terça-feira,16 abril 2024
ColunaElite PenalAbuso de autoridade e promiscuidade carcerária (Artigo 21 da Lei 13.869/19)

Abuso de autoridade e promiscuidade carcerária (Artigo 21 da Lei 13.869/19)

O artigo 21, “caput” da Lei 13.869/19 incrimina a conduta de quem mantém presos de ambos os sexos na mesma cela ou espaço de confinamento.

Certamente a inspiração de tal dispositivo se encontra em caso emblemático ocorrido no Pará quando uma Juíza de Direito permitiu que uma adolescente ficasse confinada em uma cela com 30 (trinta) homens. Disso resultou o óbvio. A adolescente foi torturada e violentada sexualmente. E, quase dez anos depois, a magistrada recebeu uma suspensão de dois anos, sem prejuízo dos vencimentos, pelo CNJ. A absoluta impunidade imperou magistralmente. Interessante notar que essa impunidade praticamente absoluta somente prevaleceu para a magistrada, porque os três Delegados de Polícia envolvidos no caso foram demitidos, perderam os cargos.

Com o novo dispositivo é previsto agora um crime que tem por objeto a tutela da Administração Pública, da integridade física, da vida, da liberdade sexual, da dignidade da pessoa humana. Entretanto, considerando a barbaridade e até mesmo a insanidade dessa espécie de abuso, consideramos que a pena prevista é por demais branda (mera detenção, de 1 a 4 anos, e multa).

A proibição é bilateral, ou seja, não é possível manter presa uma mulher com homens e nem um homem com mulheres. Tutela-se agora também no cenário criminal o dispositivo constitucional e da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84) que determina a separação de sexos nos estabelecimentos penitenciários ou de detenção provisória (vide artigo 5º., XLVII, CF c/c artigo 82, § 1º., LEP). Neste passo é bom lembrar que ao referir-se genericamente a “presos”, a prisão poderá ser definitiva ou provisória ou mesmo civil (dívida alimentícia) ou militar.

Os locais de recolhimento são , conforme a redação típica, a “cela” ou “espaço de confinamento”. Quanto à “cela” não parece haver dúvida sobre do que se trate. A expressão “espaço de confinamento” é incluída a fim de possibilitar a chamada “interpretação analógica” ou “intra legem”, impedindo que outros locais de custódia ou detenção, ainda que temporária, ficassem de fora da tipificação devido à legalidade estrita. Conforme bem esclarece Souza:
A parte final do caput fala em espaço de confinamento de modo a impedir que pessoas de diferentes sexos e idades sejam mantidas, conjuntamente, em qualquer unidade de encarceramento, como salas de distritos policiais ou unidades para execução de prisão especial como a sala de Estado – Maior das Forças Armadas ou ambiente constritivo de viatura policial etc. (grifos no original).

Inclusive, considerando a amplitude da expressão “espaço de confinamento”, é possível entender que a palavra “preso” pode ser estendida também “aos capturados e aos detidos”, considerando que “na etapa policial do processo penal” podem “ser encarcerados e conduzidos em compartimentos veiculares de constrição”.

