito - Sistema Constitucional de Garantia de Direitos (Centro Universitário de Bauru). Especialista LLM em Direito Civil e Processual Civil. Advogado.

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