quinta-feira,28 março 2024
ColunaElite PenalAbuso de autoridade e violação da razoabilidade dos prazos

Abuso de autoridade e violação da razoabilidade dos prazos

A Lei de Abuso de Autoridade incrimina agora no artigo 31 a procrastinação exacerbada de investigação em prejuízo da pessoa submetida ao escrutínio estatal.

É sabido que a situação de indefinição não agrada a ninguém e que muitas vezes um investigado ou processado prefere sofrer logo a reprimenda do que permanecer num limbo incerto durante anos e anos. Certa feita, durante uma oitiva de um preso num estabelecimento penitenciário, ao indagá-lo sobre seus antecedentes e sabendo de um de seus processos, foi-lhe perguntado se já havia sido julgado. Ele respondeu: “Ah, já Doutor, ganhei esse aí já”. Perguntado ganhou como? “Ah ganhei 8 anos de reclusão no tráfico”. A estagiária que me acompanhava, posteriormente perguntou-me impactada: “Doutor, como pode ele dizer que ‘ganhou’ 8 anos de reclusão”? Expliquei na época que para o detento, a resolução da situação com uma pena aplicada que pode acompanhar em seu progresso é mais vantajosa do que sua manutenção numa situação indecisa de prisão provisória. Esse episódio somente vivenciável na prática do dia a dia com detentos, investigados e processados é muito esclarecedor de como a procrastinação temporal de uma investigação pode ser prejudicial aos envolvidos. Isso sem falar nas vítimas de ilícitos (essas frequentes esquecidas) que também querem logo saber qual foi o resultado punitivo resultante àquele que lhe tolheu algum bem jurídico.

Os bens jurídicos tutelados são a legalidade, eficiência e celeridade da Administração Pública e da Administração da Justiça. Também a dignidade da pessoa humana, o devido processo legal e o Princípio da Razoabilidade dos Prazos, hoje previsto expressamente na Constituição Federal (artigo 5º., LXXVIII). Não deixa de ser tutelada a honra do cidadão investigado certamente atingida durante o calvário das apurações que se alongam.

A lei descreve a conduta como estender a investigação, procrastinando-a, ou seja, demorar na prática dos atos investigatórios de forma desnecessária, atrasando voluntariamente seu andamento. A finalidade dessa conduta deve ser abrangida pelo dolo específico comum a todos os crimes de abuso de autoridade, conforme consta do artigo 1º., § 1º., da Lei 13.869/19, assim como ter o fito de prejudicar o investigado ou fiscalizado.

No entanto, há investigações que, por sua natureza (v.g. complexidade, elevado número de investigados, testemunhas, vítimas, perícias demoradas e complicadas, cartas precatórias ou rogatórias, necessidade de autorizações judiciais etc.) ou devido ao acúmulo de trabalho (v.g. delegacias, repartições de fiscalização ou juízos assoberbados com elevado número de feitos, muitas vezes números sobre – humanos, já que nossas polícias, órgãos fiscalizadores e juízos não são da Áustria, Alemanha, Suíça ou coisa parecida), serão necessariamente morosos. Isso não por culpa ou dolo dos agentes públicos responsáveis, mas pela natureza do feito e/ou pelo excesso de serviço. É claro e evidente que nesses casos não há abuso algum. Certamente o único abuso seja do Estado para com os agentes públicos que trabalham sob condições inaceitáveis e, consequentemente, para com a população em geral, que não recebe um bom serviço. Mas, nessas circunstâncias entra em jogo a aplicação do elemento normativo do tipo, “injustificadamente” ou “de forma imotivada”, pois que há justificativa clara e evidente para a demora no trâmite. Ademais o crime é doloso e de dolo específico, a nosso ver somente aplicável em caso de dolo direto, não abrangendo sequer o eventual. Nem mesmo a figura culposa é prevista, embora nas situações onde a mora é justificável não exista nem dolo nem culpa, somente uma fatalidade causada pelo abandono ou falta de condições estatais de ofertar um bom serviço público.

Mais uma vez se constata que a lei usa a palavra “investigado” em seu sentido amplo, abrangendo, a nosso ver, tanto a fase pré – processual da investigação criminal, quanto a processual. Em sentido contrário, entendendo que somente é abrangida a fase de investigação pré – processual, se manifestam Greco e Cunha.

