quinta-feira,28 março 2024
ColunaCivilista de PlantãoCédula de crédito bancário, hermenêutica e prazo prescricional

Cédula de crédito bancário, hermenêutica e prazo prescricional

Breves considerações sobre a Cédula de Crédito Bancário enquanto título de crédito improprio e a legislação aplicável no cômputo do prazo prescricional.

Introdução

O próprio modelo de contrato de utilização de crédito denominado “cédula de crédito bancário (CCB)” evidencia que a origem do débito decorre de contrato tipicamente bancário, através de uma promessa de pagamento que o emitente faz a favor do banco em virtude de uma operação de crédito, podendo ser definida[1] como:

“Promessas de pagamento em dinheiro emitidas pelo cliente mutuante em favor de banco mutuário, cuja liquidez pode decorrer da emissão, pelo credor, de extrato de conta corrente ou planilha de cálculo. Além de facilitar e baratear o acesso ao crédito bancário, esses títulos dão ensejo à execução judicial em caso de inadimplemento”

Não obstante o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça expresso nas súmulas 233 e 258, as quais vedavam a execução do contrato de abertura de crédito, os bancos sempre tentaram atribuir força executiva aos contratos, com o objetivo de proporcionar maior confiabilidade e baratear operações de concessão de crédito.

Sendo assim, as cédulas de crédito bancário foram introduzidas no ordenamento jurídico pela Lei n. 10.931/2004, cujo artigo 28, caput, outorga a condição de título executivo extrajudicial que representa uma dívida líquida, certa e exigível, seja pela soma nela indicada, seja pelo saldo devedor demonstrado em planilha de cálculo, ou nos extratos da conta corrente e o artigo 44 diz que a ela se aplica, “no que não contrariar o disposto nesta Lei, a legislação cambial”.

Trata-se, portanto, de um título de crédito impróprio, porquanto, embora se encontrem disciplinados por um regime próprio ao das cambiais, são dotados de peculiaridades/especificidades estranhas ao regime jurídico-cambial.

Na lição de Fran Martins[2]:

“os direitos mencionados no título são sempre direitos de crédito. Com o evoluir dos tempos, alguns documentos tomaram as características de título de crédito sem, contudo, se referirem a verdadeiras operações de crédito pecuniário, em que há o gozo de dinheiro presente em troca de dinheiro futuro. Esse fato é natural, dada a importância que na vida cotidiana passaram a ter os títulos de crédito, tendo as normas que os caracterizam ultrapassado o campo do direito estritamente creditório para abranger outros direitos que beneficiam, assim, das regras e garantias daquele. Por isso tais títulos são chamados de impróprios…”

No caso específico da Cédula há que se observar o princípio da cedularidade. Como referido por Fabio Ulhoa Coelho[3]:

“os títulos de financiamento não se enquadram, completamente, no regime jurídico-cambial por força de algumas peculiaridades, como a possibilidade de endosso parcial, mas, principalmente, em razão do princípio da cedularidade, estranho ao direito cambiário. Por este princípio, a constituição dos direitos reais de garantia se faz no próprio instrumento de crédito, na própria Cédula…”

Observe-se, a propósito, que a Lei n. 10.931/04, em seu artigo 27 estabelece que:

“a Cédula de Crédito Bancário poderá ser emitida, com ou sem garantia, real ou fidejussória, cedularmente constituída. Parágrafo único. A garantia constituída será especificada na Cédula de Crédito Bancário, observadas as disposições deste Capítulo e, no que não forem com elas conflitantes, as da legislação comum ou especial aplicável”

Isto é, além de apresentar diversas características como a possibilidade de pactuação de juros capitalizados, transferência mediante endosso em preto, possibilidade ser objeto de protesto por indicação, a Cédula de Crédito Bancário pode ser emitida com garantia ou sem garantia. Havendo, deverá a mesma ser especificada na cédula.

A constituição da garantia, real ou fidejussória, pode ser feita na própria Cédula de Crédito Bancário ou em outro documento separado, mas mencionado na cédula.

Feitas estas breves considerações preliminares, passaremos a discutir a casuística proposta.

O prazo prescricional e a contextualização do tema

Como dito anteriormente, o artigo 44 da Lei n. 10.931 nos remete à legislação cambial. Por esta razão, a princípio, o prazo de prescricional da CCB seria o previsto no artigo 70 do Decreto n. 57.663/66 (Lei Uniforme de Genebra).

