quinta-feira,28 março 2024
ArtigosA responsabilidade civil na Sala de Cirurgia

A responsabilidade civil na Sala de Cirurgia

Por Sérgio de Freitas Carneiro Filho*

 

A facilitação do acesso à justiça, o aparelhamento da Defensoria Pública, a facilidade de acesso a um advogado e um melhor esclarecimento da população sobre seus direitos vêm ensejando um crescimento exponencial da judicialização da saúde.

É fácil ver o crescimento de tais ações, mormente ações que visam indenizações por erro médico. No âmbito do STJ, por exemplo, o número de casos de especificamente de erro médico passaram de 466 em 2015 para 589 em 2016. Em 2017 foram computados 26 mil processos.(PORTAL TERRA, 2018)[1]

Nos Juízos de primeiro grau foram protocoladas 70 ações por dia, sobre erro médico, no ano de 2016.

Apesar de sabermos da existência de inúmeros atos que podem ser praticados por médicos que ensejariam sua responsabilidade civil (erros de condutas, procedimentos e diagnósticos, por exemplo), o presente artigo visa debater, apenas, a responsabilidade civil do médico em cirurgia. Os outros temas serão objetos em trabalhos posteriores.

Pois bem, a responsabilidade civil é a obrigação de reparar o dano que uma pessoa causa a outra. O dano da responsabilidade civil pode ser tanto material, como moral ou estético.

O primeiro tem cunho pecuniário, ou seja, é o efetivo prejuízo financeiro sofrido pela vítima. Ele pode ser dividido em danos emergentes e lucros cessantes.

Os danos emergentes é o prejuízo financeiro imediato da pessoa. De outra banda, os lucros cessantes é tudo aquilo que a parte prejudicada deixou de ganhar. As duas figuras estão prevista no Art. 402 do Código Civil/22:

Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.
(Código Civil, 2002)[2]

Já o dano moral é quando o que é atingido é a honra, o psíquico, a moral, o intelecto ou o subjetivo. Frise-se, todavia, que tal abalo não pode ser um mero dissabor do cotidiano, pois tal fato não configura dano moral, ficando ao encargo do Poder Judiciário a análise de cada caso:

REMESSA NECESSÁRIA E RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE COBRANÇA C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – SERVIDORA PÚBLICA – CARGO COMISSIONADO – EXONERAÇÃO APÓS A CONFIRMAÇÃO DA GRAVIDEZ – PODER DISCRICIONÁRIO – VERBAS RESCISÓRIAS – GARANTIA CONSTITUCIONAL – MERO DISSABOR NÃO CARACTERIZA DANO MORAL – SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA – VERBA HONORÁRIA REDUZIDA – SENTENÇA RETIFICADA EM PARTE – RECURSO PREJUDICADO.

  1. A servidora gestante e ocupante de cargo em comissão tem direito à estabilidade provisória durante todo o período gestacional até o quinto mês após o parto, garantindo-lhe o pagamento de indenização se for exonerada dentro desse período.
  2. 2. A não demonstração acerca da ocorrência do abalo psicológico eventualmente suportado pela parte autora, não enseja dano moral. 3. Havendo pedido de indenização por danos materiais e morais, o acolhimento de uma delas configura sucumbência recíproca.
  3. Admite-se a redução do valor dos honorários advocatícios quando fixados em demasia. [3]

(TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO MATO GROSSO, 2017)

Por fim, o dano estético é derivado do dano à integridade física da vítima. Frise-se que as três modalidades de danos são completamente independentes e autônomas podendo o ofendido, se configurado os três tipos de danos, pleitear todos na Justiça.

A responsabilidade civil ela é dividida em responsabilidade civil subjetiva e responsabilidade civil objetiva.

