quinta-feira,28 março 2024
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Aplicação analógica do art. 27 da Lei 9.868/99 nas declarações de constitucionalidade e no controle difuso

Por Renan Apolônio*

 

Resumo
Discussão a respeito da possibilidade de aplicação analógica do art. 27 da Lei 9.868/99, o qual possibilita a modulação dos efeitos das decisões que reconhecerem a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, proferidas em Ações Diretas de Constitucionalidade e em Ações Declaratórias de Constitucionalidade. As hipóteses discutidas dizem respeito à aplicação analógica no art. 27 às decisões que declarem a constitucionalidade da norma impugnada e às decisões proferidas pelo STF em sede de controle difuso de constitucionalidade.

 

Introdução

Os efeitos das decisões judiciais que declaram a inconstitucionalidade de leis e atos normativos podem assumir duas formas – ou bem a declaração de inconstitucionalidade assume a forma de declaração de nulidade da norma, e seus efeitos retroagem à data de promulgação da norma nulificada (que nunca entrou no ordenamento positivo), ou bem consistem num ato de anulação da norma impugnada, retirando-a do sistema jurídico (onde nunca deveria ter entrado).

Ambas as modalidades se veem retratadas nos dois modelos clássicos (ou tradicionais) de controle de constitucionalidade, o americano e o europeu continental.

Sabe-se que, no modelo americano de controle de constitucionalidade (essencialmente difuso e incidental), entende-se que o controlar a constitucionalidade das leis é função própria do julgador, já que, ao julgar os casos, é dever de todo magistrados procurar, entre as vigentes, a lei aplicável ao caso. Como as leis inconstitucionais não são direito, o juiz deveria declarar a inconstitucionalidade, na fundamentação de sua decisão, para justificar porque não aplica a lei[1].

As decisões dos magistrados americanos, pelo exposto, têm efeitos inter partes e caráter declaratório, a declaração de nulidade da lei, com efeitos extunc (retroativos), portanto.

Por outro lado, no modelo euro-kelseniano, entende-se que o inserir e retirar normas na ordem jurídica são atos tipicamente legislativos. Por isso, atribuiu-se a um órgão destacado da estrutura judicante a competência para decidir sobre a inconstitucionalidade das leis, como uma espécie de delegação de uma atribuição propriamente legislativa[2].

Consequentemente, a decisão dos tribunais constitucionais de modelo austro-germânico tem caráter constitutivo, a decisão constitui a anulação da lei, produzindo efeitos erga omnes, e não retroativos (ex nunc).

Entretanto, embora o exposto acima seja ainda correto, tanto num como noutro continente, tem-se praticado, em casos excepcionais, a mitigação dessa dicotomia, levando à prática que terminou por se tornar conhecida como modulação dos efeitos das decisões em que se declara a inconstitucionalidade de normas jurídicas.

 

1. A Lei nº 9.868/99 e seu art. 27

No Brasil, o controle de constitucionalidade, inicialmente (Constituição de 1891) adotava apenas o modelo americano de controle difuso. Contudo, aos poucos foram adotados instrumentos de controle concentrado e direto, como a Ação Interventiva (Constituição de 1934), e, mais tarde, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Emenda nº 16 de 1965, à Constituição de 1946, mas já sob o regime militar).

Até então, predominava a dicotomia entre os efeitos das decisões em controle concentrado e as decisões tomadas em controle difuso. Até que, em 1977, o Supremo Tribunal Federal alterou sua jurisprudência quanto à teoria da nulidade das normas declaradas inconstitucionais, passando a modular os efeitos de decisões suas, mas apenas em casos em que considerasse estritamente necessário, conforme apontam Gilmar Mendes[3] e Léo Brust[4].

Apenas com a edição da Lei 9.868, em 1999 (que rege o processamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade – ADIs e das Ações Declaratórias de Constitucionalidade – ADCs), a modulação dos efeitos passou a ter regulamentação legal no Brasil, em razão do conteúdo do art. 27 dessa Lei, o qual diz:

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Do disposto no artigo exposto, vemos que o legislador regulamentador estabeleceu duas hipóteses em que se poderá realizar a modulação dos efeitos da decisão que declare a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo: quando identificar-se que a aplicação imediata da decisão poderia causar um dano à segurança jurídica ou a algum interesse social excepcional.

Ademais, como nota Gilmar Mendes:

Tal como observado, o princípio da nulidade continua a ser a regra também no direito brasileiro. O afastamento de sua incidência dependerá de ponderação que, tendo em vista análise fundada no princípio da proporcionalidade, faça prevalecer a ideia de segurança jurídica ou outro princípio constitucionalmente relevante manifestado sob a forma de interesse social relevante.[5]

Ademais, criou o parlamento brasileiro a exigência, a nosso ver razoável, de aprovação por maioria qualificada, de dois terços dos membros, para a aprovação da modulação dos efeitos da decisão.