Entendemos que, embora, como já dito, o tipo penal em estudo seja por demais brando em seu preceito secundário, há possibilidade de responsabilização da pessoa que mantém presos de ambos os sexos juntos, na figura de participação com dolo eventual em crimes de lesão corporal, homicídio, estupro etc. , configurando concurso material ou, pelo menos, formal impróprio de infrações (inteligência dos artigos 29, 69, 70 “in fine” e 18, I, “in fine”, todos do Código Penal). Além disso, em casos nos quais o preso(a) vem a experimentar privações e intenso sofrimento, como, por exemplo, aquele mesmo caso paradigmático em que a adolescente foi submetida a sevícias, abusos sexuais, espancamentos, queimaduras, humilhações etc., nada impede a responsabilização de todos os implicados por crime de tortura de pessoa presa ou submetida a medida de segurança, conforme descrito no artigo 1º., § 1º., da Lei 9.455/97. Nessa situação, embora o caso enfocado tenha sido certamente a motivação para a criação do tipo penal da Lei de Abuso de Autoridade em estudo, entendemos que se deva afastar o crime do artigo 21 da Lei 13.869/19 e prevalecer a tipificação do crime de tortura, sem prejuízo do concurso material ou, no mínimo, formal impróprio, com outros delitos, conforme já exposto. Note-se que no caso de crianças ou adolescentes, bem como mulheres grávidas, deficientes e idosos haverá causa de aumento de pena prevista na Lei de Tortura (artigo 1º., § 4º., I, da Lei 9.455/97). Outra causa de aumento será o fato de o sujeito ativo ser agente público, conforme artigo 1º., § 4º., I, da Lei de Tortura. Não se tratará de mera omissão perante a tortura, nos termos do artigo 1º., § 2º., da Lei 9.455/97, eis que se estamos tratando da conduta descrita inicialmente no artigo 21 da Lei de Abuso de Autoridade, deverá o infrator “manter” a pessoa presa indevidamente com outras do sexo oposto. Ora, o verbo “manter” é comissivo, indica ação e não omissão, ao passo que o crime do artigo 1º., § 2º., da Lei de Tortura é um crime omissivo próprio. No caso do verbo manter, o máximo que pode acontecer é a conduta omissiva imprópria ou comissiva por omissão.
Por felicidade o legislador se referiu à criminalização da manutenção em confinamento conjunto de presos de “sexo” diverso, não utilizando o conceito proteico e absolutamente indefinido de “gênero”. Portanto, o que importará será o sexo fisiobiológico das pessoas e não sua apreciação subjetiva quando ao gênero a que pertencem ou a que pretendem pertencer.

Efetivamente não é possível guiar uma conduta impeditiva de abusos por sendas psicologistas e subjetivistas. Isso seria um norte absurdo, ou melhor, uma falta absoluta de norte, colocando em grave risco as pessoas envolvidas.

Nos discursos da chamada “Ideologia de Gênero” é possível encontrar afirmações como as de Judith Butler, a qual atribui a meras “práticas reguladoras” a criação do que chama de “ficções médicas contemporâneas para designar um sexo unívoco”. E mais, com a sugestão de que até mesmo a “morfologia seria consequência de um sistema conceitual hegemônico”. Essa psicologização, mesclada com culturalismo, subjetivismo, relativismo, idealismo e delírios pretende impor a ideia de que sequer é possível identificar morfologicamente uma vagina ou um pênis. Tudo não passaria de convenções baseadas em ficções, configuradas por um pensamento hegemônico opressor. Butler sequer admite haver possibilidade de identificar o que constituiria a categoria básica de um universal a que se possa denominar de mulher. Afirma que “é muito pequena, afinal, a concordância quanto ao que constitui ou deveria constituir, a categoria das mulheres”. Como seria possível erigir uma regra de conduta carcerária com base num pensamento dessa estirpe?

Scala aponta a “origem ‘científica’ do termo gênero” na sua primeva utilização pelo médico John Money, pesquisador da John Hopkins University, de Baltimore (EUA). A utilização por Money da palavra “gênero” fugiu daquela exclusivamente gramatical para a afirmação de uma suposta “identidade de gênero” dependente “exclusivamente da educação recebida”, como um constructo social que pode divergir do sexo biológico do indivíduo.

As teorias mirabolantes que se vão formando em torno desse conceito indefinido de gênero vão cada vez mais se enredando em classificações sutis, as quais, ao invés de esclarecer, obscurecem ainda mais toda a pretensa teoria existente sobre o tema. Agora já se distingue identidade e expressão de gênero. A identidade de gênero seria uma espécie de “sensação privada”, interna, subjetiva, enquanto que a expressão de gênero constituiria “uma manifestação exterior”, propriamente as formas pelas quais a pessoa se expressa diante da sociedade, dos outros, nos ambientes etc. Quer dizer que também se pode distinguir entre um sexo biológico, uma identidade subjetiva e ainda uma expressão ou não dessa identidade. Novamente, torna-se impossível que essa espécie de pensamento possa regular qualquer norma de convivência humana, inclusive a carcerária.