Na responsabilidade objetiva o ofendido precisa provar: a) o dano que sofreu; b) o ato ou omissão daquele que ele indica como causador do dano; e c) nexo causal, ou seja, que o ato ou omissão causou o dano;

De outra banda, quando há uma relação dirimida pela responsabilidade civil subjetiva o ofendido que pleiteia a indenização deve comprovar, além de todos os requisitos elencados acima, a culpa do suposto causador do dano.

A culpa fica configurada quando o agente age com negligência (atua de forma relapsa), imprudência (atua de forma precipitada) ou imperícia (atua de forma tecnicamente errônea).

Outro ponto importante de se destacar é que existe uma diferenciação entre obrigação de meio e obrigação de resultado. A obrigação de meio é aquela em que o sujeito se compromete em se utilizar de todos os meios adequados, cuidadosos e assertivos possíveis para alcançar o resultado desejado, sem prometer o resultado final, sendo tal responsabilidade subjetiva. Esta é a obrigação, por exemplo, do advogado, grande parte dos médicos etc.

Tal obrigação, no âmbito dos médicos, está prevista no Estatuto de Ética Médica, Resolução 1.931 do Conselho Federal de Medicina, de 24 de setembro de 2009:

É vedado ao médico:

Art. 32. Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.[4]
(RESOLUÇÃO 1.931 DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICNA, 2009)

Já a obrigação de resultado é aquela que o profissional promete um resultado definido final, sendo tal responsabilidade objetiva. Neste caso podemos exemplificar com os cirurgiões plásticos.

Neste trabalho iremos tratar apenas dos cirurgiões que estão inclusos na obrigação de meio, ou seja, não falaremos dos cirurgiões plásticos.

E se o cirurgião se ver acionado judicialmente, que tipo de responsabilidade civil será imputada a ele?

O próprio Código de Ética Médica assim dispõe:

Capítulo III
RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL

É vedado ao médico:

Art. 1º Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.

Parágrafo único. A responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida.
(RESOLUÇÃO 1.931 DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICNA, 2009)[4]

Veja que o código compõe, como requisito para caracterização de sua responsabilidade, a imperícia, imprudência e negligência que são as modalidades da culpa. Isto é, o Código de Ética Médica adota  a responsabilidade civil subjetiva.

 

Porém, existe um certo debate neste tema.

 

Alguns juristas afirmam que existe um certo confronto de normas no que pertine ao tipo de responsabilidade do médico cirurgião, posto que o Código Civil, apesar de adotar, como regra geral, a responsabilidade civil subjetiva, utilizando a responsabilidade objetiva apenas em casos específicos, a responsabilidade do médico estaria inclusa, justamente, em uma dessas exceções.

 

Eles embasam tal argumento no Art. 927, parágrafo único, CC/22:

Art. 927. […]

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
(CÓDIGO CIVIL, 2002)[2]

Afirmam que a atividade de cirurgião estaria inclusa na atividade de risco, previsto no dispositivo acima, o que ensejaria a responsabilidade objetiva – independentemente de culpa – dos médicos cirurgiões.

Assim afirma Celso Oliveira:

Se o médico, no exercício regular de sua profissão, ocasionar danos ao seu paciente, será obrigado a indenizar, desde que fique provado o nexo de causalidade entre a conduta danosa e o resultado. Com a inovação do Novo Código Civil (Lei 10.406/02), no parágrafo único do artigo 927, admite-se, hoje, a responsabilidade objetiva quando a atividade desenvolvida pelo autor do dano, implicar, por sua natureza, riscos para o direito de outrem. Ora, a atividade médica, por sua própria natureza, implica em riscos para o direito de seu paciente, dentre eles, o mais importante é o direito à vida; logo, por esse artigo, deverá ser responsabilizado objetivamente se causar danos ao paciente [5]

Todavia, penso que tal dispositivo não deve ser aplicado aos cirurgiões, posto que a natureza da sua atividade não implica risco para os direitos de outrem, pelo contrário, implica em solução. É através da atividade médica que o paciente tem a solução de sua doença. Aplicar tal dispositivo aos profissionais da saúde é inverter por completo os valores da atividade médica, considerando sua atividade, em vez de um benefício um malefício para a sociedade, o que não me parece adequado.

