sexta-feira,29 março 2024
ColunaTrabalhista in focoA inconstitucionalidade da fixação de honorários periciais em favor do hipossuficiente

A inconstitucionalidade da fixação de honorários periciais em favor do hipossuficiente

Coordenador:Ricardo Calcini.

 

Introdução

O presente artigo tem por objetivo discutir outro ponto polêmico da “Reforma Trabalhista” efetivada através da Lei nº 13.467, promulgada em 13 de julho de 2017, ao tratar da fixação de honorários periciais em desfavor daquelas pessoas físicas hipossuficientes declaradas por análise judicial.
Isto porque, a referida reforma trabalhista expressamente consignou que é de responsabilidade do sucumbente o pagamento da perícia, ainda que beneficiária da justiça gratuita, colocando a responsabilidade da União em arcar com tais valores de forma subsidiaria, quando não houver créditos suficientes para arcar com a obrigação pericial.
No entanto, o artigo 5º, da Constituição Federal, que trata dos direitos e garantias fundamentais individuais e é considerado cláusula pétrea, no seu Inciso LXXIV preconiza que o Estado prestará assistência aos jurisdicionados que comprovarem insuficiência de recursos.
Diante da reforma e do próprio escopo de criação de emprego que justificou a tramitação sem discussão com os principais atores, pretende-se verificar o conflito de norma constitucional e infraconstitucional objetivando constatar a hipótese da inconstitucionalidade através da metodologia dedutiva, amparada em referenciais teóricos publicados em meios digitais e impressos.

 

Dos direitos e garantias fundamentais

A Constituição Federal brasileira, como cediço, é considerada rígida porque não permite sua alteração de forma simplificada, passando por um processo legislativo rigoroso, nas duas casas legislativas (Câmara dos Deputados e Senado), devendo observar os requisitos do art. 60, o qual tratou especificamente sobre a emenda constitucional.
No entanto, não é toda e qualquer modificação constitucional que é permitida. Existe uma limitação descrita no art. 60, § 4º, ressalvando que são imodificáveis a forma federativa (Inciso I); o voto direto, secreto, universal e periódico (Inciso II); a separação dos Poderes (Inciso III); e, por fim, os direitos e garantias fundamentais (IV).
Essas impossibilidades de modificações foram denominadas pela doutrina como cláusulas pétreas, limitando a ação legislativa sobre esses determinados assuntos, como é o caso dos direitos e garantias fundamentais, porquanto sua modificação poderia sugerir afronta ao próprio estado democrático de direito, impondo um autoritarismo, típico de momentos ditatoriais vivenciados pela história brasileira, colocando em xeque a própria democracia.
Eduardo Luz, relembra que:

José Afonso da Silva² em seu livro Curso de Direito Constitucional positivo, nos apresenta que a maioria das constituições brasileiras, sempre tiveram um núcleo imodificável (algo semelhante com as atuais cláusulas pétreas). Para diversos doutrinadores constitucionalistas, sem a presença de cláusulas pétreas a constituição ficaria muito vulnerável, e suscetível ao bel-prazer do legislador ordinário (2014, p. 01).

Dentro dos direitos fundamentais individuais, subscrito no artigo 5º, encontra-se “a assistência judicial integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”, obrigando ao Estado, quando comprovada a hipossuficiência financeira, arcar com o pagamento dos custos do processo da parte que seja considerada pobre na acepção do termo.
Referidos custos podem ser exemplificados entre as custas judiciais, taxas de diligências em geral, pagamento de profissional do direito para exercício da defesa técnica e, por fim, evidentemente se encontra a perícia em casos que sejam necessários à avaliação do direito pleiteado.
O inciso LXXIV da Constituição Federal deve ser interpretado em conjunto com o inciso XXXIV, alínea “a”, ao garantir o direito de petição, sem pagamento de taxas c/c inciso XXXV, ao assegurar a apreciação judicial de toda ou qualquer lesão ou ameaça ao direito pugnada em juízo, pois incorpora a proteção fornecida pelo Estado ao jurisdicionado para ter amplo e completo acesso ao Poder Judiciário.
Portanto, de plano, é possível alinhavar a compreensão de que os incisos XXXIV, alínea “a”, XXXV e LXXIV, devem ser interpretados em conjunto, incorporando-se ao direito fundamental individual de acesso ao Poder Judiciário, devendo, na hipótese de hipossuficiência financeira, o Estado garantir esta acessibilidade do jurisdicionado que comprovar ausência de recursos para custeio do processo judicial.

