quinta-feira,28 março 2024
ArtigosA não obrigatoriedade do Estado em fornecer medicamentos não registrados na ANVISA

A não obrigatoriedade do Estado em fornecer medicamentos não registrados na ANVISA

Por Karollyna Andrade Alves*

Introdução:

Talvez nunca se tenha demandado tantas questões de saúde, no sistema judiciário, como atualmente, em virtude da situação pandêmica em que vivemos.

Para enfrentar esta realidade, é preciso estabelecer parâmetros de atuação do poder judiciário. Um desses parâmetros foi marcado pelo Recurso Extraordinário de n° 657.718, responsável por estabelecer os limites do judiciário frente à judicialização exacerbada de questões envolvendo a concessão de medicamentos experimentais.

Em contrapartida, a sociedade encontra-se em um cenário que pede urgência na adoção de políticas públicas de combate à pandemia do Covid-19. A polêmica envolvendo a aplicação de vacinas antes do registro da Anvisa e qual o prazo que a autarquia deve finalizar os testes encontra-se em amplo debate público.

Apesar do Recurso Extraordinário não tratar especificamente sobre as vacinas, levou em consideração vários dados importantes sobre a produção, comercialização e distribuição de fármacos em geral. Pode sim, este ser um indicativo para os operadores de direito de como se deve agir nas mais variadas situações que envolvem o acesso à saúde.

Direito à saúde X disponibilização de medicamentos pelo SUS

No início do mês, mais precisamente dia 04/12/2020, transitou em julgado o Recurso Extraordinário n° 657.718, o qual tratou da concessão de medicamentos experimentais pelo SUS. O julgamento do mérito deste recurso foi finalizado em 22/05/2019, muito antes da situação de pandemia vivenciada no mundo. Porém, importantes lições concernentes à saúde e ao papel da ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária – já foram delineados a partir de então.

Tratarei aqui de reproduzir a decisão a qual foi construída a ratio decidendi e posteriormente detalharei algumas questões importantes levantadas pelos ministros, já que muito pode ser extraído delas, além do comando geral com caráter vinculante.

A tese vinculante, que é precedente obrigatório, tratou de responder a seguinte pergunta: O Estado pode ser obrigado, por meio de decisão judicial, a fornecer remédio experimental? Que ainda não foi registrado pela Anvisa? A tese aprovada foi:

1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais.
2. A ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial;
3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamentos sem registro sanitário em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei n° 13.411/2016) quando preenchido três requisitos:
I. A existência de pedido de registro do medicamento no Brasil, salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras.
II. A existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior.
III. A inexigência de substituto terapêutico com registro no Brasil.
IV. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão ser necessariamente propostas em face da União.

Vamos analisar os principais pontos dos argumentos dos ministros para chegarem a tal conclusão:

Ministro Marco Aurélio:

Foi o Ministro relator. No caso concreto, determinada paciente requereu na justiça o fornecimento do medicamento Mirampara, 30 mg, destinado ao tratamento de hiperparatireioidismo secundário. A paciente se tratava de uma insuficiência renal crônica e veio a óbito antes da conclusão do julgamento. O medicamento requisitado não era registrado pela Anvisa e por isso, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais indeferiu o pedido, negando o fornecimento do fármaco, o qual foi seguido pelo Ministro Marco Aurélio. Nas palavras do Ministro: “Não se pode obrigar o Estado a fornecer medicamento sem registro na Agência Nacional de vigilância Sanitária – ANVISA, sob pena de vir a praticar autêntico descaminho”, conforme descrito no art. 334 do Código Penal.

Ressaltou o Ministro que o registro do produto é condição para que possa haver a industrialização, importação e comércio, de acordo com a Lei que trata da vigilância sanitária sobre medicamentos. (Lei n° 6.360/76) Afinal, apenas com o registro é possível monitorar a segurança, eficácia e qualidade terapêutica do produto, sem o registro a inadequação é presumida.

Decidir de modo diverso, seria autorizar o experimentalismo farmacêutico às expensas da sociedade. Foi destacado, ainda, a competência do administrador para gerir os recursos públicos e decidir quais medicamentos devem ser incorporados no SUS, e ainda a falta de responsabilidade do ente federativo.