Retornando a Butler, é possível constatar que em sua radicalização da questão é capaz de simplesmente apagar o conceito de sexo biológico, identificando-o com gênero e afirmando que jamais existiu. Senão vejamos:

Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio construto chamado “sexo” seja tão culturalmente construído quanto o gênero; a rigor, talvez o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e gênero revela-se absolutamente nula.

Diante de tal sandice, impossível não trazer à colação o questionamento formulado por Ricardo Dip, “in verbis”:

Há questões, para não faltar algum exemplo, que mereceriam uma justificativa racional: sempre me parecerá estranho que a “identidade biológica”, que é física, seja, segundo alguns, um constructo social, mas a “identidade psicológica”, não, e que se possa preferir esta àquela, não somente num plano individual, senão que imposto a toda a sociedade.

Foi realmente uma grande felicidade do legislador não ter feito menção a essa categoria de gênero e sim ao sexo, sob pena de, caso contrário, criar um emaranhado interpretativo inextricável. No mundo do gênero, nem mesmo à ciência natural é concedida passagem, sob a alegação de preconceito e opressão. Como explica Frascolla:
Enquanto áreas da biologia e da psicologia investigam diferenças naturais entre homens e mulheres, os estudiosos de gênero e queer insistem que ser homem ou mulher é construção social, e acusam de sexismo tais investigações (grifos no original).

Toda essa histeria paranoica, conforme destaca a escritora feminista Camille Paglia, chega a prejudicar até mesmo o feminismo, afastando-o do mundo real e gerando descrédito das suas pautas, não raramente justas. Em suas palavras:

Teóricos acadêmicos insuficientemente informados redefiniram o sexo e o gênero como fenômenos superficiais e fictícios dissociados da biologia e produzidos por forças sociais opressivas. Esta espécie de alucinação lançou a confusão entre os jovens e prejudicou seriamente o feminismo.

Não resta a menor sombra de dúvida quanto a haver acertado o legislador ao referir-se a “sexo” e não a “gênero” no dispositivo sob comento. E isso significa que se uma autoridade permitir a permanência em mesmo claustro de um homem que se afirma mulher e mulheres, estará cometendo o crime de abuso de autoridade previsto neste artigo. Da mesma forma se encarcerar uma mulher que se intitula homem com homens. É claro que dada a confusão generalizada criada pela chamada ideologia de gênero, ficará difícil comprovar o dolo específico exigido nos termos do artigo 1º., § 1º., da Lei 13.869/19. Mas, pode-se afirmar que ao menos sob o prisma objetivo o delito se configura.

Essa espécie de pusilanimidade diante do “politicamente correto” encontrável em certas decisões absurdas já levou a casos de estupros intramuros perpetrados por transexual masculino e até mesmo à gravidez de detentas.

