quinta-feira,28 março 2024
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ADPF 442 STF: Quando o ativismo judicial chega ao cume da perversão militante

Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia, Medicina Legal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

1-INTROITO

A situação a ser analisada é de uma obviedade tão gritante que não se justificaria seu estudo se vivêssemos num ambiente minimamente razoável e saudável em termos políticos, sociais, jurídicos e intelectuais.
Fato é que um partido de representação irrisória no parlamento brasileiro e perante a população (Psol), percebendo claramente que seu pleito para legalização do aborto no Brasil não teria acatamento perante os representantes legais da população brasileira que, diga-se de passagem, em mais de 80% é contrária a esse tipo de projeto (seja entre homens ou mulheres), ingressou com uma ADPF a fim de driblar a tripartição dos poderes e o processo legislativo. O ataque ao Estado Democrático de Direito é frontal nessa manobra, não somente sob um aspecto procedimental, mas se tratando de uma afronta deliberada até mesmo ao aspecto mais comezinho do que se possa entender por representatividade da vontade popular, ou seja, seu aspecto matemático, aritmético. É bem sabido que esta não é a única face da Democracia, o que a tornaria uma tirania da maioria, mas é, por assim dizer, uma de suas premissas mais básicas.
Malgrado isso, é fato que a ADPF 442 foi proposta e, pior, aceita pelo STF, órgão supostamente incumbido da preservação dos valores constitucionais, da democracia, do Estado de Direito e da própria tripartição dos poderes. Diz-se “pior” porque a pretensão de um grupo de usar de subterfúgios para impor sua vontade, contornando a sistemática legal, é até compreensível, embora não aceitável. Mas, é o cúmulo do absurdo que a Corte Suprema dê guarida a um pleito cuja ilegitimidade e até mesmo insídia são patentes.
Mais ainda, no decorrer da preparação para o julgamento, foram instaladas audiências públicas com grande prevalência de entidades pró – legalização em detrimento dos defensores da manutenção da lei. Novamente a militância de grupos isolados se sobrepõe, por sua capacidade de organização e agitação, à real mentalidade e espírito da população brasileira, que acaba, se não calada, ao menos limitada em sua representação no processo. Noelle – Neumann já demonstrou em sua teoria da “espiral do silêncio” como a maioria pode ser sobrepujada por uma minoria disposta a “proclamar sua posição”, causando mais impacto e influência na opinião das pessoas porque “parece haver grupos que sabem apropriar-se melhor da atenção pública e outros que se deixam silenciar”.
Eis o alerta de Fernandes a este respeito:
“Há que ter cuidado, ademais, com o real grau de assentimento popular, porquanto há determinados grupos minoritários cujo nível de organização e cujo poder de pressão e de influência são tão elevados que se impõem e se fazem atender dando a impressão de que são grupos majoritários.
Assim, embora uma adesão popular maciça a determinado argumento não seja garantia de sua racionalidade, justiça ou veracidade, ela impõe, porém, ao julgador (a) um dever de detida consideração e (b) um ônus argumentativo reforçado para evidenciar sua sem – razão”.
E quando se pensa que a situação atingiu seu paroxismo, eis que surge algo ainda mais grave. O STF admitiu como “Amicus Curiae” na ADPF 442 entidades que promovem a prática do aborto, fornecem medicamentos abortivos e fazem propaganda de meios abortivos dentro do Brasil, inobstante tudo isso seja crime e contravenção, ao menos de acordo com a legislação ainda vigente e cuja suposta ilegitimidade constitucional não foi reconhecida. Ora, a expressão “Amicus Curiae” pode ser traduzida do latim como “Amigo da Corte”. Como é possível, legal e moralmente, que uma Corte Suprema de um país, admita como seus “amigos” entidades e pessoas que são praticantes de condutas previstas na legislação desse mesmo país como crimes e contravenções?
Independente da discussão sobre descriminalização ou não. Um ponto é certo: discutir e apresentar argumentos sobre a descriminalização de qualquer conduta, é algo livre no Estado Democrático de Direito, não constituindo “apologia ao crime e ao criminoso” (artigo 287, CP). Dito isto, o que é inadmissível é que entidades ou pessoas que confessam práticas criminosas ou contravencionais sejam admitidas pelo Supremo Tribunal de um país como “Amicus Curiae”! O simples anúncio de meio abortivo é (ainda) contravenção penal no Brasil (artigo 20, LCP), auxiliar, instigar ou induzir à prática do aborto pode configurar “participação” (artigo 29 c/c artigo 30, CP), no crime de aborto previsto no artigo 124, CP (no qual, por ser crime próprio, não se admite coautoria, mas sim participação). Por fim, realizar o aborto provocado em qualquer pessoa com (artigo 126, CP) ou sem (artigo 125, CP) o seu consentimento é crime! Como é possível que organizações que realizam abortos, que fornecem orientação para a prática de aborto, que anunciam, divulgam meios abortivos, não apenas defendem teses, possam ser admitidas como “Amicus Curie” num tribunal superior de um país? E não importa se o fazem dentro do país ou fora. Por ora ao menos se tratam de práticas criminosas e contravencionais em solo brasileiro. Não estamos num país minimamente sério! Seria o mesmo que admitir o PCC, as FARCS, o Marcola ou o Fernandinho Beira Mar como “Amicus Curiae” numa audiência pública sobre a liberação das drogas!
Só um exemplo, o IWHC, que tem até uma cartilha divulgada mundialmente: “Aborto com auto-administração de misoprostol: um guia para as mulheres”. Isso é, no mínimo, contravenção penal no Brasil. Tem site em português : https://iwhc.org/tag/em-portugues/. Só mais um: Woman on waves. É expositora e é a ONG do navio que faz abortos, mundialmente conhecido.