Após o voto do Ministro Relator Marco Aurélio, decidiram os demais Ministros que a questão merecia maior explanação, pois os juízes, principalmente, se veem numa situação deveras complicada, ao ter que decidir sobre essas demandas que envolvem outras áreas de conhecimento. Conforme salientou o Ministro Lewandowski:

“Eu mesmo, como Desembargador, enfrentei muitas dessas questões quando estava oficiando na câmara de Direito Público. É saber qual é o documento adequado, válido, legítimo, para comprovar a necessidade de determinado medicamento: é um atestado de um médico particular ou é um laudo médico pericial fornecido por peritos do Estado?”

A judicialização exacerbada também foi levantada pelos Ministros, os quais consideraram os impactos à concessão de medicamentos pelo poder público, qual seja o efetivo desarranjo acarretado aos cofres públicos e quantas pessoas são prejudicadas pela falta de dinheiro dos entes federados que gastaram vultuosas quantias na compra de medicamentos, muitas vezes importados, visando uma pequena parcela da população.

Ministro Luís Roberto Barroso:

No fim das contas, a tese que prevaleceu foi a do Ministro Barroso, com pequenas alterações em alguns pontos.

Uma importante ponderação a ser feita, é que à época que a demanda fora ajuizada, apesar do medicamento não ter registro na Anvisa, já possuía registo em outras agências reguladoras estrangeiras, como o caso da FDA – Food and Drug Adminisration (EUA), e a EMEA – European Medicine Agency.

Ainda assim, a União ingressou com pedido de amicus cureae, passando a defender a impossibilidade da concessão de medicamento não aprovado pela Anvisa, por não se ter evidências científicas de que o medicamento é eficaz, seguro, e de qualidade. Burlar esta regra seria abrir uma brecha para que medicamentos duvidosos, sem eficácia comprovada, fossem comercializados no país.

Em voto, o Ministro salienta: “proliferam decisões extravagantes ou emocionais, que condenam a Administração ao custeio de tratamentos irrazoáveis (…)”. Essa prática acaba por desestruturar todo sistema de saúde, já que os gestores não conseguem alocar racionalmente os recursos públicos, na prestação das políticas públicas. Inclusive, os medicamentos não registrados pela Anvisa, costumam ter um custo elevadíssimo, visto não serem fabricados no Brasil e necessitarem de importação.

Ministro Edson Fachin:

Iniciou descrevendo que o direito à saúde além de previsto expressamente na Constituição também é garantido por tratados internacionais, como o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e pelo Protocolo de São Salvador.

Considerando se determinado medicamento deve ser garantido pela via judicial, frisou que a política de acesso à saúde deve ser revista periodicamente, num processo participativo e transparente, e que seja efetivamente monitorado. Enfatiza mais uma vez a transparência, no decorrer do voto, ao afirmar que é dever do Estado dar transparência às decisões tomadas pelas agências reguladoras.

Enfatizou o papel da Anvisa em equilibrar as partes. Os medicamentos possuem peculiaridades técnicas que dificilmente são acessíveis pelos consumidores, com a normatização das regras de segurança. Através da Anvisa, os consumidores colocam-se numa posição mais equilibrada dentro do mercado. Salientou também o papel da Anvisa em corrigir certas falhas de mercado como o monopólio da propriedade intelectual, muito comum nesse ramo de negócios.

Continuando o voto, o ministro deixa claro que não se está a considerar o orçamento público mais importante que a saúde, pois ambos possuem a mesma hierarquia. Mas deve-se atentar para o fato de que a demanda por serviços de saúde depende de uma série de circunstâncias fáticas, como eficácia, segurança e a necessidade dos medicamentos.

Finalmente, julgou o processo parcialmente procedente no sentido que o Estado não pode ser obrigado a fornecer remédio não cadastrado pela Anvisa, mas que pode existir essa coação em casos excepcionais.

Ministro Alexandre de Moraes:

Ponderou que o direito à saúde apesar de previsto constitucionalmente não significa “mandamento inequívoco e judicialmente exigível de prestação de todo e qualquer serviço ou prestação médico-farmacêutica”. Casso assim fosse, não poderia existir o acesso universal à saúde.

