quinta-feira,28 março 2024
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A Lei de Abuso de Autoridade e a Atuação dos Magistrados (ADI nº 6.239/DF-STF)

A Lei nº 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade) está em vigor e tem trazido vários questionamentos sobre a sua aplicabilidade. Em seu artigo primeiro a norma dispõe que podem ser autores dos crimes de abuso de autoridade o agente público “servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.”[i]  O artigo primeiro, parágrafo único, da lei amplia o rol de pessoas que podem responder por esses crimes quando menciona que “reputa-se agente público […] todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade abrangidos pelo caput deste artigo.”[ii]

Assim, todo aquele que estiver exercendo uma função pública pode responder pelo abuso de autoridade e também o particular nas figuras de coautores e partícipes. Nota-se que o objetivo da norma é evitar que os cargos e funções públicas sejam utilizados para constranger aquele que está submetido a determinado poder, por razões que destoam da finalidade do ato.

A proteção do cidadão é algo que respeita os ditames constitucionais, o problema ocorre quando alguns dispositivos podem restringir a atuação de determinadas categorias. Citam-se como exemplo os integrantes do Ministério Público, Magistratura, Auditores, entre outros, que a depender da interpretação dada a determinada prática, podem ser enquadrados nesses dispositivos.

Para exemplificar o tema, serão descritos alguns dispositivos que estão sendo questionados na Ação Direta de Inconstitucionalidade- ADI nº 6.239/DF, que está tramitando no Supremo Tribunal Federal-STF, ajuizada pela Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE.

Da Inconstitucionalidade Formal da Lei

Um dos primeiros pontos questionados na ADI nº 6.239/DF é a possível inconstitucionalidade formal. Isso pode ocorrer porque a Lei nº 13.869/2019 (Abuso de Autoridade) é uma Lei Ordinária- LO e quando se trata da atuação dos magistrados, essa deve ser disciplinada por meio de Lei Complementar- LC (art. 93 da Constituição Federal- CF), por meio do Estatuto da Magistratura, que atualmente é regulamentado pela  LC nº 35/1979 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional- LOMAN).

Observa-se que, além da inconstitucionalidade formal, também pode existir a material, uma vez que alguns dispositivos criminalizam a atuação dos juízes. Um dos argumentos utilizados na ADI é o fato de que a possível criminalização pode produzir reflexos na atuação jurisdicional, causando insegurança jurídica para o julgador e também ao jurisdicionado, pois possivelmente existirão divergências interpretativas e possíveis utilizações de vários recursos no processo, que podem tornar morosa a prestação jurisdicional.

 

A punição dos Juízes nos casos de Abuso de Autoridade

Atualmente a atuação dos magistrados pode ser questionada pelo cidadão por meio dos remédios constitucionais (mandado de segurança e habeas corpus) e a Constituição Federal prevê na estrutura organizacional do Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça- CNJ, que possui como atribuições o controle da atuação funcional do juiz (art. 103-B, § 4º, incisos III e IV da CF). Assim, os casos em que existem possíveis irregularidades funcionais são analisados pelo CNJ e podem ser também objeto de decisões judiciais. O que pode gerar a condenação do magistrado pela prática de determinada ilicitude.

Assim, questiona-se o teor da lei, quando essa sistemática pode ser desconsiderada para dar-se início à persecução penal. Cita-se como exemplo o artigo 9º, caput, parágrafo único, incisos I ao III, com a seguinte redação:

Art. 9º  Decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único.  Incorre na mesma pena a autoridade judiciária que, dentro de prazo razoável, deixar de:

I – relaxar a prisão manifestamente ilegal;

II – substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou de conceder liberdade provisória, quando manifestamente cabível;

III – deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível.

A utilização dos termos “manifestamente ilegal” ou “cabível” podem ensejar subjetividade interpretativa, que deixaria de ser questionada em sede recursal (no próprio processo) para dar ensejo a uma ação penal contra o magistrado. Esse ponto está sendo questionado na ADI nº 6.239/DF:

O juiz, ao decidir, não somente aplica a lei de forma objetiva, mas faz uma interpretação da norma, aplicando-a ao caso concreto, buscando cumprir sua missão de fazer justiça, ou seja, sua função jurisdicional. Sua decisão deve ser fundamentada, à luz do princípio da livre convicção, e eventual discordância das partes do processo deve ser tratada em sede recursal e não mediante a sujeição do magistrado a um processo criminal.[iii]