Rebecca Gumperts é fundadora da Women on waves e da Women on web (a do site de venda de medicamentos ilegais). A ONG envia medicamentos ilegais (abortivos) para dentro do Brasil, participando da prática de abortos aqui, onde a conduta é crime, inclusive ensinando a administração e técnicas via web para as pessoas, sob o pretexto de que seria uma forma de realizar um “aborto seguro”. Ora, não existe aborto ou qualquer intervenção médica interna, segura, mesmo num hospital. Sempre é uma conduta de risco, um risco permitido e necessário se é um ato terapêutico, mas sempre arriscado. Será que alguém gostaria de um programa governamental para corte de custos que adotasse consultas e procedimentos via web, não presenciais? Um médico virtual? Só um louco gostaria e aprovaria uma absurdidade dessas. O contato médico é pessoal. A chamada “telemedicina”, é admitida com grandes reservas pelo artigo 37 do Código de Ética Médica e depende de cuidadosa regulamentação.
A ONG Conectas apresentou a nota técnica da Women on web, que fornece pílula abortiva no Brasil. A Nota Técnica confirma o delito. Há, portanto, ligação/relação entre Conectas e Women on web. Ao mesmo tempo Rebecca Gumperts é fundadora da Women on Web, que vende medicamentos.
Para se ter noção como a falta de sensibilidade jurídica do STF se espalha facilmente, na época este autor chegou a ser indagado sobre a admissibilidade desse procedimento (admitir infratores como “Amicus Curiae”) porque o aborto não seria equiparável com o tráfico, como no meu simples exemplo e também porque a questão trata de direitos individuais.
Ora, expressão e discussão não estão em pauta. Como se disse é totalmente viável para entidades e pessoas que não pratiquem crimes, mas tão somente defendam ideias, por mais absurdas que sejam. Quanto à equiparação, crime é crime, contravenção é contravenção, nenhum criminoso ou contraventor pode, num país minimamente sério , ser admitido a discutir a questão da descriminalização da conduta que pratica. Além do mais, este autor não equipararia jamais o tráfico ao aborto, seria um absurdo jurídico diante do nosso atual ordenamento, uma ignorância já superada por este subscritor desde os primeiros contatos com a área penal. Na hierarquia de bens jurídicos, o aborto é crime contra a vida e o tráfico protege bem difuso da saúde pública. Ou seja, no nosso ordenamento o aborto é incomparavelmente mais grave que o tráfico, e não o contrário, como equivocadamente, erro primário, se insinua num questionamento dessa espécie. Por fim, se a discussão versa ou não sobre direitos individuais não há relevância ou talvez intensifique o fato de que infratores da lei brasileira não podem ser admitidos como “Amicus”. É um visível absurdo. E se pode dizer mais, afeta a própria imparcialidade da corte para a decisão. Afinal, o que se discute é se condutas que tais devem ser descriminalizadas, até o momento são crimes e contravenções. Portanto, admitir à discussão quem já as perpetra é confessar que tudo é um jogo sórdido de cartas marcadas, não existindo imparcialidade alguma, pois já se parte do pressuposto de admissão desse procedimento, mesmo diante da ordem atualmente posta. Note-se que a própria discussão sobre direitos individuais tem dois lados, as alegações sobre os direitos das mulheres e os da vida do ser humano em gestação. Inclusive trata da questão, dando proteção ao ser em gestação um documento internacional dos mais importantes sobre Direitos Humanos, nada mais, nada menos, do que o Pacto de São José da Costa Rica (afirma que protege a vida desde a sua concepção). Observe-se ainda que se versa sobre o ordenamento como ele é atualmente, se houver descriminalização por que via for, então o fato será considerado atípico e aí não caberão essas considerações jurídicas (a não ser que se entre no mérito da questão materialmente falando e tratando da (i) legitimidade do judiciário para supostamente legislar, mas neste ponto não se trata disso). Porém, a questão ocorre agora e no presente, e então, de acordo com as circunstâncias presentes, deve ser julgada, sob pena até de pré – julgamento parcial, como já foi dito. A questão proposta é estritamente jurídica, sem discussão do mérito sobre a futura decisão. Enfim, o problema não é a discussão livre e sim a contradição de admitir infratores diretos da lei como “Amicus Curiae”, isso é uma imoralidade absurda e uma decisão jurídica absolutamente equivocada, viciada por parcialidade patente e falta de um mais mínimo bom senso.
Quase olvidava, porque se entende que a questão não seria cabível, mas, a bem de esclarecimento, adianta-se que não prospera acenar com o suposto argumento de que o tráfico é crime hediondo, enquanto que o aborto não o é. Em primeiro lugar, uma questão terminológica: para a maioria dos autores o tráfico não é um crime hediondo, mas somente equiparado. No entanto, essa questão é também de somenos importância. Ocorre que a classificação de um delito como hediondo não nos diz muito materialmente, mas apenas formalmente quanto à sua gravidade. A Lei dos Crimes Hediondos é uma das mais hediondas leis brasileiras. Por exemplo, na sua origem, não previa o homicídio, mesmo qualificado, como crime hediondo (1990). Somente a partir de 1994 o homicídio qualificado e somente ele, além dos casos de grupo de extermínio (o simples, por exemplo, não) foi considerado hediondo. Ora, matar um ser humano não era originalmente crime hediondo, isso faria dos demais crimes hediondos mais graves que o homicídio? É claro que não! Ainda hoje, matar alguém de forma simples (sem qualificadora ou sem o aumento de pena do grupo de extermínio) não é crime hediondo. Isso faz da alteração de produtos cosméticos algo mais grave que o homicídio, ainda que simples, só porque a adulteração mencionada é crime hediondo? Será que qualquer crime contra a vida, pelo só fato de não ser catalogado como hediondo, é menos grave, atinge bem jurídico de menor relevância do que crimes hediondos ou equiparados? Outro exemplo é o induzimento, indução ou auxílio ao suicídio, crime contra a vida, que não é hediondo. Por isso é menos grave? Obviamente que não. E os exemplos são abundantes, um roubo com lesão gravíssima (tetraplegia) na vítima não é hediondo porque só o latrocínio é hediondo. Por causa disso o roubo qualificado nesses termos é menos grave do que, por exemplo, um estupro de vulnerável sem violência e com vítima já de idade mais avançada, embora menor de 14 anos? É claro que não! Só para finalizar: o envenenamento de água potável era crime hediondo na origem da Lei 8.072 em 1990. Em 1994 foi retirado do rol. Por isso, será que tal crime, que beira o terrorismo, é um crime menos grave materialmente falando? Obviamente não! Há casos como o Infanticídio ou o homicídio privilegiado ou culposo que não são hediondos e não ostentam a gravidade que os poderia alçar à hediondez, embora não deixem de ser graves e envolver o bem jurídico vida humana. Mas, nesses casos há ausência de dolo (crime culposo) ou amenização da conduta específica por circunstâncias especiais (privilégio e estado puerperal da mulher). Ou seja, a previsão no rol dos crimes hediondos diz quanto à gravidade da infração no campo formal. No campo material, há que verificar a natureza ontológica da conduta e o bem jurídico atingido ou posto em perigo.
