quinta-feira,28 março 2024
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Alienação fiduciária em garantia e o Código de Defesa do Consumidor: solução diante do inadimplemento do devedor

No último dia 19.10.2020, o Superior Tribunal de Justiça proferiu uma importante decisão no REsp 1742902/DF, rel. Min. Luis Felipe Salomão, que atinge o mercado da alienação fiduciária em garantia, consolidando o entendimento sobre os efeitos do contrato diante do inadimplemento contratual do devedor.

Com efeito, desde a década de 60 do século passado, procurando incentivar a atividade comercial e industrial e com o declínio das garantias tradicionais, a legislação civil vem incentivando a atividade de mercado de crédito e de capitais, oportunidade em que instituiu a alienação fiduciária em garantia, a saber: (i) a Lei 4.728/65 estabelece a alienação fiduciária de bens móveis restrita às instituições financeiras; (ii) a Lei 9.514/97 versa sobre a alienação fiduciária de bens imóveis, permitindo que qualquer particular possa adotá-la;  e (iii) o Código Civil generaliza a alienação fiduciária de bens móveis, permitindo-se a sua adoção por qualquer particular.

No mercado empresarial de bens, tornou-se comum a celebração de operação de crédito, em que o credor concede recursos financeiros ao adquirente/devedor, com vistas à sua aquisição em contrato de compra e venda. A esse fenômeno, em que são celebrados concomitantemente contratos de compra e venda e de mútuo, a doutrina rotula como contratos em rede ou contratos coligados.

Além do incentivo ao mercado de capital, a alienação fiduciária em garantia visa assegurar ao Credor, em caso de inadimplemento contratual do devedor, a rápida retomada do bem e a devolução do capital emprestado. Neste particular, é que a doutrina aponta que a ineficiência dos tradicionais direitos reais de garantia (hipoteca, penhor e anticrese) exigiu a atuação do legislativo para instituir um modelo jurídico que, em suma, propiciasse segurança e eficiência jurídicas à operação de crédito.

A alienação fiduciária consiste no negócio jurídico em que o devedor, com o escopo de garantia, transfere ao credor a propriedade do bem submetida à condição resolutiva. Dentro da perspectiva da Rede de Contratos, deparamo-nos com contratos de compra e venda e de mútuo. Sendo assim, o comprador/devedor, obtendo o empréstimo de capital perante o credor, efetua o pagamento do preço ajustado no contrato de compra e venda ao vendedor, oportunidade em que, com o escopo de garantia, transfere a propriedade do bem ao credor.

A condição resolutiva vem a ser o evento futuro e incerto consubstanciado no pagamento pelo devedor da dívida prevista no contrato de mútuo. Na vigência do contrato de mútuo, o devedor mantém a posse direta do bem, e adquirirá a propriedade, caso venha a efetuar o pagamento da dívida do mútuo.

De outro lado, caso o devedor venha a inadimplir a obrigação de pagar a dívida, a legislação civil confere ao credor mecanismos jurídicos eficientes voltados à rápida retomada do bem, para que este possa ser levado à venda em leilão extrajudicial.

A depender do resultado do leilão extrajudicial, é que se definirá o eventual ressarcimento de valores ao devedor. Em apertada síntese, no contrato de alienação fiduciária, o credor tem direito de receber o valor do financiamento, o que pode obter mediante a venda extrajudicial do bem apreendido. O devedor tem direito de receber eventual saldo apurado, mas não a restituição do que pagou durante a execução do contrato.

Outrossim, o contrato de alienação fiduciária não se extingue por força da consolidação da propriedade do bem em nome do credor fiduciário, mas, sim, pela alienação em leilão público do bem após a lavratura do auto de arrematação. A resolução do mútuo com alienação fiduciária em garantia, por inadimplemento do devedor, autoriza o credor a proceder à venda extrajudicial do bem para o ressarcimento de seu crédito, impondo-lhe, contudo, que entregue àquele o saldo apurado que exceda o limite do débito.

Com o advento do Código de Defesa do Consumidor/90, foi prevista a regra no art. 53 de que, nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.

