quinta-feira,28 março 2024
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Antígona a Adílio: a tragédia grega no Brasil como rotina

Olá pessoal! Eu sou o Lucas! Vamos dialogar o direito através de notícias da atualidade e buscar uma reflexão aprofundada (muito além das regrinhas mnemônicas cobradas em concursos) – porque não há direito sem crítica, nem bom aplicador das leis sem conhecimento da sociedade que o cerca. Como ensinava Pierre Calamandrei ao se referir aos juízes, “não basta que os magistrados conheçam com perfeição as leis tais como são escritas; seria necessário que conhecessem igualmente a sociedade em que essas leis devem viver” (Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 183).

Pois bem. E para começar, vamos falar de tragédia. Vamos nos acostumar com esse modo impactante de tratar os direitos humanos. Considerados direitos que estão em constante luta, ao longo da história humana e em várias partes do mundo, a violação deles é, no mais das vezes, uma razão para se discutir sobre a necessidade de suas concretizações.

Antígona a Adílio: a tragédia grega no Brasil como rotina

A literatura grega é repleta de tragédias cênicas. Uma delas se amolda ao assunto jurídico dessa semana e à notícia em pauta. Trata-se de “Antígona”, tragédia grega escrita por Sófocles, a personagem que nomeia o título da narrativa se revolta contra o édito de seu governante, Creonte, quem determinara o vilipêndio do cadáver de seu irmão, Polinice, proibindo que este fosse sepultado, e determinando que o corpo permanecesse à mercê das vicissitudes da deterioração natural. Ao narrar a tragédia para Ismênia, sua irmã, sobre a desonra impingida, lamenta a personagem Antígona:

Não conheces o decreto de Creonte sobre nossos irmãos? A um glorifica, a outro cobre de infâmia. A Etéocles – dizem – determinou dar, baseado no direito e na lei, sepultura digna de quem desce ao mundo dos mortos. Mas quanto ao corpo de Polinice, infaustamente morto, ordenou aos cidadãos, comenta-se, que ninguém o guardasse em cova nem o pranteasse, abandonado sem lágrimas, sem exéquias, doce tesouro de aves, que o espreitam famintas.”

A tragédia grega traz um tema jurídico atinente ao direito ao sepultamento (jus sepulchri) – o qual abrange o direito de sepultar, de ser sepultado e de permanecer sepulto.

O Jus sepulchri se trata hoje de direito alçado ao patamar de Direitos Humanos, como ficou claro na sentença prolatada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, concernente ao caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil, de 24 de novembro de 2010, onde a condenação do Estado brasileiro resultou, entre outros reconhecimentos de violações de direitos e deveres de reparações, o registro de que o desaparecimento de pessoas implica à própria vítima desaparecida e aos seus familiares, respectivamente, indubitável afronta à preservação da dignidade do corpo do finado, e obstáculo à construção da memória deste pelos seus entes vivos, em virtude de se verem privados da honra de executar seus costumes e fés pessoais para se despedirem, como culturalmente acham que devem fazê-lo.

No caso da Guerrilha do Araguaia, sobre a violação do direito ao sepulcro aos desaparecidos, asseverou a Corte Internacional que:

“a falta de determinação do paradeiro de seus irmãos manteve latente a esperança de encontrá-los, ou ainda, a falta de identificação de seus restos mortais impediu a eles e suas famílias de sepultá-los dignamente, alterando desse modo seu processo de luto e perpetuando o sofrimento e a incerteza. (…) Receber os corpos das pessoas desaparecidas é de suma importância para seus familiares, já que lhes permite sepultá-los de acordo com suas crenças, bem como encerrar o processo de luto vivido ao longo desses anos.”

Daí que o direito de ser sepultado possui raízes na dignidade da pessoa humana, a qual não está limitada ao tempo do período de vivência do indivíduo; prorrogando-se mesmo quando já varrido do corpo o sopro da vida – resvalando no que se convencionou chamar de “morte digna” 1.

A morte compõe-se, soi-disant, numa parte integrante da vida, e não há qualquer paradoxo nisso. Se todo trajeto possui seu fim de destino, a morte é o derradeiro momento da vida, a conclusão da sucessão de comportamentos que consistiram a complexidade de uma existência; fim este o qual não está autorizado a constituir-se em mero epílogo inglório.

Além disso, a ideia do sepultamento rodeia circunstancias de ordem moral, cultural e afetiva, todas calcadas, de igual medida, na dignidade da pessoa humana, ainda que esta esteja em estado de morte.