Finalmente também há que lembrar que a alegação de que a questão do aborto no STF versa sobre direitos fundamentais como suposto argumento para invalidar a comparação com a questão do tráfico de drogas, também é equivocada pelo seguinte motivo: para quem sabe sobre o que versa a discussão da liberação das drogas é notório que ali também se trata sobre direitos fundamentais individuais. Inclusive há semelhança com o caso do aborto. No aborto se fala, sob o ângulo liberatório, do direito da mulher de “retirar” do seu corpo “algo” que não lhe interessa, inclusive causando lesões a si mesma (lembremos que o aborto é uma lesão corporal na mulher, e gravíssima). No caso das drogas, sob o prisma do porte para consumo próprio, trata-se do direito de “introduzir” no próprio corpo (homem ou mulher) substâncias lesivas, exatamente porque se trata de uma autolesão, que não violaria, segundo seus defensores, o chamado Princípio da Transcendência, ou seja, não se atingiria bens jurídicos de terceiros, mas do próprio usuário, o que não legitimaria a previsão da conduta como criminosa. Ora, essa discussão é nitidamente referente aos direitos fundamentais individuais dos usuários de drogas proscritas. E quanto ao tráfico? Pois então, o fornecimento de drogas a tais pessoas seria, no mínimo, amenizado em sua gravidade. Como se poderia pensar em permitir a posse de drogas para consumo próprio sem que houvesse o fornecimento por alguém? O ilícito, se permanecesse, certamente tornar-se-ia bem menos grave materialmente falando, ou até poderia tornar-se mero ilícito administrativo, caso o fornecedor não obedecesse às regras para o fornecimento. Na opinião deste autor, liberado o consumo de drogas hoje proscritas, a criminalização do tráfico e sua previsão como equiparado a crime hediondo, seria similar a criminalizar e equiparar a hedionda a conduta de quem vende cigarro sem um alvará municipal ou bebidas alcoólicas sem obedecer às normativas administrativas pertinentes. Eventual discussão sobre a descriminalização do próprio tráfico (hoje tráfico porque é clandestino), transmudando-o em atividade comercial e industrial natural (como as indústrias de bebidas alcoólicas e tabaco, por exemplo), seria também uma discussão sobre direitos individuais dos usuários (o direito de liberdade de acesso aos produtos pretendidos, que estaria afeto à sua dignidade humana e liberdade individual, pois permitir o uso, mas proibir o acesso é inócuo), assim como o direito fundamental ao livre exercício do trabalho e à livre iniciativa por parte de quem pretenda fazer o comércio de drogas hoje ilícitas. Ou seja, a discussão sobre as drogas versa também sobre vários direitos fundamentais, aqui apenas exemplificados rapidamente. Não se entra também aqui no mérito de nada disso (se devem ou não ser liberadas as drogas e/ou sua comercialização, apenas expõe-se do que trata a discussão). Mas será que por isso, seria admissível o PCC, as FARCS, Beiramar ou Marcola como “Amicus Curiae”? Não seria isso igualmente absurdo, imoral e insensato, para além de juridicamente inadmissível?
De acordo com o exposto resta nítido que a postura do STF não se perfaz como preconiza a corrente do neoconstitucionalismo, simplesmente por uma atuação de maior amplitude do judiciário no exercício legítimo de sua função para além das amarras de uma interpretação meramente gramatical ou exegética da legislação. A postura é de um ativismo militante de natureza política que escancara uma parcialidade inadmissível em um órgão jurisdicional. Nem mesmo há uma preocupação com as aparências. Parece que a única manobra realizada para dar ares de imparcialidade ao julgamento foi a instalação das audiências públicas. Mas, ao que se apresenta, não passa de uma cortina de fumaça por detrás da qual se oculta uma nítida militância absolutamente incompatível com o exercício da jurisdição.

2-O FENÔMENO DO ATIVISMO JUDICIAL E SEUS LIMITES

A questão do ativismo judicial por meio das chamadas “decisões manipulativas” não é um fenômeno exclusivo do Brasil. Trata-se de algo que ocorre em praticamente todo o mundo desde o surgimento do neoconstitucionalismo. O termo foi proposto pela “Escola de Gênova” e utilizado pela primeira vez por Susana Pozzolo no “XVIII Congresso Mundial de Filosofia Jurídica e Social” no ano de 1997, na cidade de Buenos Aires. Essa corrente da filosofia do Direito se contrapõe ao Positivismo de origem kelseniana, promovendo maior protagonismo ao órgão jurisdicional na aplicação da lei e mesmo da Constituição às situações concretas que lhe sejam apresentadas.
A princípio essa visão neoconstitucional não é criticável. Efetivamente alguém que profere decisões em casos concretos, aplicando normas abstratas, ordinárias ou mesmo constitucionais, deve ter um espaço de mobilidade argumentativa para não se tornar um mecânico produtor de silogismos, mas sim um ator capaz de promover a Justiça na atuação do Direito. Não obstante, sempre que uma virtude é levada aos extremos, acaba se transformando em vício.
