sexta-feira,19 abril 2024
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Abuso de autoridade : chave de leitura para a alma Ou o centro Nevrálgico da Lei

O artigo 1º. da Lei 13.869/19 expõe o objetivo das normas que a compõem, qual seja, o de incriminar as condutas constitutivas de “Abuso de Autoridade” por parte de “agente público”.

A primeira conclusão é a de que os crimes da Lei 13.869/19 são “próprios”, somente podendo ter por sujeito ativo “agente público”. Quando a legislação menciona que esse agente pode ser “servidor ou não”, isso significa que efetivamente se está adotando o conceito administrativo de agente público, que é bem mais amplo do que aquele de “funcionário público” ou “servidor público”, de forma que mesmo um indivíduo que exerça alguma função pública sem remuneração ou vínculo estatutário ou empregatício com o Estado, pode ser considerado sujeito ativo. Em um exemplo, mesmo um Conselheiro Tutelar em uma cidade em que a função não seja sequer remunerada e, como se sabe, é temporária, poderá praticar crimes de abuso de autoridade. Também o poderá, por exemplo, um estagiário do Ministério Público, do Judiciário ou de uma unidade policial. Note-se que não seria um “funcionário público”, mas seria um “agente público”.

Conforme leciona Andrade:

“Agentes públicos são todas as pessoas que, de forma definitiva ou transitória, remuneradas ou não, servem ao Poder Público como instrumentos de sua vontade”.

Resta claro que embora sejam crimes próprios, o conceito de “agente público” é amplo, assim como ocorre no Código Penal (artigo 327) quando conceitua “funcionário público” para fins penais, correspondendo à definição de “agente público.

Portanto, a Lei 13.869/19 segue a tradição do ordenamento jurídico brasileiro que adota um “sentido amplo de funcionário público, correspondente ao conceito doutrinário de agente público, que é toda pessoa física que, definitiva ou transitoriamente, exerce alguma função estatal”.

Os crimes de “Abuso de Autoridade” são espécies de “crimes funcionais” e a doutrina costuma dividir os crimes funcionais em “crimes funcionais próprios” e “crimes funcionais impróprios”. Não se deve confundir essa classificação dos “crimes funcionais”, que são todos “próprios”, com outra classificação, que diz respeito a crimes “próprios” e crimes “comuns”. Note-se, nesta última classificação, todo crime funcional é “próprio” e não “comum”, porque tem de ser cometido por “agente público”; exige, portanto, uma especial qualidade do sujeito ativo. Isso nada tem a ver com a classificação específica que subdivide os “crimes funcionais” (sempre próprios, na dupla próprio/comum) em “crimes funcionais próprios” e “crimes funcionais impróprios”.
Segundo ensinamento de Mirabete e Fabbrini:

Distinguem-se na doutrina os crimes funcionais próprios dos impróprios. Os primeiros têm como elemento essencial a função pública, indispensável para que o fato constitua infração penal. Sem ela a conduta seria penalmente irrelevante. São os casos de crimes de concussão, excesso de exação, prevaricação, corrupção passiva etc. Os crimes funcionais impróprios são os que se destacam apenas por ser o sujeito ativo funcionário público. Se o agente não estivesse revestido dessa qualidade o crime seria outro. O peculato nada mais é do que uma apropriação indébita praticada em decorrência da função pública…”.

De acordo com essa classificação, os crimes de abuso de autoridade seriam, em sua maioria, espécies de “crimes funcionais impróprios”, tendo em vista que as condutas descritas nos diversos tipos penais, acaso cometidas por pessoa que não seja funcionária pública não seriam fatos atípicos, mas crimes comuns, tais como sequestro e cárcere privado, constrangimento ilegal, lesões corporais, contravenção penal de vias de fato, crimes contra a honra etc. Há exceções em que são os crimes de abuso de autoridade crimes funcionais próprios, sempre que a conduta seja atribuição ou competência especial de um determinado agente público muito específico, tais como Delegados de Polícia, Juízes de Direito etc. Dessa forma, a mesma conduta praticada por particular é irrelevante criminalmente. Por exemplo, a obrigação de comunicar a prisão de alguém ao judiciário (artigo 12, da Lei de Abuso de Autoridade). O particular não comete crime algum se não faz essa comunicação, eis que não é seu mister.