Ademais, a relação do médico particular com o paciente é regida pelo Código de Defesa do Consumidor – CDC. Nesses casos, o próprio CDC aplica a responsabilidade subjetiva aos profissionais liberais, que é o caso dos médicos:

Art. 14. […].
A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.[6]

Assim, temos que a responsabilidade civil do cirurgião, ao meu ver, é subjetiva, isto é, cabe ao paciente comprovar sua negligencia, imprudência e imperícia, caso venha a pleitear no Poder Judiciário eventual dano.

É oportuno citar a lição de Sérgio Cavalieri Filho[7]:
Em seu sistema de responsabilidade objetiva, o Código do Consumidor abre exceção em favor dos profissionais liberais no 4º do seu art. 14 (…). Vale dizer, os profissionais liberais, embora prestadores de serviço, respondem subjetivamente. No mais, submetem-se aos princípios do Código – informação, transparência, boa-fé etc.

Quem é o profissional liberal? É preciso ser portador de diploma superior (médico, advogado, dentista, engenheiro etc.) para ser considerado profissional liberal? Há quem assim sustente; em nosso entender, sem razão. Profissional liberal, como o próprio nome indica, é aquele que exerce uma profissão livremente, com autonomia, sem subordinação. Em outras palavras, presta serviço pessoalmente, em caráter permanente e autônomo, por conta própria e sem vínculo de subordinação, independentemente do grau de intelectualidade ou de escolaridade. Não é só o médico, o advogado, o engenheiro, o psicólogo, o dentista, o economista, o professor, o enfermeiro, o consultor podem ser profissionais liberais, mas também o eletricista, o pintor, o sapateiro, o carpinteiro, o marceneiro, o mecânico, a costureira, desde que prestem serviço com autonomia, sem subordinação – enfim, por conta própria. Pela ótica do Código, o melhor caminho é definir profissional liberal pelas características de sua prestação de serviços, e não pelo seu grau de escolaridade, ou pelo enquadramento na regulamentação legal.

Por que o profissional liberal foi excluído do sistema geral da responsabilidade objetiva? Essa é outra questão que suscitou controvérsia, mas hoje está pacificada. A atividade dos profissionais liberais é exercida pessoalmente, a determinadas pessoas (clientes), intuitu personae, na maioria das vezes com base na confiança recíproca. Trata-se, portanto, de serviços negociados, e não contratos por adesão. Sendo assim, não seria razoável submeter os profissionais liberais à mesma responsabilidade dos prestadores de serviço em massa, empresarialmente, mediante planejamento e fornecimento em série. Em suma, não se fazem presentes na atividade do profissional liberal os motivos que justificam a responsabilidade objetiva dos prestadores de serviços em massa.

Assim, tem-se que a corrente mais acertada é considerar que a responsabilidade do cirurgião é subjetiva, ou seja, prescinde da prova da culpa.

Quanto a casos específicos de erros médicos já julgados pelo Poder Judiciário, trago abaixo alguns exemplos.