No contexto da aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de promessa de compra e venda vinculados à atividade de incorporação imobiliária, o Superior Tribunal de Justiça firmou teses jurídicas importantes, a saber: (i) o promitente-comprador, por motivo de dificuldade financeira, pode ajuizar ação de rescisão contratual e, objetivando, também reaver o reembolso dos valores vertidos (STJ, 2ª Seção, EREsp 59870/SP, rel. Min. Barros Monteiro, DJ 09.12.2002); (ii) na hipótese de resolução do contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou, parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento (Súmula 543 do STJ); e (iii) no caso de rescisão de contratos envolvendo compra e venda de imóveis por culpa do comprador, é razoável ao vendedor que a retenção seja arbitrada entre 10% a 25% dos valores pagos, conforme as circunstâncias de cada caso, avaliando-se os prejuízos suportados (AgInt no AREsp 1200273/DF, rel. Min. Marco Buzzi, 4ª Turma, DJe 26.06.2018).

No contexto da aplicação das leis especiais que versam sobre a alienação fiduciária em garantia, o Superior Tribunal de Justiça firmou teses jurídicas importantes, a saber: (i) no contrato de alienação fiduciária em garantia, o credor tem o direito de receber o valor do financiamento, o que pode obter mediante a venda extrajudicial do bem apreendido, tendo o devedor o direito de receber o saldo apurado, mas não a restituição integral do que pagou durante a execução do contrato (REsp 250.072-RJ, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar); (ii) o CDC é aplicável às instituições financeiras (AgRg no REsp 791061/RS, rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ 06.03.2006); e (iii) nos contratos de aquisição de veículo com garantia de alienação fiduciária permanecem válidas as estipulações do Decreto-lei 911/69, que não foram revogadas pelo CDC (AgRg no REsp 506882/RJ, rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ 12.03.2007).

À vista das diversas teses jurídicas firmadas pelo STJ em relação aos contratos de promessa de compra e venda submetidos ao CDC e aos contratos de alienação fiduciária regidos por leis especiais, instaurou-se um dissenso na doutrina e na jurisprudência dos tribunais.

De um lado, defende-se que a legislação do consumidor permite a desistência do comprador no contrato de compra e venda, oportunidade em que terá direito de obter a devolução dos valores pagos com a retenção de multa que varia entre 10% a 30% em favor do vendedor. Do outro, defende-se que a lei da alienação fiduciária em garantia contempla regra especial que afasta a aplicação da norma geral prevista na legislação do consumidor, de sorte que a definição dos efeitos da extinção dependerá do resultado do leilão extrajudicial.

A análise segmentada de cada um dos contratos revela a solução jurídica a ser adotada, eis que, ao ser examinada a Rede de Contratos, verifica-se que o contrato de compra e venda do bem produz todos os seus efeitos, em que o vendedor transfere o bem ao comprador, o qual, em contrapartida, paga o preço ajustado, havendo a sua extinção pelo cumprimento voluntário, e que o contrato de mútuo, pelo qual o credor disponibiliza capital ao devedor, o qual fica pendente de cumprimento consubstanciado na devolução pelo devedor do valor emprestado.

Havendo inadimplemento no contrato de mútuo, afigura-se que o credor detém direito de exigir do devedor a devolução do capital emprestado com os acréscimos contratuais (juros remuneratórios e encargos da mora).

Por isso que nos parece correta e incensurável a decisão proferida pelo STJ que assenta a conclusão de que o inadimplemento contratual do devedor na alienação fiduciária em garantia enseja a realização de leilão extrajudicial do bem dado em garantia, de sorte que o devedor não tem direito de exigir do credor a devolução dos valores pagos. O desfecho do contrato de mútuo exige a devolução ao credor do valor emprestado com os acréscimos contratuais, de sorte que o devedor somente terá direito a obter a devolução de valores, caso o lance do bem no leilão extrajudicial supere o valor da dívida. Em suma, ocorrendo inadimplemento do devedor no contrato de alienação fiduciária em garantia de bens móveis ou imóveis, a quitação da dívida deverá observar a forma consubstanciada no leilão extrajudicial previsto na legislação especial (Decreto-lei 911/69 e Lei 9.514/97), por se tratar de norma jurídica especial, o que afasta, por consequência, a aplicação do art. 53 do CDC.

 

Mestre e Doutor pela PUC-SP. Professor da graduação e do Mestrado na UFRN. Advogado.

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