No Prefácio à obra de André Dias Fernandes, Manoel Gonçalves Ferreira Filho expõe muito bem o problema:
“As decisões manipulativas que hoje se multiplicam no Supremo Tribunal Federal têm uma importância ímpar para o desenvolvimento não meramente para a ciência ou teoria do direito constitucional, mas para a existência do Estado constitucional, ou mais diretamente, para a sobrevivência da Constituição como lei suprema. Como base de uma organização política que proscreve o arbítrio e enseja a liberdade pessoal, com o rol de direitos fundamentais que a especifica, protege e complementa.
De fato, se ela tem essa função e a cumpre limitando ao legítimo o exercício do poder pelo Governo e pelo Legislador, ela o faz, na visão moderna e revelada pela experiência, pelo controle do Juiz. Do Juiz que aplica as regras constitucionais objetivamente, imparcialmente, como voz – não apenas boca – dessa Lei das leis. Quando, todavia, o Juiz manipula a interpretação da Constituição, ele se põe acima dessa Lei e isto pode degenerar no seu arbítrio, porque, como os romanos já ensinavam, Quis custodiet custos?
Este risco existe e se manifesta no frequentemente denunciado ativismo judicial.
Mostrar esse perigo não significa pretender restringir de modo absoluto o Juiz a um papel de máquina, cega e surda, de aplicação literal do direito positivo. Aponta sim, que o arbítrio, seja de onde vier, renega o constitucionalismo e com ele a liberdade e com esta a dignidade da pessoa humana”
E logo na introdução do tema, Fernandes diagnostica a pervertida normalização do excepcional com referência às chamadas decisões manipulativas em nosso Supremo Tribunal Federal:
“O crescente emprego de decisões manipulativas pelo STF tende a transformá-las em decisões típicas. Essa profusão de decisões manipulativas oriundas do STF patenteia uma tendência irreversível da Corte de gradativo abandono do paradigma kelseniano do legislador meramente negativo e à assunção do papel de legislador positivo, eventualmente modificando informalmente a própria Constituição, passando, dessarte, de intérprete e guardião para ‘construtor’ da Constituição”.
O autor em destaque contextualiza essa tendência do STF num quadro internacional de expansão e de politização da “jurisdição constitucional”. E alerta para a necessidade de observação de “limites e parâmetros” a essa atividade a fim de evitar sua degeneração em “puro decisionismo e arbítrio judicial”, o que é extremamente “deletério à democracia, ao equilíbrio entre os Poderes e à governança”.
No caso da atuação do STF com o evidente intuito de legalizar a prática do aborto no Brasil, desprezando as normas penais ordinárias vigentes, a clara vontade popular e a própria Constituição que defende a vida e a dignidade humanas, afora o Pacto de São José da Costa Rica, que estabelece a proteção da vida intrauterina desde a concepção, sem falar no Código Civil que ressalva os direitos do nascituro, vislumbra-se um abuso da liberdade e poder jurisdicional, ainda que no contexto de um hodierno neoconstitucionalismo. A alteração pretendida por via judicial não é de um ou alguns artigos de lei, mas de todo um sistema protetivo normativo e principiológico que advém da Constituição Federal, de Tratado Internacional sobre Direitos Humanos, do ordenamento penal e do ordenamento civil, isso sem falar na legitimação desse sistema pela vontade evidenciada da esmagadora maioria da população brasileira, sendo-se de lembrar que, segundo a própria Constituição, no “Título I – Dos Princípios Fundamentais”, fica estabelecido no artigo 1º., Parágrafo Único:
“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Na verdade, como já afirmou Guilherme Fiuza em crítica acerba contra outra decisão do STF, mais uma vez estão fazendo “a Constituição rebolar até o chão” (sic), movidos por influências ideológicas.
É preciso lembrar, conforme indica Sarmento que
“No Brasil, a dignidade da pessoa humana figura como ‘fundamento da República’ no art. 1º., inciso III, da Constituição brasileira. O princípio já foi apontado pela nossa doutrina como o ‘valor supremo da democracia’, como a ‘norma das normas dos direitos fundamentais’, como o ‘princípio dos princípios constitucionais’, como o ‘coração do patrimônio jurídico – moral da pessoa humana’. O reconhecimento da centralidade do princípio da dignidade da pessoa humana é recorrente na jurisprudência brasileira, tendo o STF afirmado que se trata do ‘verdadeiro valor – fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso país”. (…).
Essa importância atribuída à dignidade da pessoa humana no Brasil e no constitucionalismo global deve ser saudada como sinal de avanço civilizatório. Afinal, trata-se de princípio profundamente humanista, baseado na valorização da pessoa e comprometido com a garantia dos seus direitos básicos contra todas as formas de injustiça e opressão. Portanto, é promissor que tal princípio tenha passado a desempenhar papel de destaque nos ordenamentos jurídicos contemporâneos”.
É bem verdade que o próprio autor sob comento destaca a fluidez e dubiedade da expressão “dignidade da pessoa humana”, sendo possível seu aceno, na questão do aborto, seja para a defesa da vida intrauterina, seja como argumento em prol da mulher que pretende abortar. Na realidade essa espécie de argumentação dúbia tem sido comum no debate sobre o tema específico.
Há que observar, contudo, que nos movemos atualmente no domínio quase hegemônico do neoconstitucionalismo, conforme já anteriormente exposto. Fato é que esse pensamento também indica que as Constituições nacionais não podem ser interpretadas e aplicadas de forma isolada, desconsiderando o contexto de acordos internacionais, os quais passam a também integrar o universo normativo dos Estados independentes com uma grande mudança do conceito de soberania.
Como pontua Neves:
“A emergência de ordens jurídicas internacionais, transnacionais e supranacionais, em formas distintas do direito internacional público clássico, é um fato incontestável que vem chamando a atenção e tornando-se cada vez mais objeto do interesse de estudos não apenas de juristas, mas também de economistas e cientistas sociais em geral. O que intriga a ‘ciência’ jurídica tradicional é a pretensão dessas novas ordens jurídicas de se afirmarem impreterivelmente, seja como ordens jurídicas que prescindem do Estado, seja como ordens jurídicas que prevalecem contra os Estados, pondo em xeque o próprio princípio da soberania estatal, viga mestra do direito internacional público clássico. É nesse contexto que surge a discussão sobre Constituições transversais além do Estado, no âmbito da qual não é suficiente a referência nem à noção de juridificação nem a um conceito histórico – universal de Constituição, pois está em jogo a controvérsia sobre o surgimento de instituições que configurem equivalentes funcionais à Constituição transversal do Estado constitucional”.