O Ministro votou pelo desprovimento do recurso mas, por fim, concordou com a tese explanada pelo Ministro Luís Roberto Barroso.

Ministra Rosa Weber:

A ministra destacou, principalmente, o papel das agências regulatórias na proteção dos direitos e interesses sanitários da saúde. Citou a lei que define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, a qual preconiza ser de competência da União as ações de “normatizar, controlar e fiscalizar produtos, substâncias e serviços de interesse para a saúde”. Conforme consta na Lei 9.782/99, art. 2º, III.

Ainda sopesou o fato de que ao analisar os medicamentos existes deve-se considerar variabilidade enorme da resposta dos medicamentos no organismo dos pacientes, fato este que leva à necessidade de estudos que sejam capazes de identificar essas variações e constatar a toxidade das substâncias dentro do organismo humano, pois todo medicamento apresenta algum grau de risco.

Desta forma, permitir que fármacos ainda não testados pela Anvisa sejam utilizados, seria permitir futuramente que o Estado também fosse responsabilizado pelos danos decorrentes do consumo desses medicamentos. Portanto, a Anvisa deve ser prestigiada em seu papel, o que não acontece quando esses medicamentos são incorporados sem o aval técnico da agência, neste caso de permissão de medicamentos não autorizados aconteceria o inverso: a agência passa a ser enfraquecida em seu papel regulador. No mais, permitir que o judiciário decida quais medicamentos devem ser fornecidos, sem o aval da Anvisa, seria uma forma indevida de interferência na separação dos poderes.

Nesta seara, percebe-se que admitir esses medicamentos é um risco pela possibilidade de gerar dano à saúde ao invés de curar ou tratar pessoas. Assim, o registro do medicamento pela Anvisa é condição inafastável para seu fornecimento.

No caso de situação excepcional, naquelas em que há pedido de registro mas que não houve a avaliação da Anvisa, resultado de uma demora irrazoável, deve-se considerar que houve uma mora do Estado não apenas de avaliação, mas de formulação de uma política pública nacional de medicamentos de forma adequada e efetiva.

Ministro Luiz Fux:

Para este ministro, devemos nos basear nas seguintes premissas: O Estado não tem o dever de fornecer o medicamento porque o dever é de prestação de saúde à população, e para que esta prestação seja devidamente cumprida pressupõe-se ações sanitárias que sejam seguras.

Atenta-se também ao fato de que o CNJ já havia enfrentado a questão: “A Anvisa não é obrigada, em princípio, a fornecer medicamentos não previstos na sua tabela, até porque não é o judiciário que vai se imiscuir na matéria, por falta de expertise, a fortiori, de capacidade institucional”.

Ministra Carmem Lúcia:

A ministra ressaltou que os cidadãos passaram a conhecer mais seus direitos individuais e subjetivos, o que resultou em maior acesso e peticionamentos ao judiciário, o que por si só é um dado positivo.

Por sua vez, acabou que a ministra seguiu o voto do Ministro Fachin, enfatizando que é dever do Estado prestar o atendimento à saúde, isso só acontece quando há conciliação entre a reserva do possível e os direitos fundamentais.

Ressaltou, ainda, que os juízes diante de um caso concreto devem ter a sua disposição médicos pertencentes ao NATJUS (Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário), de forma que possam ouvir um especialista em matéria de saúde e se guiarem pelo parecer emitido.

Ministro Lewandowski

O ministro iniciou relembrando alguns julgados importantes que já trataram de questões relativas a matéria da saúde pública em outras oportunidades, uma delas foi o STA 175 AgR/CE, em que foi estabelecido que no caso de o judiciário deferir um tipo de prestação de saúde que já está abarcada nas políticas do SUS, não está o judiciário criando uma nova política pública, mas garantindo o seu cumprimento. É diferente de quando o Estado impõe a obrigação de fornecimento de remédio que não constante na lista do SUS e ainda não avaliado pela Anvisa.

Descriminou também a existência da Política Pública de Dispensação de Medicamentos Excepcionais, que provê o acesso de medicamentos à população com enfermidades raras.

