sexta-feira,29 março 2024
ArtigosCelulares, câmeras, filmadoras e votação

Celulares, câmeras, filmadoras e votação

Tem sido alvo de polêmica a manifestação do Ministro do STF e Presidente do TSE, Alexandre de Moraes, o qual afirmou ser proibido portar celular no momento da votação, devendo ser tomadas as medidas legais cabíveis aos recalcitrantes e configurando-se, até mesmo, crime eleitoral.

Toda a celeuma existente sobre a questão é um exemplo por excelência de como a credibilidade (ou a falta desta) é importante para a autoridade de uma informação, orientação ou afirmação.

Na literatura e na sabedoria popular são muito comuns as narrações a respeito da perda de credibilidade e suas funestas consequências.

Alguns exemplos são ilustrativos:

Quando criança, minha mãe, como muitos outros pais, visando me incutir a noção de que a mentira é algo ruim, contou-me a história de um menino que fingia se afogar e, um dia, depois que seus familiares e amigos o foram socorrer várias vezes, sendo alvo de chacota por ele, veio a realmente afogar-se e pedir por socorro, mas morreu na frente de todos, sem que movessem uma palha, já que não mais acreditavam nele.

Também é conhecida a Fábula do Pastor Mentiroso e o Lobo:

Era uma vez um jovem pastor que costumava levar o seu rebanho de ovelhas para a serra a pastar. Como estava sozinho durante todo o dia, aborrecia-se muito. Então, pensou numa maneira de ter companhia e de se divertir um pouco. Voltou-se na direção da aldeia e gritou: “Lobo! Lobo!”. Os camponeses correram em seu auxílio. Não gostaram da graça, mas alguns deles acabaram por ficar junto do pastor por algum tempo. O rapaz ficou tão contente que repetiu várias vezes a façanha. Alguns dias depois, um lobo saiu da floresta e atacou o rebanho. O pastorzinho pediu ajuda, gritando ainda mais alto do que costumava fazer: “Lobo! Lobo!”. Como os camponeses já tinham sido enganados várias vezes, pensaram que era mais uma brincadeira e não o foram ajudar. O lobo pôde encher a barriga à vontade porque ninguém o impediu. Quando regressou à aldeia, o rapaz queixou-se amargamente, mas o homem mais velho e sábio da aldeia respondeu-lhe: “Na boca do mentiroso, o certo é duvidoso”.

Por derradeiro, vale lembrar o trágico caso narrado por Kierkegaard sobre “O Alarme do Palhaço”:
“Em certo teatro aconteceu ter deflagrado um incêndio nos bastidores. O palhaço veio avisar o público. Pensaram que se tratava de um dito espirituoso e aplaudiram-no; ele repetia o aviso; rejubilaram ainda mais”. E o resultado foi a morte de 700 pessoas, observando-se em rodapé da obra do autor que a narrativa provavelmente se refere a um incêndio muito noticiado ocorrido num teatro de São Petersburgo em 14 de fevereiro de 1836.

Em suma, quando uma informação ou afirmação vem de uma fonte não confiável ou sobre a qual se faz um julgamento prévio devido às suas características usuais, é comum que não faça o efeito desejado e não conte com acatamento, mesmo quando objetivamente se trate de algo verdadeiro e correto.

A vida pregressa do Ministro enfocado com seus constantes abusos e violações da lei e da Constituição, não é algo que contribua para sua credibilidade. Basta lembrar que logo depois do episódio aqui tratado, determinou buscas em residências de empresários, bloqueios de contas bancárias, bem como redes sociais, com base em mera notícia jornalística e em espécies de “Mapas Mentais” ou “Esquemas Sinópticos” sem qualquer sustento fático ou fundamento racional. Isso para não mencionar um empresário que foi incluído em investigação invasiva apenas porque clicou num emoji de “joinha” do Whatsapp. Não fosse tão séria a situação, sua puerilidade seria risível. E ainda tem mais: os bloqueios de contas bancárias e redes sociais não foram determinados sequer a pedido da Polícia Federal, mas sim do Senador Randolfe Rodrigues, um político que se gaba dizendo que seu Partido (Rede Sustentabilidade) vem substituindo a Procuradoria Geral da República, nos seguintes termos:

“No intervalo de tempo entre 2018 e 2022, na ausência do procurador-geral da República, um partido político chamado Rede Sustentabilidade assumiu essa função.”

É muito triste perceber que a credibilidade do Judiciário em geral e das mais altas Cortes brasileiras está em plena deterioração provocada pela conduta de seus membros mais destacados. E pior, que esses membros não têm, ao que parece, o menor zelo e apreço por essa necessária confiabilidade.