Isso demonstra a correção da afirmação de Isaiah Berlin quanto ao fato de que “uma única experiência genuína destrói uma centena de volumes de especulação abstrata”.
É preciso pontuar, porém, que há decisões, inclusive do STF (HC 152.491, Min. Luis Roberto Barroso, DJe 16.02.2018), determinando a observância não somente do gênero constante do registro civil, mas daquele apenas declarado pelo detento (a) para que seja recolhido(a) em estabelecimento considerado adequado. Essa espécie de decisão, que abraça uma ideologia de gênero e se faz de surda e cega deliberadamente para os aspectos físicos, anatômicos e biológicos dos indivíduos é altamente violadora, especialmente dos direitos humanos das mulheres encarceradas, maiores vítimas de abusos potenciais. Nada impede que a população LGBT receba um tratamento especial, com encarceramento separado. O que não tem o menor cabimento é a inclusão de uma mulher (fisicamente falando) em meio a homens ou de um homem (fisicamente falando) em meio a mulheres. Os resultados desastrosos desses delírios eventualmente abraçados pelo mundo jurídico estão estampados para todos verem. E há que lembrar o velho dito popular que ensina que “o pior cego é aquele que não quer ver”. Frise-se que não há que questionar, porém, casos em que se constata realmente uma transexualidade genuína com dissonâncias hormonais e fenotípicas, submetida à avaliação médica, alteração do registro civil e dos genitais. Ora, nesses casos se está diante de um homem ou de uma mulher ao fim e ao cabo, inclusive com reconhecimento jurídico inequívoco. Tal pessoa deverá ser recolhida com aqueles(as) pertencentes ao seu “sexo”. Outra situação problemática, mas passível de solução pela avaliação sexual, é a dos hermafroditas. Nesses casos há que avaliar qual a prevalência sexual fenotípica, hormonal, comportamental etc. e alocar a pessoa no lugar que melhor satisfaça sua condição. Em qualquer caso, porém, deve-se ter em mente uma terceira via que consiste na separação de indivíduos de alguma forma indefinidos em um grupo especial, seja em um estabelecimento separado, seja em repartição específica de um dado estabelecimento.

Não se pode negar a realidade quanto ao fato de que transexuais, travestis e homossexuais das mais variadas denominações são frequentemente alvos de violência sexual e física nas prisões quando mantidos no convívio promíscuo com os demais detentos. Entretanto, a solução, obviamente, não está em adotar a ideologia de gênero e encarcerar homens biológicos com mulheres ou vice – versa e sim em adaptar as prisões para uma separação desses detentos e assegurar-lhes a integridade física e a liberdade sexual. Aliás, isso já é regulado pela Resolução Conjunta n. 1, de 15 de abril de 2014 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) e do Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD/LGBT). Tendo em vista a falta de menção na lei a respeito do descumprimento dessas normas de garantia dos pertencentes ao grupo LGBT, o Princípio da Legalidade impede a tipificação no artigo 21 da Lei 13.869/19. Essa é uma lacuna indesejável. O ideal seria que a manutenção dessa população prisional em separado em todo caso de violência ou risco fosse também tutelada penalmente. Na falta de norma específica na seara penal, há que considerar possível tipificação de “Constrangimento Ilegal” (artigo 146, CP) e também participação do responsável em concurso de agentes com dolo eventual nos casos de quaisquer violações sofridas pelo detento(a) (v.g. lesões corporais, homicídio, estupro etc.). Além disso, haverá certamente falta administrativa grave de acordo com os respectivos diplomas administrativo – disciplinares, passível de demissão a bem do serviço público, bem como a responsabilidade civil subjetiva do funcionário (dolo ou culpa) em solidariedade com a responsabilidade civil objetiva do Estado por eventuais danos morais e materiais sofridos.

Não obstante, cumpre destacar que também na doutrina, diante da própria Resolução conjunta acima mencionada, se defende a inclusão de transexual em cela com pessoas de seu sexo “social”, o que, a nosso entender, configura crime de abuso de autoridade (ressalvada a barreira do elemento subjetivo específico), até mesmo diante do Princípio da Legalidade (a lei se refere claramente a “sexo”, não há menção a gênero ou a “sexo social”). Não é possível sequer alegar inexistência de local separado. Ainda que seja necessário improviso isso tem de ser feito. As definições da Resolução Conjunta sobre as várias espécies de gênero não têm o condão de alterar a realidade biológico – física do sexo da pessoa e de eliminar os ingentes perigos da promiscuidade, conforme já tem demonstrado a experiência desse tipo de comportamento irresponsável. Nem mesmo o fato de que a Resolução Conjunta determina o respeito ao “nome social” da pessoa, significa que seu sexo foi alterado. Isso nada mais é do que abraçar um pensamento nominalista mágico e tosco. Respeitar o “nome social” de alguém é uma coisa, transformar por um condão mágico ou por palavras mágicas um ser masculino em feminino ou vice – versa é uma alucinação ideológica sem o mais mínimo sustento na realidade. É evidente que se uma pessoa prefere ser chamada por um nome x ou y em detrimento de seu nome de registro, se deve respeitar essa vontade, até mesmo por uma questão de educação e boa convivência, aliás, não somente no caso de travestis, transexuais etc., mas qualquer pessoa. Porém, se uma pessoa é chamada de Angelina Jolie, não é transformada por um processo místico na estrela de cinema. Ou se é chamada de Tiririca não se transforma no comediante e político. Aliás, sobre a questão do respeito ao nome sexual também existe o Decreto Federal 8.727/17, mas é óbvio que não se pode mudar o sexo de ninguém por decreto! Esse idealismo em confronto com a concretude do mundo da vida tem consequências terríveis, como já vem acontecendo nas unidades prisionais, sendo as maiores vítimas as mulheres.