Nesse passo o neoconstitucionalismo e o transconstitucionalismo, ao menos no que se refere à questão do aborto, apontam para a manutenção do sistema protetivo da vida intrauterina no Brasil, inclusive servindo de parâmetro para a devida compreensão do “Princípio da Dignidade Humana”. Acontece que, como já exposto neste texto, a defesa da vida e da dignidade humanas estampadas em nossa Constituição Federal (artigo 1º., III c/c artigo 5º., “caput”) devem, segundo esse referencial teórico, harmonizar-se com o ordenamento jurídico internacional a que o Brasil aderiu, mais especificamente ao Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos), o qual é explícito na proteção à vida humana “desde o momento da concepção” (artigo 4º., n. 1).
Esse é o arcabouço normativo que orienta o conceito de pessoa no Brasil, interna e externamente, esse é o nosso referencial jurídico que, obviamente, se assenta sobre referenciais teóricos, emocionais, filosóficos, antropológicos etc. Como explica Betioli:
“A pergunta sobre o começo da pessoa é filosófica, porque pessoa é um conceito e não uma estrutura biológica. Cabe, pois, à filosofia, ao direito, à teologia e à política responder essa questão”.
Ademais, também advém do mesmo referencial teórico a constatação de que uma ordem jurídica, inclusive constitucional, somente se legitima internamente se calcada na vontade popular. Voltando a Neves:
“Não se legitima internamente no sistema político democrático a decisão que se funda na asserção ou no argumento de que o povo errou ou não está em condição de tomar decisões. Salvo se houver desrespeito às regras do jogo, o povo constitucional é o limite da democracia, embora esteja envolvido na circulação e contracirculação do poder. Se o povo como instância procedimental é questionado ou os correspondentes procedimentos deturpados, a democracia como racionalidade do sistema político é abolida ou, no mínimo, está em crise”.
Não há, portanto, falar em procedimento democrático quando o STF admite sequer a discussão de uma ADPF apresentada por partido de representação pífia, em oposição à notória tendência da esmagadora maioria dos brasileiros e ainda para pretender tomar uma decisão manipulativa, atuando como legislador positivo, construindo e não interpretando e aplicando as normas legais. Tudo isso em franca oposição a uma harmônica e correta interpretação sistemática das normas legais ordinárias, constitucionais e internacionais que regem a temática, sem falar na violação constitucional à tripartição dos poderes enquanto Princípio Fundamental (inteligência do artigo 2º., CF).
Retomando a questão da dignidade humana e retornando ao escólio de Sarmento, importa salientar que esse conceito, se deturpado e utilizado de forma parcial, torna-se “problemático sob a perspectiva democrática, pois permite que juízes não eleitos imponham seus valores e preferências aos jurisdicionados, passando muitas vezes por cima das deliberações adotadas pelos representantes do povo”.
Parece que o STF não está muito preocupado com o respeito aos sentimentos e convicções morais, sociais e humanos de seus jurisdicionados, procurando, isto sim, impor a vontade de parte de seus integrantes, mesmo diante de uma visível inadequação à legislação interna e externa nesse processo. Bem mais visível é que os Ministros do STF procuram subordinar “a própria Constituição àquilo que eles acreditam ser justo e correto. A lei, para esse grupo, só é entendida como ferramenta ou como obstáculo, conforme ela esteja a seu favor ou contra ele”. Mas, é preciso lembrar que o STF é apenas um “guarda da Constituição” e não o “seu dono”, conforme bem afirmou o Ministro Marco Aurélio em voto vencido no RE 778889.
E não se diga que o Direito nada tem a ver com sentimentos morais, já que esse princípio fundamental da dignidade humana jamais pode perder seu conteúdo moral, sob pena de total esvaziamento.
Novamente vale a manifestação de Sarmento:
“A dignidade humana, em síntese, de mera proclamação religiosa e filosófica converteu-se em princípio jurídico vinculante da mais elevada estatura, mas isso não a privou da sua dimensão moral. Pelo contrário, a sua positivação é parte importante do fenômeno de abertura do Direito à leitura moral”.
Nossa Constituição e tratados internacionais sobre Direitos Humanos a que o Brasil aderiu não se apegam a uma visão organicista ou coletivista em que o ser humano seja algo descartável como peça de uma engrenagem. O valor intrínseco de cada ser humano é defendido, não havendo conflito entre a obediência às normas constitucionais e convencionais e “o respeito aos princípios morais mais fundamentais”.
Ter a pretensão de burlar toda essa principiologia constitucional e inclusive suas bases morais, tende à expedição de uma verdadeira decisão de “revisão constitucional” pelo Poder Judiciário de forma arbitrária. Nesse passo, procede-se de maneira a promover alterações informais na Constituição por meio de suposta “interpretação”. A “interpretação” é um pretexto para modificar “substancialmente” a constituição e outras legislações, num anômalo exercício de “legislador positivo” por parte do Judiciário. Age o Judiciário como um “legislador positivo constitucional”, alterando o “conteúdo ou o alcance da norma constitucional”, tal qual fosse ele um “constituinte, promovendo emendas à margem do procedimento de revisão formal pelo Legislativo”. No limite, chega a pretender atuar (como é o caso estudado neste texto) “como legislador constituinte originário”, com intento de alterar “o núcleo essencial do conteúdo ou alcance de cláusulas pétreas, insuscetível de revisão formal”. É exatamente o que ocorre neste caso, porque tem relação com a perversão dos Princípios e Garantias Fundamentais inscritos nos artigos 1º., III; 2º. e 5º., “caput”, CF em sua harmonia com o artigo 4º. , n. 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Opera-se um esquecimento voluntário do que Frankenberg chama de “método legislativo de técnica de Estado”, cuja função é “realizar a transição do exercício pessoal do poder para o exercício impessoal do poder, ou seja, mediado pela lei”. Um governo que é de “leis” e não de “homens”, tal como na “tradição constitucional estadunidense” (“government of laws and not men”).