É interessante notar que o art. 22 exige, para decidir-se, quer pela constitucionalidade, quer pela inconstitucionalidade, a presença de ao menos oito Ministros (o que corresponde a dois terços). Ou seja, o quórum para aprovação da modulação é igual ao quórum para deliberação sobre as ADIs e ADCs.

O artigo estabelece, ainda, que a modulação pode dar-se por uma das duas formas: ou restringindo-se os efeitos da declaração, ou fixando um marco temporal a partir do qual a declaração terá efeitos, marco esse que poderá ser o trânsito em julgado da decisão ou outra data arbitrada.

 

2. Concepções doutrinárias sobre as possibilidades de modulação dos efeitos

Têm sido criadas, no universo doutrinário brasileiro, as mais diversas interpretações sobre o art. 27, exposto. Contudo, nosso trabalho se aterá a dois autores, já mencionados, como referências principais – Gilmar Mendes e Léo Brust.

Gilmar Mendes afirma que as formas pelas quais pode ocorrer a modulação dos efeitos são três:

  1. a) declarar a inconstitucionalidade apenas a partir do trânsito em julgado da decisão de inconstitucionalidade (declaração de inconstitucionalidade ex nunc);
  2. b) declarar a inconstitucionalidade, com suspensão dos efeitos por algum tempo a ser fixado na sentença (declaração de inconstitucionalidade pro futuro); e, eventualmente,
  3. c) declarar a inconstitucionalidade sem a pronúncia de nulidade, permitindo que se operem a suspensão de aplicação da lei e dos processos em curso até que o legislador, dentro de prazo razoável, venha a se manifestar sobre a situação inconstitucional (declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade = restrição de efeitos.[6]

Com a devida vênia, não podemos concordar com o posicionamento do, hoje, Ministro do STF. Isso porque, em primeiro lugar, adota posicionamentos a respeito da legislação brasileira sempre comparando-a com a normatividade alemã, como que querendo sempre utilizar aquela ordem jurídica como modelo universal de institutos jurídicos, dentro do qual as normas brasileiras devem encaixar-se.

Em segundo lugar, limita a possibilidade de estabelecer um marco temporal distinto da entrada em vigor da lei (efeito retroativo ex tunc) a apenas duas possibilidades – a data do trânsito em julgado (possibilidade expressamente autorizada na lei), e uma outra data futura, até a qual os efeitos da declaração permanecerão suspensos.

Em realidade, é possível também que se estabeleça outro marco temporal retroativo, entre a entrada em vigor da lei e a data da decisão. Segundo Léo Brust, esse tipo de decisão é comum em países europeus em que a legislação permite a prática da modulação dos efeitos, como a Itália[7].

O que se pretendeu com o art. 27 foi possibilitar alternativas ao efeito extunc, que retroage à entrada em vigor da norma, o que seria uma nulidade ab initio, como se faz nos casos comuns.

Por essa razão, acreditamos ser mais adequada a classificação proposta por Brust, para quem há três possibilidades de modulação dos efeitos da declaração em relação ao tempo[8]:

  1. a) Em relação ao futuro (efeitos pro futuro), em data posterior ao trânsito em julgado;
  2. b) Quando da formação da coisa julgada (ex nunc);
  3. c) Retroatividade diferida (nem ex nunc¸ nem extunc, nem pro futuro), o que seria um efeito intermediário entre o extunc de nulidade (que se quer evitar, nos casos autorizados pelo artigo 27) e o ex nunc.

 

Já em relação à modulação dos efeitos através de restrição desses efeitos, nos parece que a posição de Gilmar Mendes, além de incorreta, é contraditória, pois, se numa parte de seu livro afirma, com uso de signo matemático, que restrição de efeitos é igual a declaração de inconstitucionalidade “sem a pronúncia de nulidade”[9] (como já apontado), noutra parte, afirma ser possível, ao declarar a inconstitucionalidade, que isso se faça “sem redução de texto” (citando Lúcio Bittencourt), o que consistiria em declarar a “inconstitucionalidade da aplicação da lei a determinado grupo de pessoas ou situações”[10], o que, obviamente, também é uma forma de modular os efeitos da declaração.

 

3. Aplicação analógica do art. 27

Feitos os comentários acerca da modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos (quando as ADIs forem julgadas procedentes e quando as ADCs forem julgadas improcedentes – ambas ações são o objeto de regulação a Lei em questão), nos parece adequado questionar a possibilidade de aplicação analógica desse dispositivo a outras situações de controle de constitucionalidade.

 

3.1. No controle incidental de constitucionalidade

Primeiro, será possível aplicara modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle difuso e incidental de constitucionalidade?

Gilmar Mendes, o advogado geral da abstrativização do controle de constitucionalidade no Brasil, defende que, sim, é possível a modulação dos efeitos das decisões tomadas pelo STF por meio do controle incidental. Cito:

não parece haver dúvida de que a limitação de efeitos é um apanágio do controle judicial de constitucionalidade, podendo ser aplicado tanto no controle direto quando no incidental[11].