Vale citar a constatação objetiva de Rand quanto ao fato de quão deletério pode ser o abandono ou desprezo da realidade em nome do puro desejo ou impressão subjetiva:
O irracional é o impossível; é o que contradiz os fatos da realidade; fatos não podem ser alterados por um desejo, mas podem destruir aquele que o deseja. Se um homem deseja e busca as contradições – se quer guardar o bolo e comê-lo ao mesmo tempo -, ele desintegra sua consciência; transforma sua vida interior numa guerra civil de forças cegas ocupadas com conflitos sombrios, incoerentes, sem sentido nem significado (grifo no original).

O grande problema é que ideias em geral não ficam apenas no plano abstrato, geram consequências concretas, muitas vezes cruéis e desastrosas, como nos casos de mulheres estupradas, quando não engravidadas por transexuais ou travestis devido à promiscuidade carcerária dos sexos. Weaver chama a atenção para o fato notório de que “a boa intenção é fundamental, mas não é suficiente”. E nesse embalo irresponsável, quando não agimos com covardia torpe, inclusive intelectual, o fazemos sem ter consciência do mal que estamos causando, pensando mesmo que estamos fazendo o bem, agindo como pessoas “maravilhosas”. Voltando a Weaver, fato é que, infelizmente estamos nos aproximando de “uma situação em que seremos amorais – sem ter capacidade de percebê-lo – e degradados – sem os meios para medir nossa decadência”. É preciso encarar a realidade e superar fantasias, sem prejudicar quem quer que seja, mas para isso é necessária coragem intelectual também para não se render a uma “espiral do silêncio” causada pelo medo da exclusão das opiniões hegemônicas impostas por grupos barulhentos.

Entretanto, veja-se o entendimento contrário de Greco e Cunha “in verbis”:

Já que se configura em abuso de autoridade manter presos de ambos os sexos na mesma cela ou espaço de confinamento, quando estivermos diante da prisão, por exemplo, de pessoa travesti, ou de preso ou presa transexual, e se não houver espaço de vivência específico para esse público, como poderá ser levado a efeito o encarceramento?
Utilizando as definições propostas na mencionada Resolução Conjunta, se estivermos diante da prisão de travesti, deverá ser respeitada sua identidade social (nome social, de acordo com seu gênero) e ser recolhida em cela feminina.

Se a hipótese for de preso ou presa transexual, deverá ser recolhido ou recolhida na cela que diga respeito ao seu gênero, a não ser que opte em permanecer na cela correspondente ao seu sexo anatômico.

