quinta-feira,28 março 2024
ColunaElite PenalCaptação ambiental clandestina e sua legalidade como meio de obtenção de prova

Captação ambiental clandestina e sua legalidade como meio de obtenção de prova

A Lei 13.964/19, mais conhecida como “Pacote Anticrime”, resolveu um incômodo problema que perdurava desde a Lei 9.034/95, primeiro diploma normativo que se dispôs a tratar de organizações criminosas. Entre as ferramentas de enfrentamento a esse tipo de criminalidade se destacava a “captação ambiental”. Ocorre que a lei em questão não regulamentou os meios de obtenção de prova nela indicados, resultando, naturalmente, na sua ineficácia.

Com o advento na Lei 12.850/13 o combate à criminalidade organizada avançou significativamente, uma vez que, através dela, o legislador regulamentou as principais técnicas especiais de investigação, como a colaboração premiada (sensivelmente alterado pelo “Pacote Anticrime”), a infiltração de agentes e a ação controlada. Destaque-se, todavia, que na sua redação original a lei não regulamentou a captação ambiental, sendo esta falha corrigida pela Lei 13.964/19, que detalhou seu procedimento na Lei de Interceptação Telefônica (Lei 9.296/96).

Doravante, o regime jurídico da Captação Ambiental encontra-se no artigo 8º-A, da Lei 9.296/96, sendo que neste estudo o nosso objetivo é buscar a melhor interpretação para a norma constante no seu §4º, inicialmente vetado pelo Presidente da República, mas cujo veto foi “derrubado” pelo Congresso Nacional, gerando, destarte, uma enorme polêmica sobre a sua aplicação.
O dispositivo em questão prevê que a “captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação”. Nas razões do veto foi pontuado o seguinte:

A propositura legislativa, ao limitar o uso da prova obtida mediante a captação ambiental apenas pela defesa, contraria o interesse público uma vez que uma prova não deve ser considerada lícita ou ilícita unicamente em razão da parte que beneficiará, sob pena de ofensa ao princípio da lealdade, da boa-fé objetiva e da cooperação entre os sujeitos processuais, além de se representar um retrocesso legislativo no combate ao crime. Ademais, o dispositivo vai de encontro à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que admite utilização como prova de infração criminal a captação ambiental feita por um dos interlocutores, sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público, quando demonstrada a integridade da gravação (v.g. Inq-QO 2.116, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão: Min. Ayres Britto, publicado em 29/02/2012, Tribunal Pleno).

Ao que nos parece, a manutenção do veto presidencial pouparia a nossa doutrina e jurisprudência da missão de delimitar o alcance da norma e sua validade como meio de obtenção de prova. Contudo, diante da sua vigência só nos resta enfrentá-la e buscar a interpretação mais condizente com a Constituição da República.

Primeiramente, deve-se observar que o legislador foi infeliz ao trazer uma previsão que envolve o conceito de “gravação clandestina” em um dispositivo que regulamenta outro meio de obtenção de prova, qual seja, a “captação ambiental”. Não por acaso, o artigo 10-A, da Lei 9.296/96, que criminaliza a “captação ambiental ilegal”, estabelece no seu §1º que “não há crime se a captação é realizada por um dos interlocutores”, referindo-se, a toda evidência, à “gravação ambiental”.

Nesse ponto, vale recordar que na “gravação ambiental” (clandestina), a comunicação objeto da captação se desenvolve diretamente entre presentes em um ambiente específico, público ou privado, sem o intermédio de qualquer meio de comunicação e é registrada diretamente por um dos interlocutores, sem o conhecimento do outro.

Sobre a legalidade da fonte de prova obtida através da gravação clandestina (telefônica ou ambiental), a doutrina de forma pacífica se posiciona pela sua licitude nas hipóteses em que ela serve para comprovar a inocência de uma pessoa investigada/acusada ou quando o responsável pela gravação está sendo vítima de um crime.

Sem embargo dos posicionamentos contrários à utilização da gravação clandestina (ambiental ou telefônica) como meio de obtenção de prova, entendemos que o tema deve ser discutido de acordo com o caso concreto, à luz do princípio da proporcionalidade. Deve-se, portanto, perquirir se o sacrifício ao direito à intimidade da pessoa gravada de forma sub-reptícia se justifica diante da finalidade da gravação. Em outras palavras, é imprescindível que os bens jurídicos em confronto sejam sopesados, dando-se preferência aquele de maior relevância.

