quinta-feira,18 abril 2024
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A ordem do discurso jurídico

O Direito compreende uma atividade interpretativa, onde o Legislativo debate e desenvolve uma legislação e cabe ao Judiciário interpretar e aplica-la à uma situação fática. Os operadores do Direito possuem o encargo eterno de compreender o que está disposto, “a melhor interpretação será aquela que articule coerentemente todos os seus elementos (regras, princípios, precedentes, etc.)” [1] De modo que inicia a sua jornada com um todo já existente, logo a sua interpretação não é livre e sempre está vinculada a esse todo já existente no Direito.

Existe uma “ordem do discurso” a qual o operador do Direito deve prosseguir para não incorrer em erro, por isso a interpretação deve perpassar pelo filtro Constitucional. Além da análise normativa e da base principiológica da legislação, a interpretação tem como pressuposto os precedentes das cortes superiores e o entendimento doutrinário.

Logo, a interpretação, o discurso, dos operadores do Direito, devem conter a análise prévia de todo esse arcabouço jurídico e histórico, “em outras palavras, o sujeito não pode apenas olhar para o objeto e descrevê-lo sem levar em consideração o que já se entende por ele, e em qual contexto histórico-temporal ele está situado.” [2]

Requer uma ordem ao discurso, ordem a interpretação, o Direito não é livre, tampouco seus operadores. Pois “sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa.” [3] O discurso requer uma ordem, limitações, procedimentos e requisitos.

O termo “a ordem do discurso” provém de Michel Foucault, de sua aula inaugural do Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Ousei mesclar essa aula ao meio acadêmico jurídico, já bem conhecido por Foucault, também autor da obra “Vigiar e Punir” a qual analisei noutro momento (ver aqui).

A ordem do discurso jurídico requer essa análise prévia do Direito, não havendo espaço à análise da literalidade da norma, o que despreza todo o contexto jurídico. Ato comumente nomeado de aplicação da “letra fria da lei”, algo incorreto em nosso Estado Democrático de Direito, que impõe o Direito como um todo coerente.

A presente temática é complexa, vai para além do campo do Direito, avança para a filosofia, literatura, linguagem etc, mas representa um ponto primordial ao Direito. É o descaso com a ordem do discurso jurídico que leva a sua degradação e à insegurança jurídica, visto que cada operador interpreta a aplica o Direito da sua forma, logo já não há Direito, e sim a interpretação individual de cada operador.

Sem o devido comprometimento com a Constituição, os princípios, a doutrina e a história do Direito, cedendo espaço para o novo e desconhecido atrelado e unido ativismo judicial.

Esse tema é deveras importante, temos como principal expoente brasileiro sobre o tema o Jurista Lenio Luiz Streck, suas obras propõem um entendimento mais aprofundado e crítico sobre a temática.

Ainda tratando sobre o Lenio, já discorri algumas vezes sobre o Constrangimento Epistemológico, verbete criado por este jurista, ao destacar o ato da Doutrina ao constranger e criticar o Judiciário quando este erra em seus julgamentos. De modo que os tribunais deverão estar constrangidos, pois, os doutrinadores estarão sempre analisando os seus julgamentos.

Ou seja, os tribunais não estão livres, a doutrina está fiscalizando, ou deveria estar, as doutrinas que replicam os entendimentos dos tribunais sem a realização da devida crítica construtiva são reiteradamente criticadas por Lenio, visto que não cumprem com o seu dever e são complacentes com qualquer decisão, logo não contribuem para a ordem do discurso jurídico.

E é por isso que sempre apresento meus “constrangimentos” ao judiciário, destacando o agir dos magistrados, do Ministério Público, as legislações e interpretações. A presente coluna está repleta de críticas construtivas perante o Judiciário Brasileiro, sobretudo com relação ao sistema processual penal.

Essa é uma das formas de pôr ordem ao discurso jurídico. A população exerce seu poder mediante cobranças que recaem sobre o Poder Legislativo, no decorrer de seu agir típico de legislar. Quanto ao judiciário, cabe ao povo o constrangimento epistemológico, com conhecimento, argumento, discurso, não com ataques a magistrados.

Importante se ater de forma inteligente à essas diferenças de constrangimentos: o epistemológico se situa no plano da argumentação, da interpretação e do Direito, o constrangimento físico ou verbal em ataques às instituições democráticas, de nada contribui e somente traz prejuízos à democracia do país.

Essa ordem do discurso requer ainda um ritual que “define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo de um diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar determinada posição e formular determinado tipo de enunciados)” [4] Esse ritual, apresentado na obra de Foucault, dispõe das propriedades, gestos, palavras, circunstâncias sobre o discurso, que é determinado ao sujeito que fala. Limitando ainda mais o discurso jurídico, lhe trazendo maior validade.

Nesse diapasão “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfazer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo”.[5] Para constranger é preciso compreender o assunto, requer estudo e compreensão do Direito.

A ordem do discurso jurídico é muito mais ampla do que os pontos destacados nessa breve análise, a obra de Michel Foucault e do Lenio Luiz Streck apresentam um mar de possibilidades e estudos sobre o discurso, e sobre o Direito. Por ordem ao discurso jurídico deve ser uma prioridade ao Direito, visto que “interpretação não-constrangida e moralização do Direito. Se ainda havia dúvidas, a história aponta que isso leva à tirania” [6]

Referências Bibliográficas

[1] Dicionário de Hermenêutica, Lenio Luiz Streck, página 43, 2ª edição, ano 2020, Grupo Editorial Letramento.

[2] Lenio Luiz Streck, Op. Cit página 183.

[3] A Ordem do Discurso, Michel Foucault, página 9, a aula inaugural do Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970, 21ª edição, ano 2011, Edições Layola.

[4] Michel Foucault, Op. Cit página 39.

[5] Michel Foucault, Op. Cit página 37

[6] Dicionário de Hermenêutica, Lenio Luiz Streck, página 66, 2ª edição, ano 2020, Grupo Editorial Letramento.

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