O ministro inclui dentre a discussão da pauta, o que não ficou bem explicitado na tese aprovada, mas que fora unanimidade entre os ministros, o caso de impossibilidade financeira do enfermo comprar o medicamento. É o caso do medicamento avaliado pela Anvisa, que foi considerado apto para as enfermidades as quais se propõe a tratar mas que o SUS resolveu não incorporar na política pública de fornecimento pelo Estado. Portanto, o medicamento é comercializado no Brasil mas não é entregue pelo SUS. Assim, se o paciente tiver condições financeiras deverá comprá-lo, apenas tem direito ao remédio patrocinado pelo SUS aquele que não possui condições financeiras.

Ministro Gilmar Mendes:

No início dos trabalhos o ministro foi quem mais argumentou acerca da necessidade de se discutir melhor a questão, pesquisar melhor os dados, sopesar as informações antes de proferir o voto. Por fim acompanhou outros ministros afirmando:

“considero que está bem equacionada a questão na perspectiva de, em princípio, não se firmar a obrigatoriedade do fornecimento de medicamentos não registrados na Anvisa, ressalvada as hipóteses em que elas se justifiquem”.

Ministro Dias Toffoli:

As questões levantadas foram relacionadas à ampla gama de atividades concernentes à vigilância sanitária, quais são: promover a saúde da população através de controle da produção e consumo de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária dos ambientes, processo, insumos e tecnologias relacionadas. Ressalvou ainda o controle ainda de aeroportos, fronteiras e recintos alfandegários.

Escreveu também uma informação interessantíssima: os mais antigos códigos (Hamurabi, Manu e o Antigo Testamento) já abrigavam normas sobre saúde e sanções nos casos de fata de cumprimento. Percebe-se que este controle acompanha as sociedades desde os tempos mais remotos até os dias atuais.

Tratou da questão da regularização ser necessária para a comercialização dos produtos e fomentação da responsabilidade social das empresas. Acontece de empresas promoverem a ampla divulgação de seus produtos, junto aos médicos, em larga escala, com preços muito altos, sem que esses medicamentos sejam regulados pela Anvisa. Caso a regulamentação ocorra, os mesmos produtos são submetidos à regulação dos preços, evitando o custo elevado e muitas vezes abusivo.

Relatou os dados trazidos pela União, a qual informou que os medicamentos comprados, sem registro na Anvisa, decorrentes de ordens judiciais, foram responsáveis por mais de 450 milhões de reais em 2015.

Por fim, considerou que deve o poder judiciário observar: I) se o processo de incorporação de medicamentos segue as balizas legais; II) Se atende a finalidade; III) Se é conduzido respeitando-se a razoabilidade e a eficiência. Acompanhou o voto de relator, ministro Marco Aurélio.

A última discussão deu-se em razão do polo passivo da demanda. Entenderam os ministros que, obrigatoriamente, quem deve estar no polo passivo é a União, pois é a única entre os entes federados que possui competência para regular as questões de registro de medicamentos, a serem realizados pela Anvisa.

Assim, se determinado autor ingressasse na justiça para requerer um remédio que fora requisitada a análise à Anvisa, por tempo superior ao devido em lei, a Única pessoa jurídica passível de enfrentar esta questão é a União, não pode, nesse caso, um Município ou Estado responder pela mora de um órgão Federal, que é o caso da Anvisa.

 

Conclusão

De acordo com todos os votos descritos, percebe-se a preocupação dos Ministros em agir em conformidade com a ciência e com os métodos científicos para garantir uma melhor prestação de serviços à população.

Observou-se que o mandamento do STF é deixar que o órgão técnico responsável (Anvisa) se pronuncie sobre a regulamentação dos remédios para posteriormente ser discutido a responsabilidade do Estado em incorporá-lo ou não ao SUS.

Parece que a resposta do STF foi bem coerente: vamos deixar que os cientistas façam ciência e depois, com base nas respostas produzidas, que os juízes julguem.

 

*Karollyna Andrade Alves, colaborou com nosso site por meio de publicação de conteúdo. Ela é Advogada, atuante em direito administrativo e cível.

 

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