É por isso que quando um Ministro do STF e atual Presidente do TSE diz que não se pode portar celular durante a votação, isso soa como abusivo e sem sustentação, quando, na verdade, não é. Acontece que essa é uma das poucas vezes em que se vê o Ministro agindo normalmente de acordo com os ditames legais. Sua conduta anterior reiterada não contribui para que não seja reconhecido somente pelo seu autoritarismo, mas por sua autoridade derivada da legitimidade constitucional e legal. Tudo se opera como acontece com o “Menino Mentiroso”, com o “Pastor Brincalhão” e com o “Palhaço enredado em sua figura histriônica”. Alguém já disse que o Brasil não era um “país sério”, hoje se percebe que o Judiciário tem dificuldade de ser levado a sério.

O que aparenta, devido à fonte de onde vem, uma determinação autoritária, nada mais é do que o cumprimento de preceitos legais expressos da legislação eleitoral.

Determina o artigo 61 da Lei 9.504/97 (Lei das Eleições):

“A urna eletrônica contabilizará cada voto, assegurando-lhe o sigilo e inviolabilidade, garantida aos partidos políticos, coligações e candidatos ampla fiscalização” (grifo nosso).

Em derivação e para assegurar o segredo do voto, vem a lume no mesmo diploma o artigo 91 – A, Parágrafo Único, ali acrescido pela Lei 12.034/09, com os seguintes dizeres:

“Fica vedado portar aparelho de telefonia celular, máquinas fotográficas e filmadoras, dentro da cabina de votação” (grifo nosso).

O último dispositivo não deixa pairar a menor dúvida de que aquilo que foi dito por Alexandre de Moraes nada mais é do que a determinação de cumprimento de expresso comando legal, que tem sua razão de ser no fato de que o voto é secreto. O que se critica atualmente é que a apuração, por questões técnicas, acabe sendo também secreta, mas ninguém pretende afastar o sigilo do voto e abrir caminho para eleições dirigidas com votos comprados com emissão de recibo (fotos, filmagens etc.). O voto direto e secreto é indiscutivelmente Direito Político assegurado pela Constituição Federal (inteligência do artigo 14, “caput”, CF).

A doutrina especializada assim se manifesta há tempos sobre o tema tratado no Parágrafo Único do artigo 91 – A da Lei 9.504/97:

O parágrafo único impede que, no momento de votação, o eleitor ou quem quer que seja porte aparelho celular, máquina fotográfica ou filmadora.

O objetivo é simples: proteger o voto secreto e impedir que um eleitor possa comprovar, para quem quer que seja, que votou em determinado candidato ou de determinada forma.
Assim, um patrão que tenha obrigado seu funcionário a votar de determinada maneira não pode exigir que o empregado lhe leve, no telefone celular ou na máquina fotográfica, a prova de seu voto.

Na mesma linha, o Código Eleitoral (Lei 4.737/65), em seu artigo 312, prevê como crime a conduta de “violar ou tentar violar o sigilo do voto”. Note-se que se trata de infração penal denominada pela dogmática como “crime de atentado ou de empreendimento”, quando a forma tentada é equiparada à consumada. Isso significa dizer que deve ser interpretado em conjunto com a vedação do artigo 91 – A, Parágrafo Único da Lei 9.504/97, pois ao proibir a lei a entrada no local de votação, em especial na cabine secreta, com celulares, câmeras ou filmadoras, visa-se evitar qualquer violação efetiva ou mesmo tentativa de violação do sigilo da votação. Portanto, a objetividade jurídica do ilícito em estudo é a tutela do regular processo eleitoral, com vistas à sua “normalidade e legitimidade da votação”.

A compra de votos é também tipificada como crime, conforme consta do artigo 299 do Código Eleitoral:

“Dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita”.

Aqui se protege não somente a “normalidade e a legitimidade da votação” , como também, tal qual já exposto em decisões do TSE, “a liberdade de voto como bem da vida”.

Finalmente, a “captação ilícita de sufrágio” (infração administrativo – eleitoral) é descrita pelo artigo 41 – A da Lei 9.504/97 (Lei das Eleições), com previsão de sanções pecuniária e de cassação de registro da candidatura, na forma da legislação específica:
Constitui captação de sufrágio, vedada por esta Lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de multa de mil a cinquenta mil Ufir, e cassação do registro ou do diploma, observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990.

O § 2º. do artigo 41 –A em destaque também considera como “captação ilícita de sufrágio” o emprego de violência ou grave ameaça à pessoa para obtenção de seu voto, resultando, portanto, igualmente em ilícito administrativo – eleitoral, com as mesmas consequências sobreditas.

