sexta-feira,29 março 2024
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Agente disfarçado, Estatuto do desarmamento, lei de Drogas e Lei Anticrime: interpretações perigosas

A denominada “Lei Anticrime” (Lei 13.964/19) promoveu um acréscimo nas figuras do Comércio Ilegal de armas de Fogo (artigo 17 da Lei 10.826/03), do Tráfico Internacional de Armas de Fogo (artigo 18 da Lei 10.826/03) e do Tráfico de Drogas (artigo 33 da Lei 11.343/06). Respectivamente em um novo § 2º., um Parágrafo Único e, finalmente, um inciso IV do § 1º., estabeleceu que a venda ou entrega de arma de fogo, acessório ou munição, bem como de drogas ilícitas ou matéria prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas, de forma irregular a agente policial disfarçado impõe a responsabilização criminal pelos crimes acima mencionados de acordo com cada caso, desde que presentes elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente.

Esse novo dispositivo nada mais é do que a positivação de um entendimento já predominante na doutrina e na jurisprudência pátrias quanto a não caracterização do chamado “Flagrante Preparado” ou “Crime de Ensaio” nessas circunstâncias, já que se tratam de crimes plurinucleares e o agente já perpetrava anteriormente, sem induzimento ou instigação de agente provocador, núcleos verbais presentes nos tipos penais. Obviamente a venda ou entrega constituiria crime impossível, nos termos do artigo 17, CP e Súmula 145, STF. Mas, nada impede o reconhecimento de condutas prévias como as de “ocultar”, “ter em depósito”, “trazer consigo” ou “guardar”, as quais, inclusive, são permanentes.

Embora o legislador utilize, inadequadamente, uma redação que dá a impressão de tratar-se de um novo tipo penal incriminador, na verdade, essas inovações constituem mera norma penal de caráter explicativo que, como já visto, apenas positivam entendimento fortemente assentado na doutrina e na jurisprudência.

Não obstante, uma primeira vertente interpretativa temerária já defende, sem maior reflexão, a natureza jurídica de “crime” ou “norma penal incriminadora” com relação a esses dispositivos , o que pode ser o embrião para outras perigosas conclusões capazes de ferir princípios constitucionais, princípios básicos do Direito Penal e a própria higidez da dogmática jurídico – penal.

Insustentável também, portanto, por outra perspectiva, a interpretação de que os dispositivos em estudo sejam “crimes” ou “normas penais incriminadoras”. Se assim fosse, seria necessário admitir que a nova incriminação se dá somente a partir do vigor da Lei 13.964/19 com suas alterações promovidas nos artigos 17 e 18 da Lei 10.826/03 e 33 da Lei 11.343/06. Nesse passo, anteriormente não haveria crime nessas condutas e todas as prisões efetuadas ao longo de todos esses anos, bem como as respectivas condenações criminais teriam se dado com sustento em fatos atípicos. Em suma, a “novatio legis incriminadora” não poderia ter força retroativa para o fim de incriminar e, inusitadamente, de forma concomitante, retroagiria para beneficiar réus por fatos ocorridos antes de sua vigência. Não é que a nova norma propriamente “retroagiria”, mas produziria uma espécie de efeito retroativo reflexo absolutamente inédito e até difícil de expressar em palavras técnicas ou mesmo comuns. Isso ocorreria porque se cometeria o erro crasso de confundir norma penal incriminadora com um entendimento doutrinário – jurisprudencial antecedente e agora positivado que versava a respeito de condutas já incriminadas pela lei e que assim continuam, sem qualquer alteração (hipótese de continuidade normativo – típica e não de “novatio legis incriminadora”). Toda essa confusão se dá por um descuido perigosíssimo com a observância dos critérios da “dogmática jurídica” e das distinções das “categorias” na interpretação e aplicação das leis, o que, conforme destacam Zaffaroni e Pierangeli, é altamente deletério, ferindo de morte a coerência do ordenamento jurídico, sua unidade, sua lógica necessária, sua não contradição enfim.

Ademais, considerando a conduta criminosa como sendo a venda ou entrega de arma ou droga ilícita a policial disfarçado, surge a indagação sobre qual bem jurídico seria atingido por essa prática? A incriminação recairia sobre um ato teatral, uma simulação sem qualquer consequência no mundo real. E não cabe o recurso às práticas antecedentes, já que estas seriam, neste quadro, apenas um pressuposto para a aplicação do suposto novo tipo penal. A resposta, portanto, quanto ao bem jurídico atingido é de que seria nenhum. Não há bem jurídico atingido por uma representação fantasiosa de comércio clandestino de armas ou drogas. Pretender que esse ato isolado seja crime, em uma ilustração hiperbólica, corresponderia a passar a prender, processar e condenar atores de filmes e de teatro que encenem a prática de condutas delitivas. Há evidente violação do Princípio da Lesividade nesse pretenso reconhecimento das novas normativas como tipos penais.

Naquilo que se pode definir como rematado absurdo, pode surgir a alegação de que o comércio ficto havido entre o infrator e o agente disfarçado, não somente seria um crime, mas também um crime autônomo, gerador de concurso material do suposto ilícito do § 2º., com as condutas antecedentes integrantes do crime de ação múltipla, consideradas imprescindíveis para a penalização nos termos do “caput” dos artigos 17 e 18 do Estatuto do Desarmamento e do artigo 33 da Lei de Drogas.