Reitere-se que essa classificação dentro da qualidade de “crime funcional” não afasta a qualidade de “crime próprio” dos delitos de abuso de autoridade. Somente “agentes públicos” podem ser sujeitos ativos. Aquele que não é “agente público” somente poderá cometer crime de abuso de autoridade, acaso atue em concurso com um agente público, de acordo com o disposto nos artigos 29 e 30 do Código Penal, tal como ocorre de resto com todos os crimes funcionais e crimes próprios em geral. É claro que para que o “extraneus” responda pelo crime funcional, ele deve ter consciência de que atua em concurso com um “agente público”, eis que vigora em nosso sistema penal a responsabilidade subjetiva (inteligência do artigo 19, CP). Acaso o “extraneus” não saiba que atua com funcionário público, responderá normalmente por crime comum.

No caso específico dos crimes de abuso de autoridade não será suficiente a qualidade de agente público do sujeito ativo. Necessário é que seja um agente que emprega alguma parcela, ainda que pequena, do poder público. Um agente público não dotado de qualquer parcela do poder público equivale a um particular, pois que não poderá abusar daquilo que não tem. Ele então, somente poderá responder por Abuso de Autoridade em concurso com outro agente público dotado de poder ou autoridade, jamais de forma autônoma.
Neste sentido continua válido o ensinamento de Gilberto Freitas e Vladimir Freitas, comentando a revogada Lei 4898/65:
Mas, mesmo sendo funcionário público ou a ele assemelhado, tal circunstância, por si só, não será bastante para se reconhecer a figura da autoridade. Para tanto será necessário que o agente detenha uma parcela do poder de correção.

Realmente, somente poderá ser considerada autoridade, (…) o agente que no exercício de um cargo, emprego ou função pública, ainda que transitoriamente, tiver capacidade de determinar, de subordinar ou de se fazer obedecer.