O Superior Tribunal de Justiça – STJ já considerou como erro médico a ensejar danos morais, por negligência, o médico que esquece compressas cirúrgicas dentro do paciente:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ARTS. 489 E 1.022 DO CPC/2015. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO. SUFICIENTE FUNDAMENTAÇÃO. CONCLUSÃO DO ACÓRDÃO PELA CONFIGURAÇÃO DE ERRO MÉDICO. ESQUECIMENTO DE COMPRESSA CIRÚRGICA NA REGIÃO DO TÓRAX. FALECIMENTO DO PACIENTE. DANOS MORAIS SOFRIDOS PELA VIÚVA. REVER O JULGADO. IMPOSSIBILIDADE. MATÉRIA QUE DEMANDA O REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. ÓBICE DA SÚMULA 7/STJ. APRECIAÇÃO DE PROVAS PELO MAGISTRADO. PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO. PRECEDENTES. SÚMULA 83/STJ. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. 1. A violação ao art. 1.022 do Código de Processo Civil de 2015 não ficou configurada, visto que o aresto recorrido adotou fundamentação suficiente para dirimir integralmente a controvérsia, declinando os motivos pelos quais concluiu pela responsabilidade civil da ora agravante caracterizada pelo erro médico. 2. A revisão da conclusão firmada pelo Tribunal de origem, para analisar o laudo pericial produzido nos autos e concluir diversamente do diagnóstico atestado pelo exame produzido pelo IML, não dependeria de mera valoração de provas, mas, sim, de verdadeiro reexame de matéria fático-probatória, pretensão que encontra óbice na Súmula 7/STJ. 3. Agravo interno improvido.[8]
(SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2018)

O mesmo Tribunal já confirmou uma condenação de um médico que, durante o procedimento cirúrgico, comete imperícia e causa a perda da visão de um olho do paciente:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ERRO MÉDICO. PERDA DA VISÃO DE UM OLHO DA PACIENTE. AÇÃO INDENIZATÓRIA. ART. 535 DO CPC/1973. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO. VALIDADE DO ATO CITATÓRIO. RECEBIMENTO EM PORTARIA PELO FUNCIONÁRIO ENCARREGADO. CONCLUSÃO DO ACÓRDÃO PELA CONFIGURAÇÃO DO ERRO MÉDICO E PELA RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL. REVER O JULGADO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. 1. O acórdão estadual firmou premissa quanto à validade do referido ato citatório, de modo que não há como acolher a irresignação sem adentrar no conjunto probatório dos autos, providência vedada no âmbito do recurso especial, consoante a Súmula n. 7 do STJ. 2. A convicção a que chegou o Tribunal de Justiça, em relação à configuração do erro médico e ao consequente dever de indenizar do ora recorrente, decorreu da análise do conjunto fático-probatório, levando-se em conta que o procedimento cirúrgico realizado causou sérios danos oftalmológicos à recorrida, culminando na perda da visão de um olho. Por esta perspectiva, o acolhimento da pretensão recursal demandaria o reexame do referido suporte, o que esbarraria na Súmula n. 7 desta Corte. 3. Agravo interno improvido.[9]

Percebe-se que em todos esses julgados se aplicou a teoria subjetiva da culpa nos erros médicos.

Outro ponto importante de se debater é que o médico cirurgião tem o DEVER de informar ao paciente TODOS os riscos do procedimento cirúrgico, antes do procedimento, para que o paciente possa ter o direito de escolher que tipo de conduta terapêutica irá escolher (Princípio da Autonomia do Paciente).

Tal disposto está previsto no próprio Código de Ética Médica em seu Art. 34:

É vedado ao médico:

Art. 34. Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.
(RESOLUÇÃO 1.931 DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICNA, 2009)[4]

Além disso, o Código de Defesa do Consumidor entabula, em seu Art. 6, III, o Princípio da Transparência, no qual o consumidor tem o direito de ser informado sobre todos os aspectos do serviço ou produto exposto, traduzindo assim o princípio da informação consumerista:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

[…]

III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;
(CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, 1990)[6]

Por isso da importância do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, a ser utilizado pelo médico cirurgião, para se resguardar de eventual alegativa do paciente de que ele não teria sido devidamente informado dos riscos da cirurgia, até porque, na relações de consumo, o Juiz pode inverter o ônus da prova e determinar que o médico cirurgião prove que informou ao paciente de todos os riscos.

Como ele fará isso se tudo acontece em consultório fechado, sem testemunha, sem documento? Mas o importante tema do TCLE será objeto em outro trabalho específico.