Por fim, conquanto o princípio do devido processo legal compreenda a garantia ao prazo razoável de duração também do processo, o tipo em comento, seja no caput, seja no parágrafo único, faz expressa referência ao investigado ou fiscalizado, abrangendo, portanto, somente a fase de investigação (penal ou extrapenal).

Também afirma Lima que o crime se refere somente à fase pré – processual, constituindo “analogia in mallam partem” a extensão ao processo.

Note-se, reafirmando, respeitosamente, nossa posição, que é exatamente o fato de que o devido processo legal com o corolário da razoabilidade dos prazos é inerente a toda a persecução penal, que não permite que o crime em questão atinja somente a investigação pré – processual. A interpretação deve ser ampla mais uma vez, como tem sido comum nesta legislação quando trata das palavras “investigado” e “investigação” sob pena de não emprestar a máxima eficácia possível dos direitos e garantias constitucionais, padecendo de inconstitucionalidade por insuficiência protetiva, a depender da interpretação e aplicação que se lhe dê o estudioso e operador do Direito. A interpretação ampla, dando o devido alcance ao tipo penal e promovendo à máxima eficácia constitucional não implica em “analogia in mallam partem”.

Além disso, ao citar “fiscalizado” dá a entender que também abrange feitos de natureza administrativo – fiscal (v.g. apurações da receita federal, da fazenda pública estadual ou municipal etc.). Não seria crível que houvesse punição para policiais e fiscais e não houvesse a mesma reação estatal contra promotores e juízes procrastinadores na fase processual. Ademais, também não se reduz a investigações criminais, mas pode abranger outras espécies da área cível, como, por exemplo, inquéritos civis, ações civis públicas e ações de improbidade. Ou da seara administrativo – disciplinar (Apurações Preliminares, Sindicâncias, Processos Administrativos). A lei não é restritiva.

São, portanto, sujeitos ativos todos os agentes públicos responsáveis pelo andamento de investigações e processos criminais e fiscalizatórios (v.g. Juízes, Promotores, Delegados de Polícia, Escrivães de Polícia, Investigadores, Oficiais Policiais Militares em IPMs, Juízes da Justiça Militar, Agentes da Receita Federal, Delegados da Receita Federal, Oficiais de Justiça, Escreventes ou Escrivães judiciais, Agentes de Promotoria, Relatores de CPIs etc.). Sujeito passivo será qualquer pessoa física ou jurídica submetida à investigação procrastinada em seu prejuízo.

O Parágrafo Único do artigo 31 deixa claro que o fato de não existir prazo legal estabelecido para a finalização de uma investigação não significa uma carta branca temporal para os agentes públicos, os quais continuam submetidos ao Princípio da Razoabilidade dos Prazos a ser sopesado em cada caso concreto, podendo sofrer a devida punição em caso de evidências de procrastinação em prejuízo de alguém. Um bom exemplo de investigação sem prazo legal determinado é a Verificação de Procedência de Informações, procedida pela Polícia Judiciária, nos termos do artigo 5º., § 3º., CPP. Esse tipo de procedimento não pode se alongar por anos a fio sem a menor justificativa ou uma decisão final. Entretanto, para que haja crime é preciso atentar para a presença do dolo específico do agente público, caso contrário apenas restará a responsabilização administrativa e, eventualmente, civil.

Se o agente público estende ou procrastina a investigação e acaba beneficiando o investigado com isso, não há o crime do artigo 31 da Lei de Abuso de Autoridade, mas pode ocorrer responsabilização administrativa. Além disso, pode incidir, conforme o caso em “Prevaricação” (artigo 319, CP) ou “Condescendência Criminosa” (artigo 320, CP).
Gabriela Marques e Ivan Marques ofertam um excelente exemplo de benefício do investigado:

Podemos exemplificar uma hipótese em que o prazo da investigação foi renovado por tantas vezes que a punibilidade foi extinta pela prescrição da pretensão punitiva propriamente dita. E, nessa hipótese, questiona-se: qual foi o prejuízo para o investigado? Nenhum. Não há crime sem prejuízo. Pas de crime sans grief.

Nos casos de investigações criminais é interessante notar que se o Delegado de Polícia estender demais os prazos, mas mediante pedidos reiterados de renovação com concordância do Ministério Público e Judiciário, não se poderá, ao depois, pretender responsabilizar somente a Autoridade Policial, seja no campo criminal, em caso de dolo específico, seja nos campos administrativo e civil somente, em casos de culpa. O Promotor de Justiça e o Juiz também devem ficar atentos aos prazos legais e ao cumprimento do Princípio da Razoabilidade dos Prazos.