Morais expõe o mal ínsito a esse tipo de decisão judicial:
“Trata-se de sentenças que alargam, por força de uma operação interpretativa, o objeto da norma constitucional existente, à margem do texto e da vontade expressa ou implícita do legislador constitucional, acabando por gerar, de fato, ‘novas’ normas e até novos regimes normativos, com pretenso valor constitucional”.
É impossível fechar os olhos à literalidade notória dos dispositivos constitucionais e, especialmente da normativa convencional supra mencionada, com a qual conformam um sistema. Passar sobre a literalidade da legislação não é algo que se possa fazer impunemente, não quando se pretende manter ou mesmo construir um chamado “Estado Democrático de Direito”.
Na lição de Ramos:
“O texto normativo é, pois, ao mesmo tempo, o ponto de partida do processo hermenêutico e o mais expressivo balizador de seus resultados. Conforme observa Konrad Hesse, o limite da textualidade ‘é pressuposto da função racionalizadora, estabilizadora e limitadora do poder da Constituição’ e se, por um lado, ‘inclui a possibilidade de uma mutação constitucional por interpretação’, por outro, ‘exclui um rompimento constitucional – o desvio do texto em cada caso particular – e uma modificação constitucional por interpretação’. E arremata seu pensamento sentenciando que ‘onde o intérprete passa por cima da Constituição, ele não mais interpreta, senão modifica ou rompe a Constituição”.

E ainda no escólio de Müller:
“O teor literal demarca as fronteiras extremas das possíveis variantes de sentido, i.e. funcionalmente defensáveis e constitucionalmente admissíveis. (…). Decisões que passam claramente por cima do teor literal da Constituição não são admissíveis” (grifos no original).
Fato é que não se pode olvidar os variados aspectos ou conceitos por meio dos quais uma Constituição deve ser encarada (v.g. sociológico, político, jurídico), não parecendo que nenhum deles, isoladamente, possa abarcar o sentido pleno da Lei Maior. A partir do momento em que a vontade constituinte expressa é desprezada numa total informalidade, esta realmente se torna nada mais que uma “Constituição de papel”, na famosa ilustração de Lassalle. Com ele podemos afirmar que as questões constitucionais não são primordialmente de Direito, mas de Poder. A Constituição verdadeira de um país tem por fonte e fulcro “os fatores reais e efetivos do poder que naquele país regem”. Sua letra deve ser observada e terá valor e durabilidade apenas e tão somente quando exprimir “fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social”. Em suma, a visão sociológica da Constituição nos ensina que as normas fundamentais não podem ser objeto de manipulação irresponsável, pois que permeadas e sustentadas por um substrato real de poder sem o qual ou contra o qual nada podem ideologias barulhentas, ativismos ou criações artificiais. E, no caso brasileiro, embora haja uma parcela “intelectual” (sic) que, erroneamente, imputa ao conservadorismo uma espécie de sentido pejorativo, é fato concreto que nossa população, de onde provém a legitimação de qualquer lei, é e sempre foi esmagadoramente conservadora e prudente. Donde se pode afirmar que achaques revolucionários e bruscos, especialmente à margem das instituições e suas regras não são bem vindos.
Pode-se afirmar
“que o STF vem procedendo a mudanças informais na Constituição pela via interpretativa, exorbitando da sua atribuição de guardião da Constituição.
O decantado ‘poder constituinte difuso’ é, por natureza, limitado, não autorizando a reformulação da Constituição com a abrangência que se lhe vem emprestando. A liberdade interpretativa do STF é limitada pela própria natureza de sua função de guardião, e não de senhor da Constituição. A criatura (STF) não pode deformar o seu criador (Constituição). O papel contramajoritário do STF não pode jamais ser exercido contra a vontade objetiva da Constituição. Se a Suprema Corte procede ultra vires e abusa de sua prerrogativa quanto ao ‘monopólio da última palavra’ em matéria de interpretação constitucional, o Estado de Direito e a Democracia periclitam”.
É somente por meio de uma série de distorções materiais (v.g. conceito de dignidade humana) e formais (v.g. violação à tripartição dos poderes), que se pode imaginar uma instrumentalização do Judiciário para legalizar o aborto por via de uma ADPF, burlando a vontade popular e de seus representantes legítimos.
Angotti Neto bem ilustra essas distorções:
“A expressão ‘direitos reprodutivos’ merece atenção especial, pois de reprodutivos nada tem de fato, a não ser que o direito de reproduzir significasse o direito de evitar um aborto para a criança, fruto da reprodução, nascer.
Contudo, a expressão é utilizada para comunicar a vontade de destruir fetos e bebês, justamente fruto da reprodução.
É como se eu intentasse a ridícula expressão ‘direitos dietéticos’ para fazer uma greve de fome ou ‘direitos sexuais’ para em seguida optar pelo celibato. (…).
O nome adequado deveria ser ‘direito ao extermínio’. Pena que o nome não seria lá muito politicamente correto, embora, com certeza, muito mais veraz.
A coisa fica ainda mais louca quando engenheiros sociais classificam os ‘direitos reprodutivos’ como ‘direitos humanos universais’, o que equivale a dizer: é ‘direito universal’ do ser humano matar outro ser humano e eliminar a possibilidade de o outro exercer qualquer outro direito neste plano existencial”.
Note-se que há uma tremenda distorção, perversão e violação também de outros princípios nessa tentativa de burla. São visíveis as lesões à proporcionalidade e à igualdade quando “seres” humanos, apenas devido à fase de desenvolvimento, são tratados de forma tão desigual, uns são reificados (tratados como “coisas”), enquanto outros são tutelados com direitos absolutos.
Como é possível pensar que nesse quadro dantesco a dignidade da pessoa humana estaria cumprindo a função que Habermas lhe atribui, qual seja, de “algo como um portal por meio do qual o conteúdo igualitário – universalista da moral é importado ao direito”.
