quinta-feira,28 março 2024
ColunaDiálogos ConstitucionaisBauman e os moradores de rua: Decreto do Dória

Bauman e os moradores de rua: Decreto do Dória

No último dia 09 perdemos um dos mais lúcidos sociólogos da atualidade, o polonês Zygmunt Bauman, de extensa produção científica, autor do best-seller sobre a modernidade, vida e tempos líquidos.

Uma obra que consta menos no ranking das livrarias, mas, que igualmente é fruto de impecável linguagem científica e ineditidade, é Vidas Desperdiçadas. Não dá pra conhecer o Bauman sem ler essa obra sobre globalização e os problemas do novo mundo.

Confesso, que de todas as obras é a minha preferida, pois, enfrenta o problema que muitos ignoram: o excesso. E Bauman não faz a leitura puramente anticapitalista, porque a economia não é um problema, deve apresentar a solução.

O problema é profundo: é de moralidade, de dignidade. A vida tornou-se algo dispensável, manipulável geneticamente, alvo de endemias e pandemias, e, realmente, o homem tornou-se um excesso no mundo.

Estamos próximos de 8 bilhões de habitantes no planeta. O que vamos fazer? Sem água? Comida? Moradia?

O velho paradigma do contrato social não estava pronto pra isso. Não há como conceber a ideia de construção de um acordo com um número de agentes desse montante, de fato, estamos sofrendo com a realidade para a qual não estamos – ou não queremos estar – prontos.

O lixo é um problema: Não nos acostumamos com a ideia de reciclagem. Com relação a energia estudos apontam que tem aumentado gradativamente a geração renovável, com o aproveitamento dos ventos. Outras opções como a energia nuclear são praticadas quase em totalidade em alguns países, como o Japão.

No Brasil, estamos com um problema que também está sendo ignorado pelo atual Prefeito de uma das cidades mais ricas do Estado (e do País, talvez), o Município de São Paulo.

No dia 23 de janeiro deste ano, o Prefeito João Dória aprovou o Decreto 57.581/17 que estabelece normas sobre o que fazer com os bens e camas de moradores de rua.

Mais interessante, é a invocação utilizada, que se vale da ideia de que “considerando a necessidade de implantação de políticas de segurança e preservação da integridade física no âmbito do Programa Marginal Segura”.

A segurança e a integridade a serem preservadas são dos moradores ou apenas dos transeuntes das marginais?

Ah, já sei: Os moradores de rua não têm direito à integridade e segurança, afinal para quê serve o art. 5º da Constituição, ela anda esquecida…

Não é só, o referido decreto também autoriza que os agentes removam compulsoriamente as pessoas e recolham seus bens, como cama que, na maioria das vezes, é feita com papelão, pedaço de espuma, lona, encontrada pelos lixos da cidade.

Mas, o Prefeito vedou a destruição dos itens apreendidos: O morador de rua poderá retirá-lo no prazo de 30 (trinta) dias junto à zeladoria regional.

Claro, o morador de uma rua vai retirar o seu colchão que foi retirado de uma via para montar sua cama em outra via pública. Problema resolvido!

O decreto é incompatível com o conceito constitucional de moradia e política de zoneamento urbano disposto pelo Estatuto das Cidades, configurando verdadeiro abuso e uso da metodologia paliativa que é constantemente praticada pelos governantes brasileiros.

Para nossa Constituição, casa é asilo inviolável, não importa onde o sujeito se encontre, deve ser respeitado, diferente do conceito de domicílio praticado nos demais ramos do direito que se contenta com a ideia de residência e animo de ficar.

Mas, vão me retrucar: A marginal é um bem público, não pode ser apossado, não pode sofrer usucapião. Então, que tiremos os moradores de rua, já que é mais fácil ignorar que eles têm direitos fundamentais, torna-se tão simples destruir suas casas.

Os moradores de rua tornaram-se, parafraseando Bauman, refugos humanos, deslocadas, inaptas, indesejáveis. Melhor do que acolher esses indivíduos marginalizados vamos concentrar a economia para o que é importante, afinal a vida humana, sua integridade, e a nossa segurança, tornou-se algo tão banal.

O problema da modernidade líquida são esses biotipos, estereótipos, que nos separam ao invés de nos unir por uma causa ou solução, preferiu chama-los de moradores de rua do que identifica-los e incluí-los.

Estamos longe de resolver o problema de ordenação da cidade, porém, certamente não será extirpando a dignidade dos moradores de rua com o abalroamento de suas casas que vamos chegar a uma solução.

Conforme destacava Bauman “afinal, o grande projeto que separa o refugo do produto útil não assinala um estado de coisas objetivo, mas as preferências dos projetistas”.

Dessa vez, os moradores de rua foram excluídos do projeto. Quem serão os próximos?

 

 

Cristiano Quinaia

Mestre em Direito - Sistema Constitucional de Garantia de Direitos (Centro Universitário de Bauru). Especialista LLM em Direito Civil e Processual Civil. Advogado.

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