Tanto é assim que autores que já comentam a novel legislação seguem a mesma orientação:
Importante frisar, ab initio, como já deixamos antever, que só se abusa daquilo que tem, ou seja, somente pratica o abuso de poder o agente que, antes, detinha o poder, mas que dele abusou, conforme esclarece a última parte do caput do art. 1º. da lei em estudo, quando menciona o fato de ter o agente abusado do poder que lhe tenha sido atribuído”.
Por exemplo, digamos que um prestador de serviços gerais de limpeza contratado pela administração pública se desentenda na repartição com um cidadão e o agrida fisicamente. Não responderá por nenhuma modalidade de abuso de autoridade, mas por crime de lesão corporal ou contravenção penal de vias de fato, conforme o caso. Isso porque, na qualidade de prestador de serviços gerais de limpeza, embora atuando em prestação de serviço para o Estado e podendo ser considerado formalmente um “agente público”, não tem, porém, qualquer parcela de autoridade ou poder da qual possa abusar. Por outro lado, “agentes públicos” como Promotores de Justiça, Juízes de Direito, Policiais em Geral, Delegados de Polícia, Agentes de Trânsito, Guardas Municipais entre outros, são certamente dotados de menor ou maior parcela do poder público, podendo perfeitamente abusar de suas funções e incidir na incriminação especial da Lei 13.869/19.
Enfim, o “abuso de autoridade ou de poder” ocorrerá “quando a autoridade, embora competente para praticar o ato, ultrapassar os limites de suas atribuições ou se desviar das finalidades administrativas”.
O artigo 1º. da Lei 13.869/19 é cristalino neste aspecto. Afirma que incorre em suas penalidades o agente público que perpetre abuso no exercício efetivo das funções ou a pretexto de exercê-las, ou seja, podendo estar no exercício inicialmente legítimo de suas atribuições ou competências ou mesmo desviando-se delas. Assim sendo, são previstas as duas espécies do gênero “abuso de poder ou de autoridade”, quais sejam, o “excesso de poder” ou o “desvio de finalidade”.
Superadas essas questões, partimos para o que podemos chamar do “centro nevrálgico” da novel legislação de abuso de autoridade, aquilo sem o que os tipos penais descritos no decorrer do diploma, em uma alegoria religiosa ou espiritualista seria o correspondente a um “corpo sem alma”, ou, para aqueles mais afetos à imanência ou ao materialismo, um “corpo em estado de morte encefálica”, em suma, um verdadeiro “cadáver jurídico”.
O que dá vida a todos os tipos penais previstos nessa legislação é o elemento subjetivo específico previsto no § 1º. do artigo 1º.. Os crimes de abuso de autoridade, a exemplo do que já ocorria na revogada Lei 4.898/65, são informados pelo dolo, não existindo modalidade culposa.
Como se sabe, o dolo pode ser genérico ou específico. Normalmente “os fins particulares que podem ter levado a pessoa a agir não são (…) considerados como elementos constitutivos da noção de dolo”. Eis o dolo genérico. Quando, porém, “a lei adota um determinado fim ou um determinado escopo como elemento constitutivo do crime, estamos no campo do dolo específico”.
Pois bem, os crimes de abuso de autoridade são necessariamente informados pelo dolo específico previsto no artigo 1º., § 1º. da Lei 13.869/19 e sem essa especial finalidade de agir não subsiste crime algum de abuso de autoridade.
Todas as condutas previstas como abuso de autoridade pela Lei 13.869/19 devem ser cometidas pelo agente público com o especial fim de:
a)Prejudicar outrem;
b)Beneficiar a si mesmo ou a terceiro;
c)Por mero capricho ou satisfação pessoal.
Isso significa que ainda que alguém possa se sentir vítima de um abuso por parte de qualquer autoridade, se não ficar comprovada alguma dessas finalidades específicas, não haverá crime. Esse dolo específico componente obrigatório de todos os delitos da lei em destaque, impede a responsabilização penal culposa e mesmo o chamado dolo eventual. Somente o dolo direto e específico será viável a conformar o abuso de autoridade. Se o agente público atua considerando sua conduta como lícita, ainda que esteja enganado, se não age com má fé explícita e escancarada, inexiste crime.
No mesmo sentido se manifestam Greco e Cunha:
Talvez com o fim de espancar algumas pertinentes críticas, logo no seu artigo inaugural, a Lei 13.869/19 anuncia que a existência do crime depende de o agente comportar-se abusivamente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. Eis o elemento subjetivo presente nos vários tipos incriminadores, restringindo o alcance da norma de tal forma que, a nosso ver, o dolo eventual fica descartado (grifo nosso).
E mais adiante, sobre a questão da culpa:
Por fim, advertimos que não existe infração penal culposa. A ocasional negligência na atuação funcional poderá caracterizar ato ilícito civil e/ou administrativo, punido na seara extrapenal.
Na verdade, embora se tenha criticado a legislação como um imbróglio surgido em meio ao atingimento de uma casta privilegiada de criminosos de colarinho branco, visando à intimidação e engessamento das autoridades estatais, a verdade é que se essa intenção escusa existia (e tudo indica que sim), acabou se tornando uma espécie de “tiro no pé”, já que a comprovação desses elementos subjetivos específicos em todo caso concreto será bastante dificultosa, tornando quase inviável a responsabilização de autoridades pelos crimes da lei, salvo em casos gritantes. E afinal, ninguém pode realmente ser a favor de que uma autoridade pública atue com essas finalidades espúrias e permaneça impune ou ainda que seus atos sejam válidos. Esse diagnóstico sobre a dificuldade de comprovação do dolo específico nos casos concretos leva o autor Guilherme de Souza Nucci e entender que a nova legislação “blinda” ainda mais os agentes públicos com relação a eventual responsabilização criminal por abusos.
Outro aspecto relevante é que o legislador merece o reconhecimento por haver tomado as cautelas necessárias para evitar a possibilidade de punição de qualquer agente público pelo chamado “crime de hermenêutica”. Isso é operado nos termos do § 2º. do artigo 1º. da Lei 13.869/19.
Ao afiançar que “a divergência na interpretação da lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”, o legislador impediu que quando agentes públicos, no exercício de suas funções, fundamentadamente, praticarem atos que considerem legais, segundo sua interpretação razoável, não possam ser responsabilizados criminalmente, ainda que haja alguma reforma ou revisão de suas decisões antecedentes. Afinal, “interpretar não pode ser caracterizado como crime de hermenêutica”.
Suponha-se, por exemplo, que um Promotor de Justiça oferte uma denúncia e esta venha a ser rejeitada pelo Juiz e, mesmo diante de Recurso em Sentido Estrito, a decisão judicial seja corroborada. Imagine-se mais: a conduta apontada como criminosa pelo Promotor foi considerada como fato nitidamente atípico pelo Judiciário, razão pela qual a denúncia não foi recebida. Não havendo comprovação de dolo específico já mencionado e se tratando de questão passível de controvérsia jurídica, não há falar em ato abusivo. O mesmo poderia ocorrer no caso de uma Prisão em Flagrante lavrada pelo Delegado de Polícia, a qual é relaxada pelo Juiz, por exemplo, por reconhecimento de atipicidade da conduta do preso. Ora, se a Autoridade Policial agiu com base em seu convencimento jurídico, ainda que divergente do Judiciário e do Ministério Público, ainda que embasada em corrente doutrinária e jurisprudencial minoritária, esse entendimento jurídico não configurará crime. E não poderia jamais configurar, sob pena de não somente manietar as autoridades públicas em geral, como também de tornar o próprio Direito uma espécie de bloco dogmático imutável e insuscetível de interpretação e análise crítica, até mesmo de adequação a casos concretos distintos em algum ponto de uma tese já conformada de forma pacífica.