Além do artigo mencionado, outros dispositivos estão sendo questionados na referida ação, como o art. 10:

Art. 10.  Decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Nesse caso, questiona-se a utilização da expressão “manifestamente descabida”, o que poderia indicar um tipo penal aberto, pois não há definição prévia da conduta passível de sanção, sugerindo-se desconformidade com o art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal.[iv]

Questiona-se a constitucionalidade do artigo 20:

Art. 20.  Impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Parágrafo único.  Incorre na mesma pena quem impede o preso, o réu solto ou o investigado de entrevistar-se pessoal e reservadamente com seu advogado ou defensor, por prazo razoável, antes de audiência judicial, e de sentar-se ao seu lado e com ele comunicar-se durante a audiência, salvo no curso de interrogatório ou no caso de audiência realizada por videoconferência.

Menciona-se que o tema é tratado pela Constituição Federal (art. 5º, LXIII) e pelo Estatuto da Advocacia (art. 7º, III, da Lei 8.906/94) sem qualquer previsão de detenção, existindo, porém, a possibilidade de questionamentos no próprio processo e por meio de investigação disciplinar sobre a conduta do magistrado.

O artigo 25 também é objeto da ação:

Art. 25.  Proceder à obtenção de prova, em procedimento de investigação ou fiscalização, por meio manifestamente ilícito:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Parágrafo único.  Incorre na mesma pena quem faz uso de prova, em desfavor do investigado ou fiscalizado, com prévio conhecimento de sua ilicitude.

A possibilidade de o magistrado proceder a obtenção de provas é amparada pelo art. 370 do Código de Processo Civil e nos casos de provas ilícitas, existem previsões no art. 5º, inciso LVI, da Constituição Federal e no art. 157 do Código de Processo Penal, no sentido do seu desentranhamento dos autos. Assim, elas não podem ser utilizadas para fundamentar a condenação do jurisdicionado e, caso isso não ocorra, o prejudicado possui meios processuais para tal questionamento, sem a necessidade da criminalização do ato do magistrado. Dessa forma, na ADI utiliza-se o argumento de que haveria uma desproporcionalidade em tal previsão.

Outro ponto tratado na ação, diz respeito à punição no caso da constrição de bens em valores superiores à dívida:

Art. 36.  Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la:

Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Há a fundamentação de que esse artigo poderia inibir a utilização de instrumentos processuais que possibilitam o bloqueio de bens do devedor. Como exemplo utilizam o sistema BACENJUD[v] em que o magistrado solicita a constrição dos bens, mas não consegue dimensionar quais de fato serão bloqueados. Cabendo ressaltar que, novamente, nesses casos, existem meios processuais em que o prejudicado pode conseguir o desbloqueio que teria ocorrido em “excesso”, o que pode tornar a criminalização do ato desproporcional.

Outro artigo que também é objeto da ação:

Art. 43.  A Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 7º-B

‘Art. 7º-B  Constitui crime violar direito ou prerrogativa de advogado previstos nos incisos II, III, IV e V do caput do art. 7º desta Lei:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.

O fundamento utilizado é o de que existe punição disciplinar prevista na Lei Orgânica da Magistratura, não havendo a necessidade de criminalização do ato.

Considerações Finais

O objeto da ADI nº 6239/DF é de grande importância para a atuação do magistrado no processo. A linha entre o exercício da livre convicção e a criminalização de determinada conduta é tênue. Por essa razão, faz-se necessária a análise pelo STF dos artigos descritos para uma maior segurança na prestação jurisdicional.

[i] BRASIL. Lei Ordinária nº 13.869, de 05 de setembro de 2019. Dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade. Brasília, DF, 27 set. 2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13869.htm>. Acesso em: 06 jan. 2020.

[ii]  Idem.

[iii] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.239/DF. Advogada: Grace Maria Fernandes Mendonça; Suzana Maria Fernandes Mendonça. Brasília, DF, 09 de outubro de 2019. p. 1-29. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5792383>. Acesso em: 25 jan. 2020.

[iv]  Remonta-se à previsão constitucional de que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

[v]  O site do Conselho Nacional de Justiça conceitua o sistema BACENJUD como um instrumento que “interliga a Justiça ao Banco Central às instituição bancárias, para agilizar a solicitação de informações e o envio de ordens judiciais ao Sistema Financeiro Nacional, via internet” (BACENJUD. 2020. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/sistemas/bacenjud/>. Acesso em: 25 jan. 2020.)

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