Logo em primeiro plano essa construção teórica se equivoca diante do mais comezinho conhecimento da natureza e das características inerentes aos crimes de ação múltipla, de conteúdo variado, plurinucleares ou tipos mistos alternativos. Esses tipos penais, constituídos de vários núcleos verbais ou da descrição de várias condutas, estão afetos àquilo que a doutrina convencionou chamar de “Princípio da Alternatividade”. Dessa forma, a incidência do agente, nas mesmas circunstâncias, em mais de um núcleo verbal ou conduta, não leva à pluralidade delitual. Mesmo incidindo em mais de uma conduta, o agente responde por crime único. Só isso já seria mais que suficiente para refutar de forma definitiva a tese estapafúrdia do concurso delinquencial.

Acontece que, para além do acima exposto, há ainda mais um argumento decisivo.

A atuação do agente disfarçado é nada mais do que um meio de obtenção de prova da infração, sendo o ato de venda ou entrega a ele da arma ou droga em comércio ilegal, segundo entendimento consolidado, mero “crime de ensaio” impunível. Na verdade, uma espécie de simulação de uma suposta conduta criminosa. Usando uma terminologia aristotélica, simples “formato”, desprovido de “forma” ou “substância”. O intento de converter um mero meio de obtenção de prova em instrumento de criminalização autônomo, equivale à surreal transmutação da obtenção de prova em uma segunda responsabilização criminal do implicado. Uma espécie de “bis in idem” transdisciplinar entre o Direito Penal e o Processo Penal. Recorrendo à técnica retórico – argumentativa do argumento “ad absurdum”, equivaleria a pretender incriminar um autor de roubo, por exemplo, pelo ato probatório do reconhecimento ou o autor de qualquer crime pelo ato da confissão! Ora, este segundo exemplo é bem descritivo da absurdidade de sequer considerar a hipótese da dupla incriminação. Note-se que a confissão, não somente não conduz a mais uma responsabilização criminal, como constituí atenuante genérica prevista na Parte Geral do Código Penal Brasileiro (artigo 65, III, “d”, CP). A autoincriminação sequer pode ser imposta a ninguém, muito menos, quando de alguma forma ocorre por meios considerados lícitos e admissíveis, poderia se converter em crime autônomo que se somaria ao delito anterior! Quando o agente é enredado na trama lícita do agente infiltrado, acaba se autoincriminando em uma situação excepcionalmente permitida legalmente. Entretanto, parece que tal excepcionalidade já é mais que suficiente, não sendo defensável que se converta em instrumento de uma segunda responsabilização criminal. Isso certamente violaria a proibição de dupla incriminação pelo mesmo motivo, o Princípio da Alternatividade e até mesmo a mais mínima noção de razoabilidade.

Percebe-se, de acordo com o exposto, que não só os parágrafos que tratam da atuação do agente disfarçado no Estatuto do Desarmamento e na Lei de Drogas não têm natureza jurídica de crimes, mas também, ainda que esse tivesse ou mesmo tenha sido o intento do legislador ordinário, isso seria absolutamente inviável. O eventual “projeto” do legislador ordinário se chocaria frontalmente com princípios básicos do Direito Penal e da Carta Magna, revelando patente inconstitucionalidade. A condição de validade da norma em estudo é exatamente que sequer haja a pretensão espúria de constituir-se em tipo penal. Essa é sua única interpretação consoante a Constituição e os princípios que norteiam o Direito Penal hodierno.

Em suma, os dispositivos em estudo não são, em si, inconstitucionais, mas podem sê-lo em caso de uma eventual interpretação e/ou aplicação inadequada.


REFERÊNCIAS
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 19ª. ed. São Paulo : Saraiva, 2015.

DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal Parte Geral. Tomo I. São Paulo: RT, 2007.

FRANCO, Alberto Silva (org.). Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. 5ª. ed. São Paulo: RT, 1995.

LEITÃO JÚNIOR, Joaquim. O agente policial disfarçado na Lei n. 13.964/19 (Lei do Pacote Anticrime). Disponível em https://juspol.com.br/o-agente-policial-disfarcado-na-lei-no-13-964-2019-lei-do-pacote-anticrime/amp/, acesso em 02.05.2020.

MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.

NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. Volume 1. 27ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.

REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Volume 1. São Paulo: Paulus, 2003.
SANNINI NETO, Francisco. A figura do agente policial disfarçado consolida técnica de investigação criminal. Disponível em https://jus.com.br/artigos/81754/a-figura-do-agente-policial-disfarcado-consolida-tecnica-de-investigacao-criminal, acesso em 02.05.2020.

TAVARES, Leonardo Ribas. Novas Teses do STJ sobre Prisão em Flagrante. Disponível em https://www.estrategiaconcursos.com.br/blog/prisao-em-flagrante-jurisprudencia-em-teses-stj-edicao-n-120/ , acesso em 31.10.2020.

ZAFFARONI, Raúl Eugênio, PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 5a. edi. São Paulo: RT, 2004.

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós Graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

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