Demais disso, não podemos olvidar que a gravação de uma conversa não se confunde com a sua divulgação. É a divulgação que viola o direito à intimidade e não a gravação, afinal, as informações compartilhadas com a pessoa responsável pelo registro da comunicação ocorrem de maneira espontânea, sem qualquer tipo de coação ou engodo. Sendo assim, havendo justa causa (juízo de proporcionalidade), tais informações podem perfeitamente ser utilizadas como prova. Ora, se uma pessoa pode prestar testemunho sobre uma conversação da qual ela fez parte, por que uma gravação do mesmo diálogo seria considerada ilícita?!
Nesse diapasão é o escólio de AVOLIO:

O que a lei penal veda, tornando ilícita a prova decorrente, é a divulgação da conversa sigilosa, sem justa causa. A “justa causa” é exatamente a chave para se perquirir a licitude da gravação clandestina. E, dentro das excludentes possíveis, é de se afastar – frise-se – o direito à prova. Os interesses remanescentes devem ser suficientemente relevantes para ensejar o sacrifício da privacy. Assim, por exemplo, a vida, a integridade física, a liberdade, o próprio direito à intimidade e, sobretudo, o direito de defesa, que se insere entre as garantias fundamentais. Ocorrendo, pois, conflito de valores dessa ordem, a gravação clandestina é de se reputar lícita, tanto no processo criminal como no civil, independentemente do fato de a exceção à regra da inviolabilidade das comunicações haver sido regulamentada.

Frente ao exposto, podemos concluir o seguinte: a-) gravação telefônica não se confunde com interceptação telefônica e, portanto, não se submete ao rito da Lei 9.296/96 e, consequentemente, não depende de autorização judicial; b-) a gravação clandestina (telefônica ou ambiental) é considerada prova lícita, especialmente quando se predestina a fazer prova em inquérito ou em processo a favor do responsável pela gravação ; c-) a gravação clandestina será ilícita quando houver causa legal de sigilo ou de reserva de conversação (dever de guardar segredo); d-) a análise da licitude da prova obtida através de gravação clandestina deve ser feita de acordo com o caso concreto à luz do princípio da proporcionalidade.

Fixadas essas premissas, resta evidenciado que a inovação legislativa promovida pelo “Pacote Anticrime”, se mal interpretada, vai de encontro com a doutrina e jurisprudência, limitando a utilização da “gravação clandestina” apenas nos casos em que o registro da comunicação é utilizado em benefício da defesa. Nesse sentido, são valiosas as lições de ALBECHE, se não, vejamos:

Para além dessas aparentes incongruências, a previsão apresenta inconstitucionalidade latente. A uma, porque, se pretende limitar a utilização da gravação ambiental à defesa, constitui-se em ofensa ao princípio da paridade de armas. As provas licitamente colhidas e produzidas podem ser utilizadas por ambas as partes, enquanto as ilícitas, apenas pela defesa como último recurso a demonstrar sua inocência ou eventual injustiça da decisão.

Contudo, quando coligidas de maneira idônea, as provas podem ser utilizadas tanto pela acusação quanto pela defesa. Se pensarmos esta configuração no âmbito da fase judicial, limitar o resultado da obtenção da prova à utilização exclusiva como matéria de defesa ofende o princípio da comunhão das provas, segundo o qual as partes produzem as provas que entendem pertinentes, mas, uma vez juntadas ao processo, a todos pertencem. Dessa forma, a ofensa ao princípio da comunhão das provas e a aparente proibição de utilização pela acusação ofende o princípio do devido processo legal.
De fato, ao limitar a utilização desse meio de prova em benefício da defesa, a regra viola uma premissa básica da persecução penal: a paridade de armas. Fere, ademais, o interesse público no correto esclarecimento da notitia criminis. Ora, a legalidade de uma prova não pode ser avaliada sob o prisma daquele que dela se beneficia. Uma vez obtida legalmente, a prova deve servir à Justiça, seja em prejuízo do réu ou em seu benefício.

Situação completamente distinta é aquela em que a prova é obtida ilegalmente, hipótese em que a maioria da doutrina a admite em benefício da defesa com base no princípio da proporcionalidade. Isto, pois, neste caso prevaleceria o interesse público na correta aplicação da Lei Penal, evitando-se uma injustiça!
Com efeito, por violar os princípios da proporcionalidade, da paridade de armas, da comunhão de provas e, sobretudo, o princípio da supremacia do interesse público, só se pode concluir pela inconstitucionalidade do artigo 8º-A, §4º, da Lei 9.296/96!