Não se pode deixar de transcrever a lição de Rui Barbosa, conhecido precursor da crítica aos chamados “crimes de hermenêutica”. O texto se refere aos magistrados e às consequências que surgiriam da reforma de suas decisões que não se adequassem a um determinado pensamento, mas é válida para todo agente público no limite de suas atribuições:
Para fazer do magistrado uma impotência equivalente, criaram a novidade da doutrina, que inventou para o juiz os crimes de hermenêutica, responsabilizando-o penalmente pelas rebeldias da sua consciência ao padrão oficial no entendimento dos textos. Esta hipérbole do absurdo não tem linhagem conhecida: nasceu entre nós por geração espontânea (…) Se o julgador, cuja opinião não condiga com a dos seus julgadores na análise do direito escrito, incorrer, por essa dissidência, em sanção criminal, a hierarquia judiciária, em vez de ser a garantia da justiça contra os erros individuais dos juízes, pelo sistema de recursos, ter-se-á convertido, a benefício dos interesses poderosos, em mecanismo de pressão, para substituir a consciência pessoal do magistrado, base de toda a confiança na judicatura, pela ação cominatória do terror, que dissolve o homem em escravo (grifo nosso).
A lição é preciosa e válida, como já dito, não somente para os Juízes, mas para todo agente público, no limite de suas atribuições, que necessite aplicar normas legais e interpretá-las em seu dia a dia.
Grego e Cunha chamam a atenção para a já corrente discussão quanto à natureza jurídica do § 2º. do artigo 1º. da Lei 13.869/19:
Já se discute na doutrina a natureza jurídica do § 2º. do art. 1º.. Para uns, trata-se de causa excludente de ilicitude. Ousamos discordar. Essa corrente opera em evidente equívoco. É que, se o citado parágrafo exclui a ilicitude, então foi confirmada a tipicidade. Presente a tipicidade, forçoso concluir que o agente ou autoridade agiu (ou não agiu) com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal. Parece desarrazoado. Entendemos, com o devido respeito, que o § 2º. exclui o dolo caracterizador do crime. Não sem razão foi colocado logo em seguida, topograficamente, ao parágrafo que cuida da finalidade especial que anima o agente ou a autoridade. Logo, a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas exclui o dolo configurador do crime de abuso de autoridade.
A nosso ver têm plena razão os autores supra mencionados. A conduta adequada ao § 2º. é clara e evidentemente atípica e obviamente está dela totalmente afastado o dolo específico que compõe o elemento subjetivo do tipo. Exercita ali o agente público sua função legítima na interpretação e aplicação da lei e na avaliação dos casos com que concretamente se depara.
Na verdade por qualquer referencial teórico que se pretenda escolher a conclusão é pela exclusão da tipicidade.
A argumentação de Greco e Cunha, à qual nos filiamos, adere à chamada “Teoria Finalista”, com a configuração do dolo como elemento do tipo. Na dicção de Welzel, ao analizar o “tipo subjetivo” e o “dolo como elemento da ação finalista:
Toda ação consciente é levada pela decisão de ação, ou seja, pela consciência de que se quer – o elemento intelectual -, e a decisão de querer realiza-lo – o elemento volitivo. Ambos elementos juntos, como fatores criadores de uma ação real, constituem o dolo. A ação objetiva é a execução finalista do dolo. Esta execução pode ficar detida em seu estado inicial: na tentativa, aqui o dolo vai mais além do alcançado. Quando a decisão do fato é executada de maneira completa, até seu final, estamos diante do fato consumado. Aqui, todo o fato não é somente desejado com dolo, mas também realizado com dolo. O dolo é, em toda sua extensão, um elemento finalista da ação.
Mas, se por acaso seguirmos o caminho da chamada “Teoria da Imputação Objetiva”, a conduta do agente público acobertada pelo disposto no § 2º., do artigo 1º., da Lei 13.869/19, constitui certamente o que se chamaria de um “risco permitido”, elemento normativo constante dos tipos penais, cuja ausência conduz também à atipicidade. Entre correr o risco de que agentes públicos tomem decisões que eventualmente possam ser corrigidas por meio de recursos e reformas e engessar esses agentes, de modo a torná-los autômatos e até mesmo desprovidos de iniciativa humana no seu trato com os casos concretos, é induvidosamente preferível assumir o risco de eventuais necessidades de correção. Como ensina Roxin:
O resultado causado pelo autor só deve ser imputado ao tipo objetivo se o comportamento do autor criar um perigo para o objeto da ação, não compreendido no risco permitido, e este perigo se realizar no resultado completo.
Finalmente, se tomamos o rumo da chamada “Tipicidade Conglobante”, novamente se chega à inevitável conclusão de que a conduta albergada no § 2º. do artigo 1º. da Lei de Abuso de Autoridade é fato atípico. Afinal, ao agente público não somente é permitido solucionar fundamentadamente, com base em sua interpretação das normas, cada caso concreto que se lhe apresente. Também é sua obrigação legal e funcional assim agir, sob pena de responsabilização administrativa e até mesmo penal (v.g. prevaricação, condescendência criminosa etc.). Assim sendo, o ordenamento jurídico não somente permite tal conduta dos agentes públicos, como, analisado globalmente, determina essa espécie de conduta.
De acordo com o escólio de Zaffaroni e Pierangeli:
O juízo de tipicidade não é um mero juízo de tipicidade legal, mas que exige um outro passo, que é a comprovação da tipicidade conglobante, consistente na averiguação da proibição através da indagação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente, e sim conglobada na ordem normativa. A tipicidade conglobante é um corretivo da tipicidade legal, posto que pode excluir do âmbito típico aquelas condutas que apenas aparentemente estão proibidas (…).
A função deste segundo passo do juízo de tipicidade penal será, pois, reduzi-la à verdadeira dimensão daquilo que a norma proíbe, deixando fora da tipicidade penal aquelas condutas que somente são alcançadas pela tipicidade legal, mas que a ordem normativa não quer proibir, precisamente porque as ordena ou as fomenta (grifo nosso).
Assim sendo, o agente público não comete fato típico quando atua sob o manto do disposto no artigo 1º., § 2º., da atual Lei de Abuso de Autoridade.
Importa salientar, em conclusão, que sem esse elemento subjetivo específico previsto no artigo 1º., § 1º., ou havendo abrigo na excludente de tipicidade do § 2º., do mesmo dispositivo, inexiste crime de abuso de autoridade. E isso é um grande contributo à higidez do nosso ordenamento jurídico penal, especialmente no que remete a um equilíbrio entre a contenção de excessos e a insuficiência protetiva do sistema.