Interessante notar como a realidade se impõe à consciência, ainda que por ato falho. No trabalho de Lessa, Moraes e Giudice, os autores fazem a defesa inicial de que deverá ser respeitado o gênero e desprezado o sexo biológico no caso de transexuais e travestis, referindo-se, num primeiro momento, ao “homem transexual e à mulher transexual” (“quod, sicut scriptum”) (grifo nosso). Mais adiante, porém, ao tratarem do tema novamente, abordando os “homens transexuais (sexo originalmente feminino, mas com identidade de gênero oposta ao seu sexo biológico)”, têm a percepção sobre as buscas pessoais que devem ser feitas por “policiais femininas”, dada a norma do artigo 249, CPP. Mas, não é só isso, fazendo, contraditoriamente, alusão aos regulamentos que determinam o tratamento de acordo com o gênero e não o sexo, apregoam que os homens transexuais (mulheres quanto ao sexo) devem ter sua “eventual condução ou detenção” separada dos “homens biológicos” (“quod, sicut scriptum”). No seguimento, retomam o tema dos “travestis e mulheres transexuais” e aplicam solução diversa, novamente pela preponderância do gênero, e isso usando o mesmo fundamento que são os regulamentos que determinam a prevalência do gênero sobre o sexo no tratamento dos presos (as)!

Ora, é evidente que na segunda orientação estão certos e visam preservar a integridade e liberdade sexual da mulher biológica com identidade de gênero oposta. O recolhimento de uma mulher com identidade de gênero masculino em meio a homens é visivelmente uma temeridade e a fragilidade da situação dessa pessoa salta aos olhos de forma avassaladora. Menor ou mais sutil é a visibilidade quando se pensa em um transexual masculino ou um travesti, segregado com mulheres. Mas, nesse caso, não é o transexual ou travesti quem corre risco, são as mulheres com ele confinadas, como já demonstrou a experiência prática. O olhar para essas situações não pode ser enviesado ou monocular, todos os ângulos devem ser considerados. Na verdade, a letra da lei, como já se disse, é absolutamente acertada ao referir-se ao “sexo” e não ao “gênero”. A fluidez, subjetividade e contradição com a realidade física e anatômica existente na orientação que segue o conceito de gênero sofre, inevitavelmente, a imposição pesada da objetividade dos fatos da vida.

De acordo com o Parágrafo Único do artigo 21 da Lei de Abuso de Autoridade, também incorre na mesma pena quem mantém na mesma cela, criança ou adolescente, juntamente com pessoa maior de idade ou em ambiente inadequado, infringindo os dispositivos protetivos do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). Observe-se que quanto aos menores não será necessário que sejam misturadas pessoas de sexos opostos, bastando para a configuração delitiva a permanência com maiores ou em local inadequado.

Também é inadmissível a mistura de menores com maiores, tendo em vista a necessidade de preservação dos primeiros, cuja faixa etária e de desenvolvimento psicológico e físico, em regra, os torna mais vulneráveis a violações de todas as espécies por parte de outros detentos mais velhos. Ademais, no Parágrafo Único não é incriminada somente a conduta de encarcerar o menor com maiores, mas também aquela de manter criança ou adolescente em “ambiente inadequado”, violando as garantias de salubridade e regras protetivas estabelecidas pelo ECA. A primeira parte do Parágrafo Único, que se refere à promiscuidade entre maiores e menores é completada pelas normas do ECA (artigos 123 e 185, §§ 1º. e 2º., da Lei 8.069/90), tratando-se de sua concretização por tutela penal. Mas, a segunda parte do mesmo dispositivo, que se refere ao “ambiente inadequado” constitui elemento normativo do tipo, que deve ser esclarecido mediante consulta às normas previstas na Lei 8.069/90 para a apreensão e internação de adolescentes, bem como para a permanência de crianças em quaisquer órgãos públicos ou privados. Ressalte-se o artigo 94, inciso IV, do ECA (Lei 8.069/90) que estabelece a obrigação das entidades de oferecer ambiente de respeito e dignidade ao adolescente. Não haverá dignidade e respeito se o local onde o menor permanecer não tiver banheiro, se a comida for de qualidade precária, se não houver local para descanso (cama, colchão etc.), se houver exposição a calor ou frio demasiados, se o local for insalubre por umidade, proliferação de pestes (ratos, baratas, pulgas, carrapatos etc.) ou devido à falta de higiene etc. Há quem entenda que essa segunda parte do Parágrafo Único configura “norma penal em branco” e não elemento normativo, ao que acrescentaríamos que, adotando essa tese, se trataria de uma “norma penal em branco em sentido lato (imprópria ou homogênea)”. Entretanto, ousa-se discordar. Para nós trata-se claramente de elemento normativo do tipo. Acontece que a expressão “ambiente inadequado” não necessita somente de uma complementação ou limitação de sentido, de um exercício reduzido à cognição, mas exige um esforço valorativo. Conforme leciona Bitencourt, elementos normativos “são aqueles para cuja compreensão é insuficiente desenvolver uma atividade meramente cognitiva, devendo-se realizar uma atividade valorativa. São circunstâncias que não se limitam a descrever o natural, mas implicam um juízo de valor. São exemplos característicos de elementos normativos expressões tais como ‘indevidamente’ (arts. 151, §1º, II; 162; 192, I; 316; 317, 319 etc.), ‘sem justa causa’ (arts. 153; 154; 244; 46; 248) ‘sem permissão legal’ (art. 292); ‘sem licença da autoridade competente’ (arts. 166 e 253); ‘fraudulentamente’ (art. 177, caput); ‘sem autorização’ (arts. 189; 193; 281 e 282); ‘documento’ (arts. 297; 298 e 299); ‘funcionário público’ (arts. 312; 331 e 333); ‘decoro’ (art. 140); ‘coisa alheia’ (arts. 155; 157) etc.”

