sexta-feira,29 março 2024
ColunaDireito ImobiliárioA locação de imóveis por plataforma digital e o RESP 1.819.075-RS

A locação de imóveis por plataforma digital e o RESP 1.819.075-RS

O Superior Tribunal de Justiça, por sua 4ª Turma, em maioria de votos, concluiu julgamento do REsp 1.819.075-RS no último dia 20.04.21, oportunidade em que examinou a natureza da reserva de imóveis por plataforma digital (airbnb) e os limites das restrições em convenção de condomínio.

Embora o acórdão ainda não tenha sido publicado, de sorte que não se teve acesso à íntegra dos votos, especialmente do relator originário, Min. Luis Felipe Salomão, e do relator para o acórdão, Min. Raul Araújo, o presente texto visa trazer à discussão alguns aspectos sobre a natureza e as características do modelo de negócio de reserva de imóveis viabilizado por plataforma digital.

O negócio jurídico de reserva de imóvel viabilizado por plataforma digital deve ser classificado como de locação ou de hospedagem?

A Lei 11.771/2008, em seu art. 23, prevê contrato de hospedagem, sendo considerados meios de hospedagem os empreendimentos ou estabelecimentos, independentemente de sua forma de constituição, destinados a prestar serviços de alojamento temporário, ofertados em unidades de frequência individual e de uso exclusivo do hóspede, bem como outros serviços necessários aos usuários, denominados de serviços de hospedagem e cobrança de diária.

De outro lado, a Lei 8.245/1991, em seu art. 48, considera locação para temporada aquela destinada à residência temporária do locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feituras de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorram tão somente de determinado tempo, e contratada por prazo não superior a 90 dias, esteja ou não mobiliado o imóvel.

Assim, o contrato de hospedagem, que tem finalidade não-residencial, deve reunir as características da locação de alojamento/dormitório temporário, frequentemente com alta rotatividade, e a oferta de serviços, enquanto que a locação por temporada implica a mera ocupação do imóvel, em espaços curto de tempo de até 90 dias, não descaracterizando a destinação residencial.

A utilização pelo proprietário do imóvel de plataforma digital, ao invés de corretor imobiliário, para viabilizar a celebração de locação por temporada, não tem o condão de descaracterizar essa modalidade de locação, nem tampouco desfigurar a finalidade residencial de utilização do imóvel.

Registre-se que já se assentou que o contrato de hospedagem encerra múltiplas prestações devidas pelo fornecedor hospedeiro ao hóspede, sendo o acesso às unidades de repouso individual, apesar da principal, apenas uma parcela do complexo de serviços envolvido no referido negócio, dentre os quais, destacam-se a limpeza, a organização do espaço de repouso e/ou a alimentação (STJ, REsp 1734750/SP, rel. Min. Nancy Andrighi).

Em razão do julgamento do REsp 1819075-RS, cujo acórdão ainda sequer foi disponibilizado, apressadamente divulgou-se a notícia de que “condomínios residenciais podem impedir o uso de imóveis para locação pelo airbnb”, sem que tenham sido ressaltados os aspectos e as peculiaridades do caso concreto.

Com efeito, o proprietário do imóvel alugava quartos do seu apartamento e disponibilizava serviços aos inquilinos em condomínio, cuja finalidade era residencial, o que gerou o enquadramento como contrato atípico de hospedagem, de acordo com o voto vencedor do Min. Raul Araújo, o que contrariava a finalidade residencial prevista em convenção de condomínio.

Parece-nos que a decisão proferida no REsp 1819075-RS, à luz dos fatos do caso concreto, aplicou adequadamente a noção de contrato de hospedagem, por haver uma habitação temporária aliada à prestação de serviços aos hóspedes, o que atrai a natureza empresarial.

Mas, se se tratasse de mera locação de espaço, por período de tempo curto, sem a disponibilização de serviços aos inquilinos, o contrato deveria ser enquadrado como de locação por temporada, não iria contrariar a convenção de condomínio, e ensejaria, a rigor, uma conclusão diametralmente oposta.

A alta rotatividade, mediante habitação temporária, e a ausência de vínculo dos ocupantes, por si sós, não fazem com que o contrato seja reputado de hospedagem. A eventual ocorrência de perturbação do sossego e de insegurança gerada por tal modelo de negócio deve ser abordada e reprimida no campo das penalidades e das fiscalizações a cargo da administração do condomínio. Trata-se, pois, de aplicação do princípio da proporcionalidade, na medida em que, dentre as restrições possíveis, não se pode adotar a mais invasiva, sob pena de maltrato do direito de propriedade privada.

A propósito, sob a ótica da análise econômica do direito, as soluções jurídicas não podem ir de encontro à 4ª Revolução Industrial, a qual trouxe à tona inovações com o surgimento da economia colaborativa e a de compartilhamento, em que empresas e cidadãos têm se valido cada vez mais das plataformas digitais, com vistas à adoção de um novo modelo econômico baseado no acesso a bens e a serviços por compartilhamento ao invés da aquisição. São exemplos: uber, airbnb, mercado livre, dentre outros, que nada mais são do que marketplace ou shopping center virtual.

A solução a ser dada não pode violar o direito constitucional de propriedade, eis que um dos seus conteúdos essenciais é a admissibilidade da exploração econômica, de sorte que a ordem constitucional proíbe o esvaziamento econômico da propriedade, e impõe ainda que a eventual restrição imposta pela lei ao direito de propriedade deve ser examinada sob a ótica da proporcionalidade e da razoabilidade (STF, RE 134.297, rel. Min. Celso de Mello).

Ainda que o direito constitucional de propriedade não se revista de caráter absoluto, é certo que a previsão de eventuais restrições deve ser compatível com os parâmetros e os limites fixados pela ordem constitucional (STF, ADI 2.213-MC, rel. Min. Celso de Mello, e MS 25.284, rel. Min. Marco Aurélio).

Outrossim, se o Código Civil, em seu art. 1.228, confere ao proprietário, dentre outros, o atributo de poder fruir do seu imóvel, não é lícito à convenção de condomínio proibir a locação por temporada, que, além de ser reputada lícita pela Lei de Locação, em seu art. 48, representa uma fruição econômica do imóvel.

Não se reveste, destarte, de ilicitude o fato de o proprietário vir a celebrar contrato de locação por temporada do seu imóvel, mediante plataforma digital, eis que a restrição ou a delimitação eventualmente prevista em convenção de condomínio, ou aprovada em assembleia de condôminos, teria o condão de violar, a um só tempo, o direito constitucional de propriedade, os atributos previstos no art. 1228 do Código Civil e a Lei de Locação, em seu art. 48.

Portanto, não se pode extrair do referido julgamento a conclusão de que a convenção de condomínio residencial pode, pura e simplesmente, proibir que o proprietário, valendo-se de plataforma digital, efetue a locação por temporada do seu imóvel, em período inferior a 90 dias, a teor do art. 48 da Lei de Locação, sob pena de ofensa ao direito constitucional de propriedade e aos atributos previstos no art. 1228 do Código Civil. Como assentou o Min. Antonio Carlos Ferreira, “esse processo talvez não seja bom para extrair abrangência maior porque existem diversas formas e modalidades de locação: pode ser só parte do imóvel, locação integral, locação por temporada. E é indiferente a forma da oferta. Cada edifício tem uma característica própria”.

Mestre e Doutor pela PUC-SP. Professor da graduação e do Mestrado na UFRN. Advogado.

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