A falta de informação precisa das informações do risco da cirurgia, caso ocorra uma intercorrência, pode ensejar a responsabilização do médico, pois o paciente não teria consentido se submeter ao risco que fora omisso.

Já houve condenação de cirurgião por ter, durante a cirurgia, ter cometido uma perfuração no esôfago e só ter informado a paciente do risco de perfuração do estômago:

2- Segundo a cirurgia bariátrica, mesmo quando altamente recomendada, meramente facultativa, assemelha-se ela àqueles outros procedimentos, como a cirurgia estética, em que se deve garantir o próprio resultado. 3- Convicção que se robustece e, hipótese como a dos autos, em que o médico cirurgião fez chegar ao paciente propaganda colorida com casos de cirurgias bem sucedidas e rostos de belas pessoas, estimulando a cirurgia de um modo tal que não se percebe em outras intervenções. 4- Propaganda que, finalmente, elenca entre os possíveis riscos apenas a perfuração do estômago onde afixada a cinta redutora, mas não do esôfago, por onde transita o cateter (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2015)[10]

 

Outro tema bastante interessante é a responsabilidade do médico cirurgião por atos de componentes de sua equipe, ou seja, terceiros.

Como dito pelo já citado Art 927 CC/22, a responsabilidade objetiva ocorre nos casos previstos em lei ou pela natureza da atividade. O Art. 932 do Código Civil/22 traz alguns dos casos previstos em lei em que a responsabilidade é objetiva:

Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:

I – os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia;

II – o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições;

III – o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;

IV – os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos;

V – os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia.
(CÓDIGO CIVIL, 2002)[2]

O que interessa é o inciso III que fala que o empregador responde objetivamente por atos de seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele.

É muito comum ações de indenização interpostas em face de cirurgiões em decorrência de problemas na anestesia do paciente. É de praxe que                                  o anestesiologista seja escolhido pelo cirurgião, então alega-se que aquele profissional seria preposto deste, o que faria com que o cirurgião respondesse objetivamente por erro na anestesia. Tal responsabilidade poderia abranger também erro da enfermeira, erro do auxiliar de cirurgia, dentre outros.

Ou seja, o médico-chefe da cirurgia por estar no comando do grupo e por escolher os profissionais que o integram seria responsável, solidariamente, por danos causados ao paciente por erro de qualquer um dos membros da equipe que dirige.

 

Aplicaria ao médico cirurgião, no caso, a culpa in elegendo, que é a responsabilidade da escolha daqueles que irão atuar em sua equipe. Assim afirma Antônio José de Souza sobre a culpa in elegendo:

É aquela proveniente da má escolha de um representante ou preposto, como, por exemplo, a pessoa admitir ou manter a seu serviço um empregado sem as aptidões necessárias ao trabalho que lhe é confiado[11]
(ANTÔNIO JOSÉ DE SOUZA LEVENHAGEM, 1987)

 

Penso o contrário. O espírito do Art. 932, CC/22 é outro. Citado dispositivo legal traz a ideia da subordinação entre o empregador e seu funcionário e preposto. Ou seja, existe um vinculo direto, no qual o preposto ou empregador, muitas vezes, age em nome e sob a coordenação e ordens do próprio empregador, motivo pelo qual a lei trouxe a responsabilidade do empregador por ato de seus prepostos.

Diferente é a relação do cirurgião e dos membros da equipe médica como, por exemplo, anestesiologista. O anestesiologista possui completa autonomia em sua atividade, não sendo subordinado direto do cirurgião, agindo por conta própria, agindo por seu próprio risco, utilizando seus conhecimentos, não tendo o cirurgião qualquer gerência quanto a atividade do anestesio.

Assim, não vislumbro a aplicabilidade do Art. 932, CC/22 na relação cirurgião e equipe. Cada membro da equipe possui, na verdade, atividades médicas independentes, sendo que cada um possui responsabilidade isolada de seu ato, com base em sua especialidade, inexistindo solidariedade entre seus membros.