Outra alternativa seria conferir ao dispositivo legal a interpretação no sentido de que o objetivo do legislador foi apenas reforçar a validade da “gravação ambiental” pela defesa, mas desde assegurada a integridade do registro. Nesse contexto, a inovação legislativa é absolutamente desnecessária, pois qualquer fonte de prova deve ter a sua cadeia de custódia preservada, nos termos do artigo 158-A, acrescentado ao CPP pelo “Pacote Anticrime”.

Do contrário, se admitirmos que a “gravação ambiental” só poderia ser utilizada pela defesa, uma vítima de concussão ou de extorsão mediante sequestro não poderia se valer dessa prova para demonstrar a investida do criminoso, o que, conforme já salientado, vai de encontro ao entendimento consolidado na doutrina e na jurisprudência.

Outra saída para contornar a inconstitucionalidade e até mesmo a falta de bom-senso da legislação é fazer uma interpretação ampla da palavra “defesa”, ou seja, significando não somente a atuação do investigado, acusado ou seus defensores na persecução penal, mas abrangendo qualquer conduta em que um indivíduo aja em “defesa” de seus direitos ou interesses, como é exatamente o exemplo sempre indicado pela doutrina e jurisprudência daquele que é vítima de um crime e efetua uma gravação para comprovação dessa situação, agindo, pode-se dizer, até mesmo, em “legítima defesa” de bens jurídicos postos em jogo. Parece-nos que a interpretação desse infeliz dispositivo não pode jamais fugir desse norte, sob pena de inconstitucionalidade por insuficiência protetiva e até mesmo da caracterização de uma norma produzida sem o mais mínimo bom-senso.

Adotando tese semelhante a nossa, ARAS e SUXBERGER sustentam que a validade ou não da captação ambiental dependerá da existência de orientação por parte de agentes estatais. Em suma, os autores defendem que se a vítima de um crime, por iniciativa própria e buscando defender seus direitos, realizar a captação, a prova será lícita. Mas se o registro for realizado após a orientação do MP ou da Polícia, a prova será ilícita, pois a vítima estaria agindo como uma espécie de longa manus do Estado. Pela relevância da tese, vale a sua transcrição:

Se a vítima ou o seu representante legal agir por iniciativa própria, para defender seus direitos ou interesses ou os de quem represente (um filho menor ou um curatelando, por exemplo), a gravação, na modalidade captação, é válida e poderá ser admitida em juízo. Se íntegra, poderá ser valorada pelo juiz. Como já lembramos, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, II, da CF). Nenhuma lei precisa autorizar um cidadão a defender os seus próprios interesses. As gravações de conversa própria, mesmo quando unilaterais, sem o conhecimento do interlocutor, não se sujeitam à Lei 9.296/1996.

Mas para o Estado não é assim. Por isto mesmo, uma gravação não será aceitável em juízo, se resultar de orientação estatal com o propósito de produzir-se prova para a persecução criminal. É que, em tal situação, o autor da gravação, seja a vítima ou outrem, terá agido como longa manus do Estado, ou seja, como seu agente. Nesta circunstância, isto é, quando o Ministério Público ou a Polícia têm conhecimento prévio da situação ilícita a ser capturada em áudio ou em vídeo e orientam a vítima a realizar a gravação ou a auxiliam a fazê-lo, é necessária prévia autorização judicial para a consumação dessa diligência. Aquilo que era uma captação – uma gravação feita por um dos interlocutores, sem intromissão de estranhos ao diálogo – transmuda-se em interceptação, porque agora há um terceiro observador, que não intervém na comunicação, mas a monitora, com um fim específico: a persecução penal. Assim, deve incidir o princípio da legalidade (art. 5º, inciso II, da CF), do que resulta a aplicação do inciso XII do mesmo artigo e a necessária observância do procedimento probatório previsto na Lei 9.296/1996.

Como se pôde perceber, existem inúmeros argumentos que viabilizam a correta interpretação da norma sem que seja necessário declarar a sua inconstitucionalidade. O que não se pode conceber é que a Captação Ambiental Unilateral (Gravação Clandestina) seja admitida como prova apenas pela defesa, sendo imprescindível a manutenção do entendimento de que tal expediente também possa servir à acusação. Esperamos que seja esta a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal.

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós Graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

Francisco Sannini

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor da Pós-graduação da UNISAL/Lorena. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Autor de livros jurídicos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo. Titular do primeiro Setor de Combate à Corrupção, Organização Criminosa e Lavagem de Dinheiro (SECCOLD) do Estado de São Paulo.

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