O prazo de três anos previsto na LUG coincide com o previsto no artigo 206, parágrafo 3º, inciso VIII, do Código Civil. Mas, frise-se que o Decreto n. 57.663 é lei especial, para os fins do artigo 903 do Código Civil. Vejamos:

Lei n. 10.931/2004:

“Art. 44. Aplica-se às Cédulas de Crédito Bancário, no que não contrariar o disposto nesta Lei, a legislação cambial, dispensado o protesto para garantir o direito de cobrança contra endossantes, seus avalistas e terceiros garantidores”

Lei Uniforme:

“CAPÍTULO XI DA PRESCRIÇÃO

Art. 70. Todas as ações contra o aceitante relativas a letras prescrevem em 3 (três) anos a contar do seu vencimento”

Código Civil:

“Art. 206. Prescreve:

§ 3o Em três anos:

VIII – a pretensão para haver o pagamento de título de crédito, a contar do vencimento, ressalvadas as disposições de lei especial”

Entretanto, oportuno observar que essa Convenção, promulgada pelo Decreto 57.663/66, se refere à adoção de uma lei uniforme em matéria de letras de câmbio e notas promissórias, ou seja, é aplicável a títulos de crédito próprios.

Ocorre que se considerarmos a concessão de crédito como o fornecimento de crédito (capital) para um indivíduo, possibilitando a este o acesso a bens e serviços, veremos que ceder crédito a uma pessoa que não possui condições de efetuar seu pagamento pode exigir uma série de negociações e, em algumas vezes, até fazer com que a empresa se responsabilize completamente pela dívida.

Visando garantia, celeridade e segurança, a sistemática dos títulos de crédito proporcionou o surgimento dos denominados títulos de crédito impróprios, isto é, títulos que apesar de estarem sujeitos a uma disciplina legal que aproveita, parcialmente, os elementos do regime jurídico-cambial, não podem ser considerados títulos de crédito.

Isso ocorre porque não se empregam, totalmente, os elementos que caracterizam o regime jurídico-cambial em sua disciplina.

Crava-se que a cédula de crédito bancária tem força de título executivo extrajudicial por força de Lei especial (artigo 28 da Lei n. 10.931/2004), não se confundindo com nenhum título de crédito.

Conclusão

As normas de nosso ordenamento jurídico devem harmonizar-se e, assim, o artigo 206, parágrafo 3º, inciso VIII, do Código Civil, ao fazer menção à pretensão para haver o pagamento de título de crédito, há que ser considerado como o exercício do direito do credor fundado em títulos de crédito próprios, enquanto que o prazo do seu parágrafo 5º, inciso I, é reservado para a pretensão embasada nos referidos títulos de crédito impróprios.

“Art. 206. Prescreve:

§ 5o Em cinco anos:

I – a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular”

Deste modo, o prazo prescricional para a execução relativa a contratos bancários, é de cinco anos, pois o artigo supramencionado estabelece tal lapso temporal para “a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular”.

Reprisa-se: a cédula de crédito bancário, nos termos do artigo 28, caput, da Lei n. 10.931/2004, constitui “título executivo extrajudicial e representa dívida em dinheiro, certa, líquida e exigível, seja pela soma nela indicada, seja pelo saldo devedor demonstrado em planilha de cálculo, ou nos extratos da conta corrente, elaborados conforme previsto no parágrafo segundo”.

Confiram-se os precedentes das Câmaras de Direito Privado do E. Tribunal de Justiça de São Paulo:

“(…) PRELIMINAR – PRESCRIÇÃO – A Cédula e Crédito Bancário é título executivo extrajudicial, e representa dívida líquida, certa e exigível descrita em instrumento particular – Aplicação do art. 585, VIII, do CPC, c.c. Lei 10.931/04 – Prazo quinquenal – Previsão do art. 206, § 5º, I, do Código Civil – Prescrição inocorrente – Precedentes do C. STJ e deste E. TJSP Preliminar rejeitada (…)” (TJSP, 15ª Câmara de Direito Privado, Apelação n° 0027014-85.2011.8.26.0482, Rel. Des. José Wagner de Oliveira Melatto Peixoto, j. em 15/09/2015).

“CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO – AÇÃO DE EXECUÇÃO – PRAZO PRESCRICIONAL – TERMO INICIAL – O prazo de prescrição para a pretensão de cobrança da dívida é contado da data de vencimento contratualmente estabelecida, mesmo que, em razão do inadimplemento, possa o credor considerar a dívida vencida antecipadamente – Em se tratando, ademais, de título de crédito impróprio, como é o caso da Cédula de Crédito Bancário, o prazo prescricional a ser observado é o do art. 206, § 5º, I do CC – Preliminar rejeitada (…)” (TJSP, 15ª Câmara de Direito Privado, Apelação n° 1002734-07.2014.8.26.0004, Rel. Des. Luiz Arcuri, j. em 25/06/2015).

“Recurso de apelação. Cédula de crédito bancário. Prescrição intercorrente não configurada. Prazo prescricional de cinco anos, nos termos dos artigos 28 da Lei n. 10.931/04 e do artigo 206, §5º, I, CC. Recurso desprovido” (TJSP, 12ª Câmara de Direito Privado, Apelação n° 0044765-16.2011.8.26.0602, Rel. Des. Lidia Conceição, j. em 09/04/2014).