REFERÊNCIAS

ANDRADE, Flávia Cristina Moura de. Direito Administrativo. São Paulo: Premier Máxima, 2005.

BARBOSA, Rui. Obras Completas. Volume XXIII. Tomo III. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1976.

BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Trad. Edméia Gregório dos Santos. Campinas: RED Livros, 2000.

COGAN, Arthur. Crimes contra a administração pública. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003.

FREITAS, Gilberto Passos de, FREITAS, Vladimir Passos de. Abuso de Autoridade. 7ª. ed. São Paulo: RT, 1997.

GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 12ª. ed. Niterói: Impetus, 2018.
MARQUES, Gabriela, MARQUES, Ivan. A Nova Lei de Abuso de Autoridade. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 16ª. ed. São Paulo: RT, 1991.

MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume III. 28ª. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

NUCCI, Guilherme de Souza. Lei de Abuso de Autoridade blinda ainda mais o agente público. Disponível em http://www.guilhermenucci.com.br/artigo/lei-de-abuso-de-autoridade-blinda-ainda-mais-o-agente-publico, acesso em 16.12.2019.

OLIVEIRA E COSTA, Paulo Sérgio de, OLIVEIRA, Willian Sampaio. Direito Penal – Crimes contra a Administração Pública. 2ª. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

ROXIN, Claus. Funcionalismo e Imputação Objetiva no Direito Penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.

WELZEL, Hans. Direito Penal. Trad. Afonso Celso Rezende. Campinas Romana, 2003.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro Parte Geral. 5ª. ed. São Paulo: RT, 2004.

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós Graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

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