 

Das perícias em processos trabalhistas

É cediço que existem dois grandes tipos comuns de perícias no direito do trabalho.
A primeira, geralmente direcionada no processo executório, é a perícia contábil, que advém da adversidade dos cálculos apresentados em fase de liquidação de sentença dos créditos reconhecidos em fase de conhecimento.
A segunda, por sua vez, retrata a realidade comumente verificada na fase de conhecimento, pois representam a perícia que pugna pelo reconhecimento de ambientes perigosos, insalubres e pelos danos à saúde causados por acidentes de trabalho ou por doenças laborais, ainda que nas hipóteses de concausas, justamente porque estabeleceu-se a reparação dos danos concretos ou presumidos através da própria monetização.
Contudo, há de ressaltar que a perícia não está expressamente positivada no ordenamento trabalhista, cabendo ao Código de Processo Civil, aplicado subsidiariamente, estabelecer o que é perícia e a função dos peritos judiciais, conforme se depreende do art. 156 do referido codex.
Para Reinaldo Pinto Alberto Filho (2008, p. 15) a perícia representa “a diligência realizada, como meio de prova, por pessoas ou pessoas físicas, com a finalidade de apurar tecnicamente um fato, com o precípuo escopo de instrução de um procedimento”.
Nessa circunstância, percebe-se que a perícia não é exercida pelo magistrado que conduz o processo, mas por um terceiro, de sua confiança, nomeado dentro dos critérios estabelecidos pelo próprio Código de Processo Civil, que tenha expertise em determinada ciência, que não a do direito, para esclarecer o fato científico e controvertido dentro do processo.
Rone Antônio de Azevedo afirma que:

A perícia é a diligência restrita ao fato. Desta forma, não ocorrendo, compromete a validação da prova, preferindo-se sua nulificação, exceção em raras excepcionalidades. A perícia tem natureza jurídica de atividade processual probatória. Logo, sempre ocorrerá num processo judicial, administrativo ou outro similar.

Trata-se, pois, do suporte dado ao magistrado que, dentro da sua função exercida, não tem obrigação de conhecer cientificamente um determinado fato, como no caso das demandas trabalhistas que versem sobre insalubridade, periculosidade ou acidentes/doenças laborais, geralmente atrelado à ciência que discute segurança do trabalho, engenharias e medicina.
Nesse viés, verifica-se que o direito do trabalho utiliza muito a prova pericial com o objetivo de verificar os danos causados à saúde do trabalhador e, na sua constatação, aplicando as autorizações pertinentes, monetizando referidos danos, tendo um papel chave no desfecho da demanda.

 

Do conflito de normas

A reforma trabalhista mitigou um direito líquido e certo do cidadão ao permitir que a perícia seja cobrada de pessoas declaradas hipossuficientes financeiramente, nos termos do art. 790-B, caput, da Consolidação das Leis do Trabalho.
De se ressaltar que a reforma trabalhista trouxe o critério objetivo, a ser adotado para estabelecer a hipossuficiência financeira, ao determinar que serão as pessoas que tiverem rendimento abaixo de 40% do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, o que equivale, hoje, a R$2.335,78, conforme leitura do art. 790, § 3º, da CLT.
Com critérios mais objetivos e pela própria informatização de todos os meios bancários existentes, bem como pela própria experiência profissional do magistrado ao ver as anotações em carteira de trabalho, evidentemente se torna um absurdo a determinação de que pessoas que ganham até R$2.300,00 (arredondados), sejam obrigadas a arcar com perícias de R$3.000,00, R$4.000,00 ou R$5.000,00, dependendo da complexidade.
A perplexidade é ainda maior quando a própria Justiça do Trabalho tem por sua natureza a discussão de crédito alimentar, possibilitando que o crédito de um perito judicial seja satisfeito, a mercê das própria hipossuficiência financeira do jurisdicionado, obrigando ao Estado (União) a arcar com o pagamento dos honorários periciais estipulados em juízo apenas em última hipótese, conforme a redação do art. 790-B, § 4º. da CLT.
É notório que o art. 5º, XXXIV, alínea “a”, da Constituição Federal, preconiza o direito de petição, mas referido inciso se torna ineficaz e ineficiente se interpretado sem as permissivas do inciso LXXIV, que garante o acesso à justiça quando se tratar de pessoas com baixo poder aquisitivo, motivando o próprio deferimento da assistência judiciária.
Nem se alegue que as periciais judiciais devidamente reconhecidas em favor do hipossuficiente tornar-se-ão imune à regra do art. 790-B da CLT, mormente por ser cediço que, na prática, existem demandas trabalhistas contra uma mesma empresa que reconhecem graus de insalubridade ou de periculosidade e em outras ações judiciais não há o reconhecimento, tornando-se extremamente subjetivo os critérios de avaliação, ainda que regulamentados por normas próprias do Ministério da Saúde e da Economia (seguindo-se a junção de ministério ocorrida em 2019).
Importante destacar que ao sinalizar o mencionado inciso LXXIV do art. 5º da CF não se limitou às taxas judiciais, mas em todos os aspectos, justificando, pois, a criação da Defensoria Pública e institutos de perícias médicas, como é o caso do Instituto de Medicina Social e de Criminologia do Estado de São Paulo – IMESC.
Por isso, torna-se nítido que o artigo em comento é inconstitucional e fere literalmente e diretamente art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal, sabendo-se que, nas demandas laborais, a situação nos parece ainda mais gravosa, mormente que o quanto as perícias judiciais desenvolvidas em primeira instância judicial na fase de conhecimento são direcionadas, em sua grande maioria, aos danos à saúde do trabalhador, seja danos concretos ou presumidos (insalubridade ou periculosidade).
Uma solução interessante a ser adotada para os casos de perícia judicial foi proposta pelo professor Daniel Amorim Assumpção Neves quando sugere que o Poder Judiciário poderia firmar parcerias com faculdades públicas ou privadas para elaboração da perícia como “trabalho de conclusão de curso ou como parte de avaliação” (2016, p. 158), possibilitando que essa parceria desonerasse a obrigatoriedade do Estado em arcar com os valores periciais, possibilitando, ainda, que as perícias sejam realizadas nos exatos termos do art. 5º, inciso LXXIV, da CF.
Portanto, não era necessário mitigar um direito fundamental do trabalhador, criando-se um obstáculo para propositura de demanda trabalhista.

