sexta-feira,29 março 2024
ColunaCorporate LawA necessidade de uma interpretação econômico-social à Lei de Recuperação

A necessidade de uma interpretação econômico-social à Lei de Recuperação

Em 2005, a sociedade brasileira foi agraciada com uma legislação inovadora e moderna de recuperação e de falência de empresas (Lei 11.101). Trata-se de um divisor de águas no direito empresarial, na medida em que se adotou como grande norteador o princípio  da preservação da empresa, evitando-se falências prematuras, resguardando ativas as empresas efetivamente viáveis e ficando a extinção restrita para os casos em que a recuperação da atividade for inviável.

Diante de uma situação momentânea de dificuldade econômico-financeira, o direito deve conceder ao devedor meios jurídicos adequados e eficientes para, mediante cooperação e colaboração de todos os atores do mercado, permitir a continuidade das atividades econômicas viáveis com o propósito de permitir o seu soerguimento. A crise de uma empresa pode ser econômica (atividade não é realizada em quantidade suficiente à manutenção do negócio), financeira (falta de fluxo de caixa ou dinheiro para pagar suas obrigações) ou patrimonial (o patrimônio é menor do que suas dívidas).

O princípio da preservação da empresa revela que a atividade para a produção ou circulação de bens ou de serviços visa à concretização de finalidades econômicas e sociais voltadas à manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores, da criação e da distribuição de renda, da obtenção do desenvolvimento econômico, da erradicação da pobreza e dos interesses dos credores. Todos esses interesses devem convergir para a ideia da preservação da empresa e, neste ponto, a Lei de Recuperação a presume. Para os credores a recuperação da empresa deve ser um instrumento momentâneo, não necessariamente duradouro, com vistas à satisfação do seu crédito. Para o Poder Público, os empregados, parceiros, fornecedores e sócios a manutenção da fonte produtora de serviços e/ou de bens a recuperação da empresa duradoura é mais conveniente e interessante.

Quem pode se aproveitar da Lei de Recuperação? Em diversos artigos, a legislação se reporta às expressões “empresário”, “empresa” e “sociedade empresária”. De acordo com o Código Civil, considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços, sendo obrigatório o registro na Junta Comercial da respectiva sede, e se considera empresária a sociedade que tem por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro na Junta Comercial. São predicados marcantes da atividade empresarial: (i) exercício de atividade econômica para a produção ou circulação de bens ou serviços; (ii) atividade organizada com coordenação de capital, de trabalho e de bens; e (iii) habitualidade e busca pelo lucro. Não são considerados empresários ou sociedades empresariais aqueles que exercem profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com auxílio de colaboradores ou parceiros.

A doutrina inclinou-se, no do início da aplicação da Lei de Recuperação, por entender que somente os empresários e as sociedades empresárias poderiam se valer da Recuperação, de modo que estariam excluídas as associações civis, as fundações, as cooperativas, as sociedades de profissionais liberais (advogados, médicos, contadores, dentistas, psicólogos, arquitetos, engenheiros, etc.), entidades de ensino (escolas e universidades), hospitais beneficentes, clubes de futebol, os agricultores, os empreendedores do agronegócio, as associações sem fins lucrativos etc.

Entretanto, tais agentes econômicos, que não são tidos como empresários, exercem atividades que podem se enquadrar nas três características anteriormente relacionadas à atividade empresarial. A discussão reside se tais agentes econômicos que não são tidos como empresários visam ou não à obtenção de lucro? Embora alguns agentes econômicos, como associações e fundações, não possam formalmente distribuir lucros aos seus sócios, não há dúvida de que os mencionados agentes econômicos exercem atividades relacionadas com o princípio da economicidade, ou seja, com o desenvolvimento de uma atividade capaz de cobrir os custos, ainda que sem finalidades lucrativas, se organizam como empresas e produzem serviços ou bens.

Em algumas decisões isoladas, o Poder Judiciário passou a deferir a recuperação judicial a agentes econômicos que não são tidos como empresários, tais como: (i) Universidade de Cruz Alta no RS (TJRS, proc. 1.050005014-6); (ii) Hospital Casa de Portugal (STJ, REsp 1.004.910/RJ); (iii) Associação Luterana do Brasil (TJRS, proc. 5000461-37.2019.8.21.0008); (iv) produtor rural (STJ, REsp 1.193.115); (v) Rede Ulbra de Educação (TJRS, proc. 5000461-37.2019.8.21.0008); e (vi) Universidade Cândido Mendes (TJRJ, proc. 0031515-53.2020.8.19.0000).

A tendência do mundo ocidental – EUA, França, Alemanha, dentre outros – é a unificação dos processos de insolvência civil e recuperação de empresas, abrangendo tanto empresários como sujeitos não empresários. A propósito, se a Constituição Federal adota, como objetivos essenciais, os princípios do desenvolvimento econômico, função social da empresa, da busca pela erradicação da pobreza, dos valores sociais do trabalho, não há como se emprestar uma interpretação restritiva à Lei de Recuperação, como se apenas os empresários e as sociedades empresárias alcançassem tais objetivos.

A rigor, associações civis, sociedades simples, produtores rurais, instituições de ensino (escolas e universidades), sociedades de profissionais liberais, hospitais beneficentes e cooperativas, dentre outros, podem exercer habitualmente atividades econômicas para a produção ou circulação de bens ou serviços, de forma organizada e relacionadas à busca pela economicidade.

Além disso, a análise econômica do direito também aponta a conveniência e a oportunidade para que a aplicação da legislação leve em conta não apenas à sua indicação semântica, mas, sobretudo, às consequências econômicas e sociais dela decorrentes. Assim, a manutenção de atividade econômica viável de um agente econômico, que se encontra em crise econômica, financeira ou patrimonial, a mantença dos empregos, o estímulo ao desenvolvimento econômico, a busca pela erradicação da pobreza e o fomento à produção de bens e serviços são elementos informadores da análise jurídica e econômica da Lei de Recuperação, de sorte a alcançar a função econômico-social do próprio ciclo de produção desempenhado pelos diversos atores que atuam no mercado.

Em boa hora, diante dos gravíssimos efeitos deletérios da pandemia da covid-19 no âmbito da saúde e da economia, o projeto de lei 1397/2020 já aprovado na Câmara dos Deputados prevê expressamente que o novo sistema de prevenção à falência pode ser postulado pelos “agentes econômicos”, pessoas naturais ou jurídicas que exerçam atividade econômica, independentemente de serem formalmente empresários, o que coincide com a tendência moderna de aplicação extensiva da legislação de recuperação àqueles que exercem atividade econômica, beneficiando profissionais liberais, autônomos, associações civis, hospitais beneficentes, clubes de futebol, entidades de ensino, produtores rurais etc.

Caso as soluções de mercado não sejam adequados para afastar a crise econômica, financeira ou patrimonial de todos esses atores anteriormente mencionados, outra solução não restará aos agentes econômicos senão o ajuizamento de recuperação judicial como mecanismo jurídico adequado para permitir a continuidade de atividade econômica viável com o propósito de dar condições ao seu soerguimento.

Mestre e Doutor pela PUC-SP. Professor da graduação e do Mestrado na UFRN. Advogado.

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