No âmbito criminal, o Código Eleitoral (Lei 4.737/65), em seu artigo 301, também prevê como crime eleitoral o uso “de violência ou grave ameaça para coagir alguém a votar, ou não votar, em determinado candidato ou partido”.

Todo esse arcabouço normativo que visa assegurar a normalidade e legitimidade da votação, o segredo do voto e, consequentemente, a consecução de eleições verdadeiramente livres, se coaduna perfeitamente com a proibição de acesso à cabine de votação com celulares, câmeras, filmadoras ou quaisquer aparelhos ou instrumentos que permitam o registro do voto e sua exibição ulterior a alguém que o tenha obtido por cooptação (compra) ou mesmo coação (violência ou grave ameaça).

Enfim, é de se reconhecer que neste caso específico não pecou o Ministro Alexandre de Moraes por qualquer ato arbitrário. Seus erros e malfeitos são antecedentes e o precedem, infelizmente, em suas manifestações, chegando a retirar o crédito de sua atuação, mesmo quando totalmente irretocável. Ademais, não somente o citado Ministro enseja esse clima de desconfiança e insegurança, mas o posicionamento de toda a Corte Suprema quanto à questão de possibilitar uma eleição transparente e totalmente auditável, mediante a emissão e coleta do voto impresso, devidamente armazenado sem contato com o eleitor. O intento suicida (em termos de liberdades democráticas) de pretender filmar o próprio voto deriva exatamente da perda da oportunidade de não somente ser honesto, mas “parecer” honesto com relação ao processo eleitoral adotado em nosso país. Nesse clima de desespero quanto à credibilidade das eleições, as pessoas não pensam corretamente e chegam a pretender colocar em risco o segredo do voto, direito subjetivo e concomitantemente público.

 


REFERÊNCIAS
AFINAL, quem disse em 1962 que “o Brasil não é um país sério”? Disponível em https://www.espacovital.com.br/publicacao-37883-afinal-quem-disse-em-1962-que-ldquoo-brasil-nao-e-um-pais-seriordquo , acesso em 30.08.2022.

BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal – Parte Geral. Volume 1. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

BERGAMO, Mônica. Moraes enfurece Governo Bolsonaro com operação da PF contra empresários. Disponível em https://www.gazetasp.com.br/brasil/moraes-enfurece-governo-bolsonaro-com-operacao-da-pf-contra/1113936/ , acesso em 30.08.2022.

CHRISTIAN, Hérica. Justiça Eleitoral Proíbe Uso de Celular por Eleitor na Hora da Votação. Disponível em https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2022/08/26/justica-eleitoral-proibe-uso-de-celular-por-eleitor-na-hora-da-votacao , acesso em 30.08.2022.

CONEGLIAN, Olivar. Eleições Radiografia da Lei 9.504/97. 7ª. ed. Curitiba: Juruá, 2012.

DESIDERI, Leonardo. Decisão que embasou operação contra empresários confirma abusos apontados por juristas. Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/quebra-de-sigilo-confirma-abusos-de-moraes-em-operacao-contra-empresarios/ , acesso em 30.08.2022.

EDUARDO Bolsonaro pede que PGR investigue ativismo judicial do Senador Randolfe. Disponível em https://www.radiopampa.com.br/eduardo-bolsonaro-pede-que-pgr-investigue-ativismo-judicial-do-senador-randolfe/ , acesso em 30.08.2022.

ESOPO. O Pastor Que Gostava de Brincar. In: ESOPO. Fábulas Completas. Trad. Neide Smolka. São Paulo: Moderna, 2012.

EVANGELISTA JÚNIOR, Osvaldo. Dos Crimes Eleitorais. In: JORGE, Higor Vinícius Nogueira, LEITÃO JÚNIOR, Joaquim, GARCEZ, William (Orgs.). Legislação Criminal Especial Comentada. Salvador: Juspodivm, 2021.

GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Crimes Eleitorais e Processo Penal Eleitoral. São Paulo: Atlas, 2012.

KIERKEGAARD, Soren. Ou – Ou Um Fragmento de Vida (Primeira Parte). Trad. Elisabete M. de Sousa. Lisboa: Relógio D’Água, 2013.

MORAES atendeu pedido de Randolfe para quebrar sigilo de bolsonaristas. Disponível em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/08/30/alexandre-moraes-randolfe-rodrigues.htm , acesso em 30.08.2022.

SPTZCOVSKY, Celso. Direito Eleitoral. 3ª. ed. São Paulo: RT, 2016.

THOMPSON, Aline. Dia da Mentira/Histórias que meu pai me contou. Disponível em http://odiariothompson.blogspot.com/2014/04/dia-da-mentira-historias-que-meu-pai-me.html , acesso em 30.08.2022.

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós Graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

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