Muitas vezes essa procrastinação de investigações é um instrumento ou meio para o conhecido procedimento de “criar dificuldades para vender facilidades”. Nesses casos, se o agente público exige, recebe ou solicita vantagem indevida para acelerar ou ao menos dar andamento normal à investigação, haverá, conforme o caso, crimes de “Concussão” (artigo 316, CP) ou “Corrupção Passiva” (artigo 317, CP), bem como, com relação ao particular que ofertar ou prometer a vantagem, crime de “Corrupção Ativa” (artigo 333, CP). A nosso ver, envolvendo esses crimes o interesse da Administração Pública e sendo o crime do artigo 31 da Lei 13.869/19 “crime – meio” para a prática de infrações penais mais gravosas, deverá ser absorvido, não sendo o caso de concurso de crimes. Obviamente, o particular responsabilizado por “Corrupção Ativa” somente responderá por tal crime, já que não é agente público, mas “extraneus”.

Ressalte-se que o advogado que atua de forma a procrastinar o processo somente pode ser responsabilizado por litigância de má fé, sanção de natureza processual, já que não é “autoridade”, exercendo tão somente “munus público”. Mesmo os Defensores Públicos, dativos ou de convênio com a OAB que exercem função pública não podem cometer abuso de autoridade porque também não têm poderes, sendo apenas partes, respondendo tão somente pela sanção processual da litigância de má fé (vide artigo 142 c/c 79 a 81, CPC). Observe-se, porém, que o STJ tem entendido que, devido à inexistência de previsão de sanção para a litigância de má – fé no Código de Processo Penal, sua punição é inviável, pois constituiria analogia “in mallam partem”. Essas sanções somente seriam cabíveis, portanto, em causas cíveis. Ademais, a multa aplicável é referente à parte. Defensores públicos, advogados em geral, respondem administrativamente no âmbito de seus órgãos de classe ou corregedoria (artigo 77, § 6º., CPC).

Embora a lei não estabeleça um prazo determinado e, inclusive, o Parágrafo Único do dispositivo em estudo abranja casos em que não há realmente prazo legal, entende-se que, de acordo com a análise da situação concreta, trata-se de “crime a termo ou crime a prazo”, de forma que se consuma, em havendo prazo legal, a partir do primeiro momento de superação do prazo respectivo devido à protelação dolosa do autor. Nos casos em que não há prazo previsto, as situações deverão ser resolvidas individualmente com base na razoabilidade e na presença de indícios de procrastinação, consumando-se a infração no primeiro momento em que se constatar não andamento abusivo. O delito é material, pois é necessária a efetiva procrastinação com o estender injustificado da investigação para sua consumação, tratando-se de crime de resultado e não de atividade. A tentativa, embora crime material, não parece viável por tratar-se de “crime a termo ou a prazo”. Durante o tempo em que não há extensão do prazo não há crime, quando este se estende efetivamente o crime já se consuma imediatamente, não havendo espaço para a configuração do delito tentado. Entretanto, há que observar que a nossa interpretação rema contra a maré da maioria da doutrina especializada, a qual em geral não leva em consideração a característica de crime a prazo, o que, a nosso ver, “data maxima venia”, é um grande equívoco.

 


REFERÊNCIAS

ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Código Penal Anotado. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito Penal Parte Especial. Rio de Janeiro: Processo, 2017.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. 19ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

GRECO, Rogério, CUNHA, Rogério Sanches. Abuso de Autoridade. Salvador: Juspodivm,.2020. .

GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 8ª. ed. Niterói: Impetus, 2014.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

LIMA, Renato Brasileiro de. Nova Lei de Abuso de Autoridade. Salvador: Juspodivm, 2020.

MARQUES, Gabriela, MARQUES, Ivan. A Nova Lei de Abuso de Autoridade. São Paulo: RT, 2019.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 14ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro Parte Especial. Volume 2. 2ª. ed. São Paulo: RT, 2002.

SOUZA, Renee do Ó. Comentários à Nova Lei de Abuso de Autoridade. Salvador: Juspodivm, 2020.

STJ divulga entendimento sobre multa por litigância de má – fé no processo penal. Disponível em https://www.conjur.com.br/2018-fev-06/stj-divulga-entendimento-multa-litigancia-ma-fe, acesso em 12.06.2020.

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós Graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

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