A dignidade humana não pode ser entendida de forma egocêntrica, mas relacional. No entanto, isso vai se tornando cada vez mais difícil quando o pensamento contemporâneo se permite uma “inversão interior” por meio da qual “a vontade se arroga um direito de conquista onde somente à inteligência cabe o primado”. Consequentemente “a inteligência perde a liberdade e a vontade então convence o sujeito que ele é um livre pensador” e sua liberdade autocentrada lhe permite, em nome de uma suposta dignidade, simplesmente dispor de “seres” humanos para satisfazer seus desejos ou amenizar suas dificuldades. Esse voluntarismo egoísta com que se pretende sustentar uma ADPF, acenando com uma perversão do Princípio da Dignidade Humana, deriva de um problema sumamente grave na atualidade, que é a “incapacidade de ver o sentido profundo e verdadeiro das coisas”.
Como aduz Angotti Neto:
“A expectativa hedonista de livrar a pessoa do desconforto, mesmo que ao custo da vida alheia e da impossibilidade de sentir empatia ou imaginar o que é a vida alheia, nos levará ao fim da civilização. (…).
O hedonismo e a elevação do prazer imediato subjetivista acima de fatos e seres concretos, por meio da relativização dos valores mais profundos e centrais, estão destruindo tudo.
Agora, sacrificamos nossos filhos e fingimos que nada acontece. Em breve, todos seremos sacrificados, e ninguém se lembrará do quanto valemos. Afinal, sobrará algo valioso em nós e legado por nós para justificar a lembrança de quem somos”?
A dignidade humana não é dotada de apenas uma face, aquela geradora de direitos e garantias, mas também de outra, aquela geradora de deveres para com os outros. Tem um aspecto importante que a converte também em “dever ou encargo”, capaz de fundamentar a limitação da liberdade individual, de forma a fazer com que as pessoas vivam e ajam de modo digno e também permitam o gozo dessa mesma dignidade a outros “seres” humanos. Viver dignamente não é exercer uma liberdade egocêntrica, mover-se tão somente pelo império da “vontade”, viver dignamente também compreende a responsabilidade pelo reconhecimento da dignidade humana nos outros seres humanos. Isso sob pena de, ao contrário, acabar vendo “sufocada a piedade pelo hábito”, incapacitando qualquer empatia para com, por exemplo, um feto humano, ao ponto de sobrepor à sua vida e potenciais, uma vontade, um capricho ou mesmo a fuga de uma dificuldade.
A visão que reduz o alcance da dignidade humana, da proteção da vida humana e do próprio conceito de pessoa, alijando o feto de tutela não se coaduna, conforme já demonstrado, com não apenas uma norma interna, mas com todo um sistema constitucional, ordinário e, mais evidentemente ainda, convencional. Pretender fazer um malabarismo jurisprudencial para alterar esse quadro notório é imoral, ilegal, antidemocrático e inconstitucional, seja formal, seja materialmente.
O que se pretende é afastar a possibilidade do “reconhecimento” do feto ou embrião, da vida intrauterina humana como aquele “outro” que merece consideração relacional e se habilita como “pessoa”. Eis o truque para desconsiderar o Pacto de São José da Costa Rica e toda sua necessária interpretação sistemática com a legislação constitucional e ordinária interna do Brasil.
Todorov esclarece que “o reconhecimento marca, mais que qualquer outra ação, a entrada do indivíduo na existência especificamente humana”. Sem o reconhecimento são possíveis o descarte, a crueldade, a instrumentalização, a reificação e a indiferença.
Reconhecer neste contexto não é meramente identificar, mas valorizar e respeitar a pessoa. Dessa forma, a falta de reconhecimento ou o reconhecimento pervertido ou deturpado conduz à diminuição, ao desrespeito, à desconsideração que degrada e compromete a relação humana.
Mas, a tentativa de negar esse necessário reconhecimento, mesmo diante da letra clara da normativa, somente se lastreia em manobras eufemísticas e ocultações, senão em verdadeiras falsificações. Conforme demonstra Angotti Neto:
“Normalmente chamarão o feto por nomes bem técnicos e desumanos como: produto da gravidez, concepto ou consequência indesejada. Chamar o feto de criança, ser humano ou – horror – admitir tratar-se de uma pessoa, trará imenso desconforto, ao gerar na consciência o choque da realidade que precede a capacidade de analisar o assunto com inteligência.
Para que imaginemos o quanto a apreensão dessas realidades pode mexer com o imaginário de alguém, basta nos lembrarmos da história de vida do rei do aborto, o médico Bernard Nathanson. Ao observar a reação do feto a um abortamento por meio de ultrassonografia, o médico aborteiro ficou profundamente perturbado. Aquele que não passava de uma abstração, um pequeno refugo a ser removido sem muita preocupação, assumiu rapidamente a posição de paciente a ser cuidado. Seus movimentos, suas reações e sua face ganhavam duas dimensões no aparelho e três dimensões na imaginação.
Para os abortistas, é melhor não falar mesmo do feto, não entrar muito no mérito da questão e no excesso de detalhes biológicos e sociais. Quanto menos conhecimento, mais fácil será fingir que o pequeno homem, ou a pequena mulher, não passa de um alienígena distante e desconhecido”.
É interessante observar como uma ideologia se sobrepõe a qualquer contradição interna. Os mesmos que advogam o secularismo e o cientificismo, renegam as verdades reveladas pela moderna genética e biologia, bem como as imagens concretas e irrefutáveis tornadas possíveis por meios de aparelhos como o ultrassom. Preferem manterem-se cegos num primitivismo autoimposto a fim de não abrirem mão de suas intocáveis vontades.