Às razões que deduzi acima vão ao encontro da lição de Sérgio Cavalieri Filho, in verbis:

 

(…)As múltiplas especialidades da Medicina e o aprimoramento das técnicas cirúrgicas permitem fazer nítida divisão de tarefas entre os vários médicos que atuam em uma mesma cirurgia. Em outras palavras: embora a equipe médica atue em conjunto, não há, só por isso, solidariedade entre todos os que a integram. Será preciso apurar que tipo de relação jurídica há entre eles. Se atuam como profissionais autônomos, cada qual em sua especialidade, a responsabilidade será individualizada, cada um respondendo pelos seus próprios atos, de acordo com as regras que disciplinam o nexo de causalidade (…). A responsabilidade será daquele membro da equipe que deu causa ao evento.

Assim, se a cirurgia, propriamente dita, transcorreu sem problemas, não se pode responsabilizar o médico cirurgião pelo erro do anestesista, e vice-versa. Outra, todavia, será a solução se a equipe trabalha para o cirurgião (responsabilidade pelo ato do preposto), se todos integram uma sociedade ou se, ainda, trabalham para o hospital.[12]

 

O Superior Tribunal de Justiça também assim afirmou:

 

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. CIVIL E CONSUMIDOR. ERRO MÉDICO. RESPONSABILIDADE DOS MÉDICOS CIRURGIÃO E ANESTESISTA. CULPA DE PROFISSIONAL LIBERAL (CDC, ART. 14, § 4º).RESPONSABILIDADE PESSOAL E SUBJETIVA. PREDOMINÂNCIA DA AUTONOMIA DOANESTESISTA, DURANTE A CIRURGIA. SOLIDARIEDADE E RESPONSABILIDADE OBJETIVA AFASTADAS.

  1. Não se conhece dos embargos de divergência apresentados pela Clínica, pois: (I) ausente o necessário cotejo analítico entre os acórdãos embargado e paradigma, para fins de comprovação da divergência pretoriana (RISTJ, arts. 255, §§ 1º e 2º, e 266, § 1º);e (II) o dissídio apontado baseia-se em regra técnica de conhecimento do recurso especial.
  2. Comprovado o dissídio pretoriano nos embargos de divergência opostos pelo médico cirurgião, devem ser conhecidos.
  3. A divergência cinge-se ao reconhecimento, ou afastamento, da responsabilidade solidária e objetiva (CDC, art. 14, caput) do médico-cirurgião, chefe da equipe que realiza o ato cirúrgico, por danos causados ao paciente em decorrência de erro médico cometido exclusivamente pelo médico-anestesista.
  4. Na Medicina moderna a operação cirúrgica não pode ser compreendida apenas em seu aspecto unitário, pois frequentemente nela interferem múltiplas especialidades médicas. Nesse contexto, normalmente só caberá a responsabilização solidária e objetiva do cirurgião-chefe da equipe médica quando o causador do dano for profissional que atue sob predominante subordinação àquele.
  5. No caso de médico anestesista, em razão de sua capacitação especializada e de suas funções específicas durante a cirurgia, age com acentuada autonomia, segundo técnicas médico-científicas que domina e suas convicções e decisões pessoais, assumindo, assim, responsabilidades próprias, segregadas, dentro da equipe médica. Destarte, se o dano ao paciente advém, comprovadamente, de ato praticado pelo anestesista, no exercício de seu mister, este responde individualmente pelo evento.
  6. O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 14, caput, prevê a responsabilidade objetiva aos fornecedores de serviço pelos danos causados ao consumidor em virtude de defeitos na prestação do serviço ou nas informações prestadas – fato do serviço. Todavia, no § 4º do mesmo artigo, excepciona a regra, consagrando a responsabilidade subjetiva dos profissionais liberais. Não há, assim, solidariedade decorrente de responsabilidade objetiva, entre o cirurgião-chefe e o anestesista, por erro médico deste último durante a cirurgia.
  7. No caso vertente, com base na análise do contexto fático-probatório dos autos, o colendo Tribunal de Justiça afastou a culpa do médico-cirurgião – chefe da equipe -, reconhecendo a culpa exclusiva, com base em imperícia, do anestesista.
  8. Embargos de divergência da Clínica não conhecidos.
  9. Embargos de divergência do médico cirurgião conhecidos e providos.[13]