Também chamando a atenção para a valoração em contraste com a cognição, encontra-se na doutrina estrangeira o ensinamento de Pavón,que, por seu turno, se abebera no escólio de Peter Cramer:

(…) La diferencia consistiria en la función que cumplen en cada uno de los distintos tipos: cuando estamos ante uma invocación a otras normas en la valoración de las características típicas, es un elemento normativo; por el contrario, cuando existe una remisión a otras disposiciones, estaremos ante una ley penal en blanco. Mientras los elementos normativos desempeñan una función interpretativa, la ley penal en blanco complementa o conforma el supuesto típico.

É de observar que a Lei 8.069/90 não permite, em hipótese alguma, a apreensão ou internação de criança, à qual somente tem cabida medidas protetivas. Dessa forma, quem encarcera criança, seja com maiores ou não, não pratica o crime do artigo 21, Parágrafo Único, da Lei 13.869/19, mas infringe ao artigo 230 da Lei 8.069/90 (ECA). Já quanto à segunda parte, é possível que se mantenha uma criança em um ambiente inadequado sem que esteja apreendida ou internada, podendo o infrator responder pelo crime da Lei de Abuso de Autoridade.

O caso paradigmático da Juíza que permitiu a permanência de uma garota numa cela com 30 homens, a qual foi torturada e estuprada por vários dias, não se esgota na questão da divergência sexual. A vítima também era uma adolescente que foi mantida em meio a prisioneiros maiores. A absurdidade da situação certamente foi inspiração para a redação tanto do “caput” como do Parágrafo Único ora em comento.

Os crimes previstos no artigo 21, “caput” e seu Parágrafo Único da Lei 13.869/90 podem ser praticados por Juízes, Promotores de Justiça, Delegados de Polícia, Diretores de Estabelecimentos Prisionais ou de cumprimento de Medidas Sócio – educativas, carcereiros, agentes penitenciários, policiais em geral, dentre outras autoridades que tenham função de recolher pessoas presas com a obrigação de observar as cautelas legais minimamente razoáveis.

