sexta-feira,29 março 2024
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Bela, recatada e do lar

Parece-nos que circulou recentemente, e assustadoramente se diga, em pleno ano de 2016, uma revista oriunda dos ideológicos editoriais da década de 50 do século passado. Para entender melhor o pensamento daquelas edições, em brilhante artigo sobre o tema, Carla Bassanezi lembra que as revistas dessa época “classificavam as jovens em moças de família e moças levianas. Às primeiras, a moral dominante garantia o respeito social, a possibilidade de um casamento-modelo e de uma vida de rainha do lar – tudo o que seria negado às levianas” (1997, p. 610).

Pensamento similar foi esboçado pela revista Veja na matéria “Bela, recatada e do lar”, onde se prestigiou o comportamento prendado da consorte do Vice-Presidente Michel Temer pelas virtudes colocadas como título da reportagem, alçando a figura foco da matéria como uma mulher de perfil idealizado.

Não há nada de ruim em perceber que a dama em questão tem os traços apontados na matéria. O cerne do problema mesmo está em conceber que ainda se exija da mulher tais características para ser exemplar.

Sabemos que, por longo tempo de existência da civilização, a mulher se viu afastada do domínio público de atividades, preterida em favor do homem, estigmatizada como elemento obstrutor do desenvolvimento social, quando na verdade, era a própria sociedade quem lhe impunha obstáculos à realização plena (SAFFIOTI, 2013).

Em terras brasileiras, nada se fez diferente em comparação ao resto do mundo. O Brasil absorveu a concepção de mulher como dona de casa por excelência, prisioneira do lar e submetida aos caprichos ora de seu pai, ora de seu marido.

Repetia-se como algo ideal, nos tempos coloniais, que havia apenas três ocasiões em que a mulher poderia sair do lar durante toda sua vida: para se batizar, para se casar e para ser enterrada. (…) um viajante, Froger, de passagem por Salvador em 1696, achava que ali as mulheres “são de dar pena, pois jamais veem ninguém e saem apenas aos domingos, no raiar do dia, para ir à igreja”. (…) o arcebispo daquela cidade queixava-se de que os pais proibiam as moças até de assistir às devotas lições no Colégio das Mercês, das ursulinas (…). (ARAÚJO, 1997, p. 49).

Durante a construção de sua sociedade, o Brasil guardou uma férrea doutrinação ao comportamento feminino, ditando-lhe regras de postura, de moral e até impondo-lhe o que deveria desejar. Por exemplo, se aos homens era facultado trabalhar à noite, pelas mesmas leis trabalhistas a mulher somente laboraria noturnamente se provasse ter bons antecedentes (DELGADO, 2013). Por tudo isso, exemplo de mulher de qualidade em nosso país, lamentavelmente, impõe à mulher que encarne a “Amélia”, da composição de Mário Lago:

Nunca vi fazer tanta exigência/ Nem fazer o que você me faz/ Você não sabe o que é consciência / Nem vê que eu sou um pobre rapaz/ Você só pensa em luxo e riqueza/ Tudo o que você vê, você quer/ Ai, meu Deus, que saudade da Amélia/ Aquilo sim é que era mulher/ Às vezes passava fome ao meu lado/ E achava bonito não ter o que comer/ E quando me via contrariado/ Dizia: Meu filho, que se há de fazer/ Amélia não tinha a menor vaidade/ Amélia é que era mulher de verdade[1]

A concepção de que tais requisitos comportamentais femininos sejam essenciais à postura de uma mulher restringe a independência e a liberdade de escolha das mulheres sobre os rumos de sua própria vida e personalidade, condicionando-a a limites frutos de velhos estereótipos e constantemente instigada, de tempos em tempos, por veículos de comunicação, com o sub-reptício propósito de perpetuar a cultura de subordinação feminina e perpetuação de uma sociedade patriarcal.

O que seria uma mulher recatada? Seria uma mulher que nega seu desenvolvimento intelectual e autonomia profissional em favor da manutenção de um casamento como sinônimo da felicidade? Sim, segundo a revista Jornal das Moças, em 29 de outubro de 1959, ao noticiar que “se as mulheres de inteligência e cultura superior considerarem o casamento como sua vocação primordial, não perderão a sua batalha na conquista do amor e da felicidade” (BASSANEZI, 1997, p. 626).

