quinta-feira,28 março 2024
ColunaDiálogos ConstitucionaisA insegurança jurídica e o restabelecimento do princípio da colegialidade no STF

A insegurança jurídica e o restabelecimento do princípio da colegialidade no STF

No livro “Os onze: o STF, seus bastidores e suas crises”, os jornalistas Felipe Recondo e Luiz Weber abordam os variados cenários político, jurídico, social e ideológico da atuação dos Ministros do Supremo Tribunal Federal no período de 2007 a 2019, sobretudo a partir da inserção da Corte, por ocasião do julgamento da Ação Penal conhecida como Mensalão, no centro do debate nacional.

A rigor, desde a Constituição Federal de 1988 o STF ampliou significativamente seus poderes explícitos e implícitos, passando a exercer um papel político e ideológico diante da inanição sobretudo do Poder Legislativo. Assim, por lá foram decididas as grandes questões nacionais, tais como união homoafetiva, prisão após condenação em segunda instância, proibição de doações empresariais, descriminalização do aborto, pesquisas científicas com células embrionárias, criminalização da homofobia, do racismo e do anti-semitismo, instalação de comissões de inquérito por exercício das minorias, proibição de nepotismo na administração pública, demarcação de terras indígenas, direito de greve do servidor público, progressão de regime prisional, fidelidade partidária, prerrogativa por exercício de função, impeachment etc.

Ora há assuntos que são decididos pelo STF, sobre os quais há um silêncio eloquente do legislador, ora há assuntos em que o STF atua como legislador positivo, em substituição ao Poder Legislativo. E há ainda as decisões aditivas, pelas quais o STF supre omissões legislativas parciais ou relativas, diminuindo a importância do princípio da separação dos poderes.

Se, de um lado, deparamo-nos com um Poder Legislativo que tem se mostrado incapaz de dar respostas adequadas e céleres, do outro, o Poder Judiciário vem sendo instado a se manifestar sobre variados temas afetos ao debate político, especialmente a pretexto de assegurar o cumprimento dos direitos fundamentais e de princípios constitucionais.

Trata-se de um cenário perfeito para a judicialização da política como também para o ativismo judicial, em que naturalmente surge o debate quanto à legitimidade democrática da atuação do Poder Judiciário.

Neste contexto, a notícia do habeas corpus concedido pelo Ministro Marco Aurélio em favor de um traficante transnacional, à revelia da orientação dos órgãos colegiados, trouxe à tona a discussão da autofagia no STF.

Com efeito, há alguns anos a sociedade assiste, de forma perplexa e atônita, a atuação de 11 (onze) Supremos Tribunais Federais, haja vista que a grande maioria das decisões judiciais é proferida monocraticamente por Ministros Relatores, sem que a deliberação seja submetida ao crivo do órgão colegiado, notadamente em ações de controle concentrado de constitucionalidade e em ações constitucionais cujo ato impugnado deriva do exercício de atribuições próprias dos Poderes Executivo e/ou Legislativo.

Grandes temas nacionais foram examinados monocraticamente por Relatores, sem que tenha havido a manifestação dos órgãos colegiados, com gravíssima subversão do papel estabilizador da primazia da Constituição Federal, a saber: auxílio moradia a todos os juízes federais (Min. Luiz Fux), suspensão da nomeação de Ministros de Estado e de diretor geral da Polícia Federal (Min. Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes), suspensão de aplicação de lei de distribuição de royalties do petróleo (Min. Carmen Lúcia), suspensão de norma que versava sobre o regime de vencimentos dos servidores públicos federais (Min. Ricardo Lewandowski), suspensão da lei que criou o juiz de garantias (Min. Luiz Fux) etc.

As decisões monocráticas oriundas de Ministros relatores no STF têm afastado a aplicação de atos de outros Poderes (Executivo e Legislativo) que em tese também têm proteção constitucional exteriorizada no princípio basilar da separação de poderes.

A propósito, o papel de guardião da Constituição Federal conferido ao STF deve ser exercido por órgão colegiado do tribunal, notadamente para o exame da inconstitucionalidade de atos praticados pelos Poderes Executivo e Legislativo, evitando-se as críticas de protagonismo judicial que é fonte de crises institucionais e de óbices ao desenvolvimento econômico.

Por vezes, as decisões monocráticas revelam estratégias político-ideológicas para evitar que a matéria seja submetida ao crivo do órgão colegiado, o que gera uma insegurança jurídica e danos irreparáveis ao regime democrático de direito.

Quando, ao invés de uma decisão colegiada, o conflito é julgado isoladamente por Ministro Relator, abre-se margem para um subjetivismo do magistrado (ideologia, posições políticas, opções partidárias etc) que não é desejado pela Constituição Federal.

De outro lado, há ainda decisões de Ministros do STF que suspendem decisões de outros Ministros, como ocorreu nos casos na Suspensão de Liminar envolvendo um traficante transacional e a soltura de todos os presos que estavam recolhidos para efeito de cumprimento de decisão condenatória proferida por tribunal de segunda instância. Nos dois casos, decisões monocráticas da lavra do Ministro Marco Aurélio foram suspensas por decisões da presidência do STF (Min. Luiz Fux e Min. Dias Toffoli, respectivamente).

Quando as decisões do STF são proferidas por órgão colegiado, naturalmente há o debate submetido ao contraditório sob a perspectiva do pluralismo de posições jurídicas, em que a discussão proporciona os vários enfoques do exame do conflito, de sorte a em tese legitimar a deliberação judicial, tornando-as paradigmáticas para a sociedade e para os demais órgãos do Poder Judiciário.