Para a concretização da dignidade do sepultamento, não basta, pois, só sepultar. Enterrar por enterrar, um gato também faz. A ideia de um sepultamento subjaz numa manifestação de amor pelo ente que se foi. Sepultar não é depositar o ente num local litúrgico, mas promover um memorial sobre quem partiu, guardando ali um corpo representante de uma história de emoções. Dito assim, nada mais lógico que o símbolo de afeto do qual se despede esteja em condições de proporcionar a mais aproximada memória do ente.

Mas, nesse ponto, a memória pode ter uma dupla consequência. Isso porque, o estado encontrado do falecido irradia nos entes vivos lembranças que podem não ser bem-vindas. Restos mortais não identificados numa massa homogênea e disforme de carne, sangue e ossos – como narrado no caso da sentença da Guerrilha do Araguaia – apenas perpetua o sofrimento de tristeza pelo modo como seu deu o falecimento. A indignidade exposta ao corpo, insepulto, destruído ou vilipendiado de qualquer forma, como ensina a tragédia grega de Antígona, é fator de repulsa e memorável lamentação pela indignidade submetida ao de cujus querido, privado de seu direito ao descanso conforme as crenças de sua comunidade.

O sepultamento, assim, apenas será condizente à dignidade se for respeitada a integridade do cadáver, detentor ainda de direitos da personalidade que o é (na doutrina, vale conferir as lições de Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de Souza, em “O direito geral da personalidade”2 e Silvio Romero Beltrão, em “Direitos da Personalidade. De Acordo com o Novo Código Civil”3).

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Nada mais exemplificativamente violador desse direito humano que o fatídico episódio de Adílio Cabral dos Santos, na tarde de 28 de julho deste ano (http://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,homem-morto-e-atropelado-por-trem-apos-autorizacao,1735060), que, após ser colhido por um trem expresso na estação de Madureira, em São Paulo, permaneceu com seu corpo nos trilhos e, antes que pudesse ser retirado, teve seu cadáver esmagado pelo transporte ferroviário, sob a alegação da empresa responsável pela atividade ferroviária do local que “a paralisação da linha criaria transtornos para toda a movimentação do horário.” Em resumo: o horário de pico de mobilidade urbana não foi capaz de se condoer diante do extermínio do bem maior humano. Primazia da prestação do serviço capital em detrimento de qualquer dignidade?

Como já cantava Titãs, Homem primata, capitalismo selvagem.

Mas isso não é tudo. É possível ainda que corra ao vento a vileza que alguém indague, com achaque, a razão do atropelamento. Tal indagação se tratará, porém, de inócua ladainha para se afastar o atentado ao corpo de Adílio. Não nos prendamos em simplistas razões que nos afastam de uma análise humana sobre os fatos. E se assim devemos fazer, é porque não importa exercitar o juízo de valor acerca da situação de outro. Engana-se quem enxerga sua posição na tribuna do julgador sobre o correto ou errado do caso. Aqui, somos nós também as vítimas, e não há posição melhor do que nos colocarmos nos trilhos de Madureira.

A violação ao respeito pelo corpo e à integridade do cadáver de Adílio traz à baila a visão do corpo em nossa sociedade como uma coisa concebida de irrelevantes valores, objeto de última, quando alguma houver, proteção e preservação. O dano a Adílio não orbita somente sua personalidade jurídica ou a honra de seus entes. Trata-se de verdadeiro dano social, enraizado na história brasileira e reiterado com maldosa criatividade: lembremos do mártir inconfidente, sobre o qual não bastou enforcar, mas se fez necessário esquartejar seu cadáver e deixar os restos mortais expostos à praça; recordemos ainda dos finados desaparecidos, os quais assim como os mortos, não falam por si, tais como Amarildo, no Rio de Janeiro.

E falando de exemplos, examinando-os atentamente, não pode passar despercebida a convergência do status dos violados, a qual aponta outra face da violação: a do paralelismo entre hipossuficiência socioeconômica e a vulnerabilidade. São os marginalizados aqueles desprezados de sua garantia ao descanso sepulcral digno, condenados à vala da mesma indiferença coletiva que lhes impunha a vida. Para todos os efeitos, trata-se de um “corpo matável” – na acepção das lições de Giorgio Agamben (2002) -, cuja existência se soma indistintamente à sociedade, sem qualquer peculiaridade significativa identitária, em nada acrescendo senão para a estatística banalizada do flagelo humano.