O requisito de ser “do lar” é ainda mais contraditório diante de todo o histórico social vivido pelo sexo feminino, onde o lar sempre teve mais contornos de uma prisão do que de local de realização pessoal. Foi graças à sociabilidade do contato com as ruas realizado pelas mulheres de baixa renda que rendeu progressos de liberdade às mulheres.

Enquanto era imperioso que a mulher, para ser honesta e conforme as regras da moral social vigente, devesse se guardar aos aposentos do lar e evitar sair de casa, para as mulheres negras, alforriadas ou escravas, e às de condição menos abastada, a rua (metáfora aqui do espaço público) era o lugar onde a sociedade aceitava que estivessem (RAGO, 1997).

E se a rua simbolizava o espaço do desvio e tentações, de nada adiantava exigir do grupo feminino de classes pobres que se recolhessem às suas casas, sendo tal dever impossível de cumprimento “pelas mulheres pobres que precisavam trabalhar e que para isso deviam sair às ruas à procura de possibilidades de sobrevivência” (SOIHET, 1997, p. 365).

Foram elas, as mulheres pobres, negras, prostitutas, as ocupantes de cargos cujas funções eram consideradas menos importantes nos campos produtivos que lhe eram abertos, as atiradas às ruas pelo desprestígio público que as considerava imerecidas de constituírem famílias, enfim, todas essas relegadas à vala do desprezo da moral familiar, as verdadeiras libertadoras das amarras do cárcere que foi construído em torno da suposta devoção do lar tão propagada pela sociedade e recriada e alimentada pela mídia. Nenhuma vitória em prol da independência social, profissional e econômica da mulher adveio da manutenção desta ao lar. A submissão aos desmandos do patriarca da família sempre foi a infeliz recompensa às esposas prendadas domésticas.

Daí que, numa deplorável matéria, uma revista contemporânea repete a louvação da mulher contida e devotada à sua família como monumento espelhável às demais, em notório contraste ao passado que ainda bate às portas de muitas mulheres no país, apontando as mazelas decorrentes da discriminação feminina nas oportunidades de emprego (http://classificados.folha.uol.com.br/empregos/2016/01/1719987-alem-da-discriminacao-mulher-enfrenta-barreiras-pessoais-para-crescer-na-carreira.shtml), educação e outros mais setores, tudo somado às consequências acentuadas por essa permanência impositiva da mulher no seio doméstico, sem contar o circo dos horrores que têm se tornado os lares brasileiros a despeito dos dez anos da Lei Maria da Penha (http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/06/02/mulheres-sofrem-mais-violencia-de-pessoas-conhecidas-das-vitimas-diz-ibge.htm).

No ordenamento jurídico atual, não é demais lembrar o direito inserido no artigo 6º, item “b” da Convenção de Belém do Pará:

O direito de toda mulher a ser livre de violência abrange, entre outros:

b. o direito da mulher a ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento e costumes sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade ou subordinação.

Os veículos de comunicação não ficaram de fora da obrigação de colaborar na extirpação dessa violência contra a mulher que constitui a reiterada preservação de conceitos estereotipados femininos. Segundo artigo 8º da mesma Convenção, cumpre ao Estado não mais ser conivente, mas “incentivar os meios de comunicação a que formulem diretrizes adequadas de divulgação, que contribuam para a erradicação da violência contra a mulher em todas as suas formas e enalteçam o respeito pela dignidade da mulher“, ao mesmo tempo em que deverá “modificar os padrões sociais e culturais de conduta de homens e mulheres, inclusive a formulação de programas formais e não formais adequados a todos os níveis do processo educacional, a fim de combater preconceitos e costumes e todas as outras práticas baseadas na premissa da inferioridade ou superioridade de qualquer dos gêneros ou nos papéis estereotipados para o homem e a mulher, que legitimem ou exacerbem a violência contra a mulher“.