Outro aspecto interessante é que grande parte da esquerda que defende a legalização do aborto, se empertiga na defesa dos animais sob o argumento de que são “seres sencientes”, ou seja, capazes do prazer e dor. E isso seria, no caso dos animais, suficiente para praticamente equipará-los a pessoas e promover o seu “reconhecimento”. Não obstante, sabe-se que é cientificamente comprovado pela moderna embriologia que os fetos e recém – nascidos prematuros têm uma sensibilidade maior do que um adulto à dor. Eles então não somente são “seres sencientes”, mas também são mais sencientes do que uma pessoa formada. Mas, nada disso sensibiliza aqueles que teimam em não reconhecer o feto como integrante da intersubjetividade. Esta pode processar-se com animais, mas não com seres humanos em sua fase intrauterina. E isso mesmo diante do seguinte fato:
“O status humano é questão genética e científica muito bem estabelecida. Ninguém no meio acadêmico sério, ainda que fosse o mais radical abortistas instruído, levantaria a hipótese de um feto não ser humano. É humano no sentido ontológico e genético a partir do momento da concepção. O que está em discussão é quais humanos podemos matar e quais não podemos. Fetos humanos não se tornam tatus ou samambaias, eles se desenvolvem em pessoas adultas, crianças, idosos, e todas essas categorias são categoria de seres humanos”.
Não sem razão Goethe afirma que a história é “o quadro dos crimes e das misérias da humanidade”. E o poeta inglês Mathew Green descreve uma “profecia, que sonha uma mentira, na qual os tolos creem e os patifes põem em prática”.
A estreiteza de pensamento, incapaz de enxergar as enormes contradições em que se move a ética chamada pós – moderna, vai ainda mais longe se for observado o tema tão difundido do reconhecimento dos “Direitos das Futuras Gerações”, integrando-se entre os chamados “Direitos de terceira ou quarta geração”. É reconhecido o direito de alguém que sequer existe em qualquer plano, em qualquer fase de desenvolvimento e negado o direito à própria existência de um ser humano já concebido!
Como expõe Wolff:
“Nossa comunidade moral não se estende somente no espaço, a todos com os quais poderíamos estar em relação simétrica; ela se estende no futuro a todos cuja existência depende de nossa ação e com os quais estamos em relação assimétrica”.
Note-se que o reconhecimento do dever ético perante o “outro” não depende de simetria, nem muito menos de reciprocidade , mas tão somente da humanidade do humano presente, futuro e, certamente, em formação. As espúrias exigências de simetria e reciprocidade quando se trata do tema do aborto pervertem e reduzem a amplitude da dignidade humana. O Pacto de São José da Costa Rica se funda em uma concepção escorreita da dignidade humana e sua literalidade não deixa dúvida quanto à imperatividade de seu preceito, sem margens para interpretações limitativas.
A eventual legalização do aborto, mediante um abusivo ativismo, ou até melhor, militantismo judicial, com infração à literalidade do sistema da legislação ordinária penal e civil em cotejo com a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica, pode justificar uma legítima reação do Poder Legislativo, devido à usurpação escandalosa de suas funções e, consequentemente, à violação da tripartição de poderes constitucionalmente estabelecida. A doutrina especializada chama essa reação de “Blacklash”. Conforme ensina Fernandes:
“Nessa perspectiva, o blacklash pode ser compreendido como uma forma de colaboração do legislador com o Tribunal: um apelo do legislador à autocrítica do Tribunal. Assim como o Tribunal emite decisões de apelo ao legislador, este também pode dialogar com o tribunal pela via da reedição de lei de conteúdo idêntico ou similar ao de lei declarada inconstitucional. Mesmo diante do elevado risco de nova declaração de inconstitucionalidade, a mensagem exortativa é clara. E pode conter a ameaça implícita de uma reação mais incisiva, pela via de uma emenda constitucional, por exemplo”.
Em suma, é possível por meio desse procedimento restaurar a usurpação cometida com o abusivo ativismo ou militantismo judicial, recompondo a tripartição de poderes e, juntamente com ela, o Estado Democrático de Direito.

3-CONCLUSÃO

No decorrer deste trabalho foi questionada a legitimidade da ADPF 442 apresentada perante o STF pelo Partido Político PSol, visando a legalização do aborto no Brasil.
A falta de representatividade popular do próprio partido envolvido e, principalmente, da ideia ali defendida foi apresentada como sério argumento para que sequer se cogitasse do conhecimento do pleito.
Inobstante, o STF acatou o pedido de conhecimento e instalou um procedimento de audiências públicas prévias ao efetivo julgamento do caso. Nessas audiências também se verificou a irregularidade patente da aceitação como “Amicus Curiae” de entidades promotoras do aborto e divulgadoras de meios abortivos com atuação inclusive em território nacional, infringindo as leis vigentes e, até o momento, válidas. Entidades, portanto, que claramente praticam crimes e contravenções penais em território nacional, ligadas à questão do aborto e do anúncio de meios abortivos, são admitidas como “amigas da corte” (na tradução literal da expressão), revelando escandalosa parcialidade na apreciação da matéria já em seu início.
Finalmente foi analisada a legislação brasileira sob o ângulo ordinário, constitucional e convencional, restando evidente que a vida humana é tutelada em nosso país desde a sua concepção, não havendo espaço para alterações que não infrinjam a legalidade e a tripartição de poderes. Ademais, o conceito constitucional de “dignidade humana”, como “Princípio Fundamental”, embora sujeito a interpretações equívocas (reducionistas ou mesmo extensivas demais), certamente alcança o ser humano a partir da concepção, pois que os dispositivos constitucionais relativos à proteção do direito à vida humana e da dignidade humana somente podem ser corretamente delineados em conjunto harmônico com o dispositivo convencional do Pacto de São José da Costa Rica.
No caso de eventual decisão esdrúxula da Suprema Corte, caberá a reação do legislador na qualidade de legítimo representante da vontade popular, reiterar a criminalização do aborto na forma como se encontra em nosso ordenamento, bem como o reconhecimento dos direitos do nascituro, inclusive os mais básicos que são os direitos à vida e à existência. Deverá o Legislativo demonstrar ao Judiciário que houve abuso ativista e, se a reiteração da legislação ordinária não for o suficiente para provocar uma autocrítica do Judiciário, então uma emenda constitucional deverá ser elaborada, não deixando margem para qualquer dúvida ou desconstrução por meio de expedientes exóticos e impertinentes.

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Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós Graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

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