Por essa e por tantas outras vidas não capturadas pela ótica da imprensa – estórias, talvez, eternamente obscuras na marginalidade – tais violações a corpos ocorrem no Brasil mesmo depois de sua condenação internacional, e de forma constante, de modo que a tragédia grega de Antígona, por aqui, é um drama rotineiro. Como bem salienta Silva (2008, p. 97), o corpo no Brasil é um (…) “corpo incircunscrito, corpo desprotegido, corpo desabitado, desprovido de seus direitos individuais. (…) O corpo, por aqui, seria uma entidade permeável, altamente vulnerável a intervenções e manipulações do eu pelo outro.”

No entanto, a cena trágica do opróbrio do corpo de Adílio é situação já incorporada no espaço social, acompanhada dos filões de cadáveres eventualmente abandonados nas calçadas de ruas por horas, cobertos pelos populares lençóis brancos à espera pelo IML.

Nem mesmo a morte cessa a exclusão social ou devolve uma cidadania, ainda que tardia àqueles que em vida foram privados dela. Infelizmente, “cenas deste tipo, não obstante certa visibilidade física, não têm produzido incômodos capazes de transmitir à ordem pública um senso de constrangimento ou culpa e a consequente necessidade de sustar esse abandono” (CORDEIRO; TAPPARELLI, 2012).

Diante dessa massiva violação de direitos humanos que inunda o país com concepções de cidadãos descartáveis e cadáveres indignos, sejamos como Antígona, que a despeito das ordens de forças autoritárias maiores, irresignou-se contra o desprezo pela dignidade do outro e a complacência de uma sociedade espectadora, já acostumada com corpos descartáveis.

E que amanhã, oxalá, haja alguma Antígona por nós.


Referências

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua. Vol. I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

BACELAR, Carina; GRELLET, Fábio. Homem morto é atropelado por trem após autorização. O Estado de São Paulo, 30 jul. 2015.

BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da Personalidade. De Acordo com o Novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2005.

CORDEIRO, Gino; TAPPARELLI, Tania. Cuidado, atrás da porta tem gente! Reflexão sobre a morte violenta de jovens em Salvador. In: Violências intencionais contra grupos vulneráveis. NORONHA, Ceci Vilar; ALMEIDA, Andrija Oliveira (Orgs). Salvador: Edufba, 2012.

SILVA, Ana Carolina Nascimento. Das relações de sentido entre corpo e cidadania. Revista Habitus: revista eletrônica dos alunos de graduação em Ciências Sociais – IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, p. 93-100, dez. 2008. Semestral. Disponível em: <www.habitus.ifcs.ufrj.br>. Acesso em: 15 dez 2008.

SOFÓCLES. Antígona. Trad. Donaldo Shüler. L&PM Pocket: 2010.

SOUZA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de. O direito geral da personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995.

 


1 A dignidade da morte foi discutida jurisprudencialmente pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, coincidentemente pelo juiz que hoje é um dos guardiões da Constituição Federal, e por consequência, do princípio da dignidade da pessoa humana constante no artigo 1º, inciso III, da Carta Magna, o atual Ministro Luiz Fux. Para ver o acórdão, confira: AC 14936/2001 – (2001.001.14936) – 10º c. Cív – Rel. Dês. Luiz Fux, julgado em 07 de novembro de 2001. Eis alguns termos da ementa:
“Dano moral. Desaparecimento de corpo do local de seu sepultamento – Merce da flagrante violação de seu dever contratual de guarda do cadáver, exsurge inequívoco o dever de indenizar o dano moral decorrente da violenta dor causada pela surpresa revelada no momento da exumação com a ausência do corpo do local onde fora sepultado, encontrando-se outro de sexo diverso. Um dos valores inalienáveis do patrimônio moral humano e’ a dignidade da vida e da morte. O desprezo pelo ser humano após a sua morte gera dor profunda nos seus entes queridos que sofrem a perda da pessoa amada. O zelo para com o corpo sepulto equipara-se ao constante velar pela alma da pessoa que se foi.”

2 Desse modo, e para além de certos direitos especiais da personalidade de pessoas falecidas expressamente regulados, o nosso legislador quis proteger individualmente as pessoas já falecidas contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à respectiva personalidade física e moral que existia em vida e que permaneça após a morte, assim se podendo também falar de uma tutela geral da personalidade do defunto (SOUZA, Rabindranath Valentino Aleixo Capelo de. O direito geral da personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 193).

3 A morte, contudo, não impede que os bens da personalidade física e moral do defunto possam influir no curso social e que perdurem no mundo das relações jurídicas e sejam como tais autonomamente protegidos. (BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da Personalidade. De Acordo com o Novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2005, p. 85).

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