Seguir a cartilha pregada pela revista a qual tentou imitar, sem criatividade, matéria da década de 50 consiste, certamente, num retrocesso social às conquistas femininas. É desrespeitar o futuro das mulheres, enaltecendo um inglório passado (e de enaltecimentos a passados terríveis, já basta a menção de torturadores na Câmara dos Deputados).

É algo para se esquecer, assim como diversas outras publicações sobre o assunto lançadas em nosso país – fato que não só representa a degradação odiosa da opinião da mídia, mas o deszelo com a história das mulheres.

E para arrematar, constitui a apoteose do entristecimento que a matéria tenha sido escrita por ninguém menos que uma mulher. Num país de raízes misóginas que lhe renderam uma condenação internacional pelo desprestígio que (ainda) oferece às suas cidadãs, é sempre atual a advertência de Simone de Beauvoir de que “o Opressor não seria tão forte se não tivesse ‘cúmplices’ entre os próprios Oprimidos”.

 

Notas Necessárias:

P.S.¹: Quer dialogar algo sobre a história de luta das mulheres? Por favor, leia “História das Mulheres no Brasil”, da organização de Mary Del Priore, leitura básica e fundamental nesta seara – além de todas as obras de Simone de Beuavoir, Heleieth Saffioti, entre tantas outras expoentes do tema que posso indicar.

P.S.²: Se você achar que já leu alguma coisa idêntica provavelmente é porque esse artigo é produto de alguns escritos anteriores, como da monografia “Para meter a colher, tem que escolher certo o talher: um estudo sobre a (in)efetividade do direito penal para coibir os fatores causais da violência doméstica na cidade de Feira de Santana”, sob a orientação do prof. e promotor de justiça Cláudio Jenner de Moura Bezerra, disponível na Biblioteca da Universidade estadual de Feira de Santana/BA (ou nos arquivos departamentais de depósito dos trabalhos de conclusão do curso de Direito desta Academia, mas a leitura é in locu), bem como do artigo vencedor do I prêmio Carlos Henrique Cruz, “O trabalho no século XXI ‘veste rosa’: o empoderamento feminino como fator de evolução das relações individuais do trabalho rumo à igualdade de gênero”, disponível na internet (não sei como achar, mas dando um “google” pelo nome do artigo dizem que se acha o trabalho). Todos de minha autoria. É autoplágio? Sim, mas pode!

P.S.³: Esse artigo vai em homenagem às minhas amigas Michele Dórea, Elaine Lídia, Alana Santiago, Raissa Fonseca e todas as tantas outras que repudiaram veementemente a matéria aqui focada neste artigo e encheram meu feed de notícias da rede social a ponto de me inspirar a escrever algo sobre o assunto.

 


REFERÊNCIAS

 

ARAÚJO, E. A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia. In: História das Mulheres no Brasil. PRIORE, Mary Del (org). São Paulo: Editora Contexto, 1997.

BASSANEZI, C. Mulheres dos anos dourados. In: História das Mulheres no Brasil. PRIORE, Mary Del (org). São Paulo: Editora Contexto, 1997.

DELGADO, M. G. Curso de Direito do Trabalho. 11. Ed. São Paulo: Editora LTR, 2012.

LAGO, Mário; ALVES, Ataulfo. Ai, que saudades de Amélia. Ano 1941. Disponível em: http://www.vagalume.com.br/ataulfo-alves/ai-que-saudades-da-amelia.html. Acesso em 26 jan. 2014.

RAGO, M. Trabalho feminino e sexualidade. In: História das Mulheres no Brasil. PRIORE, Mary Del (org). São Paulo: Editora Contexto, 1997.

ROSALDO, M; Z.  LAMPHERE,  L. (org) A Mulher, a Cultura e a Sociedade. Trad. de: Cila Ankier e Rachel Gorenstein. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

SAFFIOTI, H. A mulher na sociedade de classes: Mito e realidade. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2013.

SOIHET, R. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: História das Mulheres no Brasil. PRIORE, Mary Del (org). São Paulo: Editora Contexto, 1997.

 

 

 [1] LAGO, Mário; ALVES, Ataulfo. Ai, que saudades de Amélia. Ano 1941. Disponível em: http://www.vagalume.com.br/ataulfo-alves/ai-que-saudades-da-amelia.html. Acesso em 26 jan. 2014.

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