Já Léo Brust apresenta posicionamento diferente. Para ele, a Constituição Federal nada diz sobre a modulação dos efeitos, e a lei que traz essa possibilidade é a que regula o processo das ADIs e ADCs (a Lei da ADPF, em seu artigo 11, traz disposição similar), e por isso não se poderia aplicar ao controle difuso.

Em nosso parecer, ainda que não haja autorização normativa explícita nesse sentido, em casos em que se verifiquem os mesmo pressupostos de ameaça à segurança jurídica ou a outro excepcional interesse social, não se pode impedir a aplicação analógica do art. 27 da Lei 9.868, justamente por não haver vedação normativa a isso.

Assim, concordamos, nesse ponto, com Gilmar Mendes, para quem a não modulação dos efeitos da declaração se distanciaria ainda mais da vontade constitucional, por representar uma limitação à efetividade das decisões do Judiciário no exercício da Jurisdição Constitucional, sobretudo quando se tratar do Supremo Tribunal Federal, em sede se Recurso Extraordinário, cujas decisões são vinculantes erga omnes.

 

3.2. Em declarações de constitucionalidade

Outra questão, não abordada pelos autores pesquisados, razão pela qual nos posicionamos livremente, diz respeito às declarações de constitucionalidade da norma impugnada. Ou seja, nos casos em que as ADIs são julgadas improcedentes e em que as ADCs são julgadas procedentes.

O dispositivo é claro e expresso quanto à modulação dos efeitos quando a declaração seja de inconstitucionalidade. Contudo, não seria irrazoável impedir a aplicação analógica desse artigo quando a declaração de constitucionalidade implicar numa ameaça à segurança jurídica ou a outro excepcional interesse social?

Imagine-se o caso de uma ADC julgada procedente. Para que se impetre uma ADC é necessário haver “existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação da disposição objeto da ação declaratória” (art. 14, III, da mesma Lei), ou seja, a presunção de constitucionalidade da lei já deve ter sido afastada por relevante quantidade de decisões judiciais.

Ora, a declaração de constitucionalidade (de uma lei que se estava deixando de presumir constitucional para presumir-se inconstitucional) poderá acarretar na alteração de diversas situações jurídicas e propriamente judiciais. Caso isso ameaçasse a segurança jurídica ou outro valor constitucional caro, porque não se poderia modular os efeitos da declaração?

 

Considerações finais

Ante todo o aqui exposto, somos da opinião de que é possível – e por vezes poderá mesmo ser necessária – a aplicação analógica do art. 27 da Lei 9.868/99 em outros julgamentos de controle de constitucionalidade além dos expressamente referidos nesse artigo – o qual possibilita a modulação dos efeitos das decisões do STF em controle concentrado cuja decisão seja a de declarar a inconstitucionalidade da norma impugnada.

Afirmamos ser possível estender a aplicação desse artigo às decisões do STF em controle concentrado nas quais se decida pela constitucionalidade, pois, como vimos, mesmo em casos assim, é possível que haja um “excepcional interesse social” (incluindo-se aí a “segurança jurídica”) esteja em jogo.

Também defendemos a ideia de que as decisões do STF tomadas em controle difuso (incidental) de constitucionalidade podem ter seus efeitos modulados pela Corte, já que não há vedação legal para tanto, sem importar qual o sentido da decisão (se para julgar constitucional ou inconstitucional a norma), já que todas as decisões do STF em controle de constitucionalidade são dotadas de eficácia vinculante erga omnes.

 


Referências

CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto Alegre: Fabris, 1984.

KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição reinventada pela jurisdição constitucional Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

MENDES, Gilmar F. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005.

BRUST. Léo. Controle de Constitucionalidade: A Tipologia as Decisões do STF. Curitiba: Juruá, 2014.

[1] CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto Alegre: Fabris, 1984. p. 75.

[2] KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 303/305.

Ver também: SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição reinventada pela jurisdição constitucional Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 46.

[3] MENDES, Gilmar F. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005. p.322/324.

[4] BRUST. Léo. Controle de Constitucionalidade: A Tipologia as Decisões do STF. Curitiba: Juruá, 2014. p. 269.

[5]MENDES, Gilmar F. op. cit. p. 394.

[6]MENDES, Gilmar F. op. cit. p. 395.

[7]BRUST. Léo. op. cit. p. 254.

[8]BRUST. Léo. op. cit. p. 272/273.

[9]MENDES, Gilmar F. op. cit. p. 395.

[10]MENDES, Gilmar F. op. cit. p. 343.

[11]MENDES, Gilmar F. op. cit. p. 322.

 

 

*Renan Apolônio, colaborou com nosso site por meio de publicação de conteúdo. Ele é Bacharel pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE). Advogado. Membro do grupo de pesquisa Teoria e História Constitucional Brasileira.

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