O sujeito passivo dos ilícitos será o preso ou presa e a criança ou adolescente infratora de ambos os sexos que seja submetida a um encarceramento ou permanência a qualquer título em ambiente irregular. Embora a letra da lei faça menção apenas ao “preso”, há que perceber que a interpretação deve se dar de forma ampla, abrangendo a pessoa submetida a medida de segurança de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico (inteligência do artigo 96, I, CP). Observe-se que o estabelecimento em que a pessoa permanece é descrito como “de custódia”, de forma que a palavra “preso” usada na lei certamente abrange também essa situação. Forçoso reconhecer que no caso a lei disse menos do que pretendia (“lex minus dixit quam voluit”). Também se usarmos como parâmetro a Lei de Tortura, esta quando trata dessa conduta praticada contra pessoas de alguma forma “custodiadas”, abrange expressamente tanto presos como pessoas submetidas a medida de segurança (vide artigo 1º., § 1º., da Lei 9.455/97), inexistindo motivo para que seja diferente com relação ao abuso de autoridade (“ubi eadem ratio ibi idem jus”). Não obstante, poderá surgir entendimento de que por infração ao Princípio da Legalidade não haveria possibilidade de aplicação do artigo 21 da Lei de Abuso de Autoridade às pessoas submetidas a medida de segurança. Acaso prevaleça tal interpretação, a solução será a tipificação como Constrangimento Ilegal e a responsabilização por dolo eventual em concurso de pessoas (participação) com relação a eventuais crimes perpetrados contra o custodiado, sem prejuízo da eventual configuração do crime de tortura já mencionado.
Não será, contudo, alcançada pela lei em estudo a pessoa internada em estabelecimento psiquiátrico para fins de tratamento médico, nos termos da Lei 10.216/01. Nesse caso, não há similaridade alguma com a pessoa presa. Não se trata de estabelecimento de custódia, mas de mero tratamento. Pretender estender a norma a essa situação implicaria violação muito intensa da legalidade e distensão semanticamente inadequada da palavra “preso”. Mas, então em estabelecimentos psiquiátricos de tratamento por internação é permitido manter pessoas de sexos opostos em alas conjuntas? É claro que não. Haverá as devidas responsabilidades administrativas, civis e mesmo penais, mas de acordo com o casso concreto, podendo ocorrer, na seara criminal Constrangimento Ilegal, Tortura (mas agora nos termos ao artigo 1º., II, da Lei 9.455/97) ou participação, ainda que com dolo eventual, em crimes dos quais o indivíduo seja vítima (v.g. lesões corporais, homicídio, estupro etc.).

Observe-se que a pena aplicável é a mesma tanto para o “caput”, quanto para o Parágrafo Único e as condutas compõem um único tipo penal que, em seu conjunto, pode ser considerado um tipo misto alternativo, de conteúdo variado ou de ação múltipla. Dessa forma, se, como no caso famigerado da Juíza que encarcerou uma garota menor com homens maiores, houver infração concomitante ao “caput” e ao Parágrafo Único do mesmo dispositivo, não haverá dois crimes em concurso formal, mas crime único, devendo a questão da dupla violação legal ser levada em conta na dosimetria da pena – base, de acordo com o artigo 59, CP.

O crime previsto no artigo 21, seja em seu “caput” seja no seu Parágrafo Único, somente se configura na forma dolosa (dolo direto ou eventual). Inexiste figura culposa. Portanto, se o agente público deixa pessoas de ambos os sexos juntas em uma cela ou menores com maiores por negligência apenas, o fato será penalmente atípico, restando somente a responsabilização nas áreas civil e administrativa. Lembremos, contudo, que a omissão dolosa do agente público que toma conhecimento da irregularidade, configurará crime comissivo por omissão ou omissivo impróprio, já que tem o dever jurídico de agir, nos termos do artigo 13, § 2º., “a”, CP. Por outro lado, trata-se de “crime permanente”, pois a natureza do verbo “manter” permite que a consumação se protraia no tempo a depender da conduta do agente. A prisão em flagrante então pode ocorrer em qualquer momento após o início da irregularidade, ainda que já passados dias, meses ou até anos. O crime se consuma e se protrai temporalmente de forma similar ao sequestro e cárcere privado, extorsão mediante sequestro etc.

A consumação se dá com o recolhimento ou colocação indevida do preso ou do menor. Tratando-se de crime plurissubsistente é admissível a tentativa, a qual, porém, dificilmente ocorrerá na prática. Essa é a espécie de infração que, quando chega ao conhecimento de quem de direito para coibi-la, já está consumada há tempos.


REFERÊNCIAS

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Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós Graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

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