É inaceitável que, em muitos temas nacionais, com grande relevo para as ordens política, jurídica e econômica, o STF seja um fator de criação de instabilidade e de insegurança jurídicas, hipótese em que a atuação do tribunal se afasta dos parâmetros constitucionais. O STF, que deveria ser o guardião da Constituição Federal, colabora para o aumento da insegurança jurídica com suas decisões intempestivas e monocráticas.

É difícil investir num país em que o entendimento das leis é fruto de interpretações personalistas e decisões voluntaristas do Poder Judiciário, nas quais predominam valores políticos e ideológicos, em detrimento dos parâmetros jurídicos pilares de um estado democrático de direito, especialmente o estabelecimento de limites à separação de poderes.

Considerando frase famosa do economista Pedro Malan, ex-ministro da Fazenda no Governo Fernando Henrique Cardoso, há um senso comum de que no Brasil até o passado é incerto, isso porque o Poder Judiciário toma decisões que não raro retroagem no tempo. Nenhum agente econômico atua com liberdade e eficiência num cenário de insegurança jurídica. Por oportuno, a escola da análise econômica do direito ensina que a insegurança jurídica é colocada no preço das transações, tornando a atuação econômica mais dispendiosa. Sendo assim, o retorno exigido em investimento no Brasil é maior do que o exigido em outros países justamente para compensar esse risco. E em muitos casos, o investimento nem sai da gaveta.

Um exemplo emblemático da atuação ilegítima do STF se deu em decisões monocráticas que em 2019 impediram a privatização de estatais e suas subsidiárias. Duas deliberações monocráticas, subvertendo o princípio da separação dos poderes e a atuação legítima do Congresso Nacional, afetaram o programa de privatizações, cujo programa está em curso desde a década de 90 do século passado, e é um dos pilares das reformas econômicas do governo. Mesmo existindo lei anterior emanada do Congresso Nacional, o Min. Ricardo Lewandowski, em manifestação permeada pela ideologia, concedeu uma liminar, proibindo a venda do controle de estatais e suas subsidiárias, inclusive da Petrobras, sem a prévia autorização do Congresso. Na mesma linha, o Min. Edson Fachin suspendeu monocraticamente decisão colegiada do STJ que permitia a venda das ações da Transportadora Associada de Gás, subsidiária da Petrobrás, a pretexto de proteger o regime das licitações. As duas decisões tiveram o efeito de paralisar o programa de venda de ativos da Petrobras, e tinham o potencial de proporcionar prejuízo de cerca de U$ 30 bilhões, além de terem gerado uma insegurança jurídica que afetou o curso normal do programa de privatizações do Brasil.

Quem deveria zelar pela segurança e estabilidade jurídicas, infelizmente não cumpre o seu papel. Atualmente, o STF é fonte inesgotável de insegurança e instabilidade jurídicas.  Proposta de Emenda Constitucional 6/20, de autoria do Dep. Eduardo Costa (PTB-PA), determina que as decisões liminares em ações diretas de inconstitucionalidade ocorram somente pela maioria absoluta dos ministros do STF.

Em julho de 2020, após o desgaste e discussões quanto à legitimidade constitucional da decisão do Min. Alexandre de Moraes, que suspendeu a nomeação do superintendente da Polícia Federal, o STF, mediante manifestação de 10 (dez) de seus julgadores, rejeitou proposta do Min. Marco Aurélio de mudança no regimento interno que impediria decisões monocráticas contra outros poderes.

O papel decisivo de ser o guardião e intérprete maior do texto constitucional não foi conferido ao ministro relator, mas ao tribunal visto como manifestação do órgão colegiado, notadamente para exercer o controle jurídico na atuação dos outros poderes estatais. A decisão colegiada permite uma maior amplitude da discussão do tema jurídico, com o enfrentamento de vários enfoques da questão, de modo a legitimar em tese a decisão judicial.

A proliferação de decisões monocráticas no STF representa não apenas a subversão do princípio da colegialidade, como também gera uma flagrante e nociva insegurança jurídica, eis que abra margem à primazia do subjetivismo. Isso porque decisões monocráticas têm contrariado entendimentos adotados pelo Plenário e pelas Turmas do STF, estimulando a ação individual do tribunal e não uma atuação conjunta.

O que era para ser exceção passou a ser regra. Em 2017, 90% das decisões proferidas pelo STF foram monocráticas, o que revela uma situação sem paralelo no mundo, salvo semelhança com Portugal. Em nove meses no ano de 2020, as decisões monocráticas no âmbito do STF representam 82% das deliberações da Corte.

As decisões monocráticas deveriam ser excepcionais e, uma vez proferidas, ser submetidas imediatamente ao referendo do órgão colegiado. Em países como Estados Unidos e Alemanha, a regra é a das decisões colegiadas, com papel reduzido das decisões monocráticas.

A alternativa a tal cenário caótico exige mudança no regimento interno do STF. Em boa hora, o Min. Luiz Fux manifestou o propósito de fazer mudança no regimento interno do STF para que as decisões monocráticas sejam submetidas imediatamente ao órgão colegiado, mediante a deliberação no Plenário Virtual. Diante da omissão deliberada do STF, espera-se que o Congresso Nacional aprove Proposta Legislativa para regular a atuação monocráticas dos seus ministros, a fim de prestigiar os princípios da colegialidade e da separação dos poderes.

Mestre e Doutor pela PUC-SP. Professor da graduação e do Mestrado na UFRN. Advogado.

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