 

 

Espero que este trabalho tenha elucidado um pouco o tão obscuro campo da responsabilidade civil médica, que compõe a área do Direito Médico tão pouco explorada, mas de grande importância nos tempos atuais.

Há ainda muitos temas importantes a serem tratados como, por exemplo, a responsabilidade por erro de diagnóstico, o erro médico e a perda de uma chance, útero de substituição, Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, responsabilidade civil do cirurgião plástico etc

O que se sabe é que o número de demandas no que pertine a responsabilização do médico, principalmente dos cirurgiões, vem crescendo exponencialmente, tendo este trabalho a importância de elucidar algumas questões jurídicas no que diz respeito aos deveres e direitos médicos, bem como esclarecer a responsabilidade do médico perante seu paciente.


Referências Bibliográficas

 

[1] PORTAL TERRA. Com 3 ações de erro médico por hora, Brasil vê crescer polêmico mercado de seguros. Disponível em: <https://www.terra.com.br/economia/com-3-acoes-de-erro-medico-por-hora-brasil-ve-crescer-polemico-mercado-de seguros,9fdad0c4f3c50f8879877620609e29147975npb9.html>. Acesso em: 16 de dezembro de 2018

[2] BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Publicado em 11 de janeiro de 2002.

[3] TJ-MT. Apelação: 00409437020118110041. Relator Antônia Siqueira Gonçalves Rodrigues. Quarta Câmara Cível. DJ 09/03/2017. Disponível em: < https://tj-mt.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/437313941/apelacao-remessa-necessaria-apl-409437020118110041-121089-2015?ref=serp>. Acesso em: 25 de dezembro de 2018.

[4] BRASIL. Resolução 1.931/2009 CFM. DOU de 24 de setembro de 2009. Aprova o Código de Ética Médica.

[5] OLIVEIRA, Celso, Disponível em:<http://conjur.estadao.com.br//static/text/31721,2> Acesso em 25 de dezembro de 2018.

[6] BRASIL. Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Publicado em 12 de setembro de 1990

[7] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor, 2 ed., São Paulo: Atlas S/A, 2010, pp 288/289)

[8] STJ – AgInt no AREsp: 1337918 SP 2018/0192109-6, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 22/10/2018, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/10/2018

[9] STJ – AgInt no AREsp: 1118626 SP 2017/0139992-6, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 07/11/2017, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/11/2017

[10] STJ – AgRg no AREsp: 334756 RJ 2013/0127613-0, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Julgamento: 26/05/2015, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/06/2015

[11] LEVENHAGEM, Antônio José de Souza. Código Civil: comentários didáticos 3. Direito das Coisas, São Paulo: Atlas, 1987, p. 240

[12] CAVALIERI FILHO, SÉRGIO. Programa de Responsabilidade Civil. 9ª ed. rev. e amp., São Paulo: Atlas S/A, 2010, pp. 389/390

[13] STJ – EREsp: 605435 RJ 2011/0041422-0, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 14/09/2011, S2 – SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 28/11/2012

 

*Sérgio de Freitas Carneiro Filho, colaborou com nosso site por meio de publicação de conteúdo. Ele é Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR, Pós-graduando em Direito Médico pelo Grupo Verbo, Advogado, membro da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Ceará. Atualmente possui interesse na área do Direito Médico e Biodireito.

 

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