“Prescrição. Cédula de Crédito Bancário. Incidência do Código Civil e não da Lei Uniforme (Decreto n. 57.663/66). Contrato que não se confunde com título cambial. Prazo prescricional trienal inaplicável. Incidência do prazo de 5 (cinco) anos (art. 206, § 5º, I, do CC). Lapso temporal não consumado. Preliminar rejeitada (…)” (TJSP, 11ª Câmara de Direito Privado, Apelação n° 0027959-75.2012.8.26.0114, Rel. Des. Rômolo Russo, j. em 07/11/2013).

“Execução contra devedor solvente – Cédula de Crédito Bancário – Alegação da ocorrência de prescrição em embargos do devedor Tese acolhida, com fundamento no art. 206, § 3º, inc. VIII, do Código Civil – inadmissibilidade – Prescrição quinquenal – Aplicação da regra do art. 206, § 5º, inc. I, do Código Civil de 2002 Precedentes desta Corte – Extinção afastada. Recurso provido” (Apelação nº 0030524-70.2012.8.26.0224, 19ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. SEBASTIÃO JUNQUEIRA, j. 04/03/2013).

“Apelação Embargos à execução. Cédula de crédito Bancário (…) Aplicação do art. 206, § 5º, inciso I, do atual Código Civil, que prevê o prazo prescricional de cinco anos para a cobrança de dívida líquida constante de instrumento particular. Recurso provido” (Apelação nº 0011534-83.2011.8.26.0606, Rel. Des. MAURO CONTI MACHADO, j. 17/12/2012).

“A prescrição para a cobrança de Cédula de Crédito Bancário é de 05 anos, nos termos do artigo 206, § 5º, inciso I do novo Código Civil. Sentença mantida. RECURSO NÃO PROVIDO” (Apelação nº 0002376-81.2010.8.26.0624, 18ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. JURANDIR DE SOUSA OLIVEIRA, j. 17/07/2013).

Em face desta celeuma não está aqui se cogitando de haver uma antinomia, tampouco se fazer lobby em favor de determinado setor/segmento da atividade econômica.

Defendemos a necessidade de se interpretar a Lei de forma lógica e sistemática, com o escopo de garantir a própria unidade, coerência e coesão do ordenamento jurídico e, consequentemente, a tão almejada segurança jurídica.

Norberto Bobbio[4] apresenta os pressupostos do ordenamento jurídico: único, coerente e completo, capaz de superar todas as antinomias e lacunas verificáveis, sem perder a autonomia.

Com efeito, e, realçando-se a importância da hermenêutica na aplicação do Direito, o prazo prescricional aqui defendida é oriunda de uma interpretação lógica e sistemática do ordenamento jurídico.

Leciona Maximiliano[5]:

“O processo Lógico propriamente dito consiste em procurar descobrir o sentido e o alcance de expressões do Direito sem o auxílio de nenhum elemento exterior, com aplicar ao dispositivo em apreço um conjunto de regras tradicionais e precisas, tomadas de empréstimo à lógica geral. Pretende do simples estudo das normas em si, ou em conjunto, por meio do raciocínio dedutivo, obter a interpretação correta”

“Consiste o Processo Sistemático em comparar o dispositivo sujeito a exegese, com outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto. Por umas normas se conhece o espírito das outras. Procura-se conciliar as palavras antecedentes com as consequentes, e do exame das regras em conjunto deduzir o sentido de cada uma”

Nessa medida, a cédula de crédito bancária não se confunde com título cambial. Portanto, o prazo prescricional para a execução relativa a contratos bancários é de cinco anos, pois o artigo 206, parágrafo 5º, inciso I, do Código Civil, estabelece tal lapso temporal para “a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constante de instrumento público ou particular”, harmonizando-se ao disposto nos artigos 28 e 44 da Lei n. 10.931/2004.

Referências Bibliográficas

[1] COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Volume 01, 9ª edição, p. 477, Saraiva: São Paulo, 2005.

[2] MARTINS, Fran. Títulos de Crédito, volume I, 7ª ed., p. 07, Forense: Rio de Janeiro, 1992.

[3] COELHO, Fabio Ulhoa. Manual de Direito Comercial, 10ª ed., p. 283, Saraiva: São Paulo, 1999

[4] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora UNB, 1999, p. 22; PASOLD, Cesar Luiz. Ensaio sobre a ética de Norberto Bobbio. Florianópolis: Conceito, 2008.

[5] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Editora forense, 17ª edição. Pág. 123 e 128.

Advogado e Consultor. Pós-Graduado em Direito Societário pelo Instituto Insper (SP), com Especialização em Direito Processual Civil pela Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP (Lato Sensu). Atua nas áreas de Direito Empresarial, Societário, Direito Bancário e Recuperação Judicial. Autor de diversos trabalhos científicos publicados na área.

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