 

Conclusão

Diante do estudo efetivado através deste artigo científico, verifica-se a convalidação da hipótese de que é inconstitucional o art. 790-B da Consolidação das Leis do Trabalho, mormente se tratar de uma forma de mitigar direito e garantia fundamental de acesso ao Poder Judiciário.
Eventual desoneração do Estado poderia ser pensada com parcerias público-privadas através de instituições de ensinos, garantindo um número mínimo de peritos conveniados, até como uma forma de fomentação da área, mas jamais em prejuízo do jurisdicionado que, muitas das vezes, se socorre do Poder Judiciário como forma de garantir um direito que deveria ser quitado pela própria aplicação das normas regulamentadoras instituídas pelo Ministério da Saúde e Ministério da Economia (considerando que o Ministério do Trabalho se tornou uma secretaria).
A prevalência da regra do art. 790-B da Consolidação das Leis do Trabalho, tal como aprovado pela Reforma Trabalhista, impõe um retrocesso social sem precedentes, atingindo o próprio direito de litigar e colocando em risco a saúde do trabalhador.

 


Referenciais

ALBERTO FILHO, Reinaldo Pinto. Da perícia ao perito. 3ª Ed. Rev. Ampl. e atual. Editora Impetus: Niterói, 2008.
AZEVEDO, Rone Antônio. Responsabilidade dos Engenheiros e Arquitetos. Fundamentos e aplicações da perícia judicial. Ed. Kelps: Goiânia. 2008.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponibilizado em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 13 set. 2018
_____. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto-Lei nº 5.452 de 1 mai. 1943 que Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponibilizado em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del5452.htm. Acesso em 13 set. 2018
_____. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 13.467/2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e as Leis nos 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Publicado em: 13 jul. 2017. Disponibilizado em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13467.htm. Acesso em 13 set. 2018
LUZ, Eduardo. Cláusulas Pétreas. Publicado em 18 nov. 2014, na Revista Megajurídico. Disponibilizado em https://www.megajuridico.com/clausulas-petreas/. Acesso em 23 abr. 2019.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil – Leis 13.105/2015 e 13.256/2016 / Daniel Amorim Assumpção Neves. – 3. ed. rev., atual. e ampl., – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2016.

dvogado autônomo militante no Estado de São Paulo nas áreas de Direito do Trabalho, Direito de Família e Direito Condominial. Graduado em Direito (2005). Extensão universitária em Direito do Trabalho e Previdência Social (2009). Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho e em Direito Imobiliário pela Escola Paulista de Direito (2018) e em Direito Processual Civil pela Instituição Damásio Educacional (2018). Mestre em Direito da Saúde: Dimensões individuais e coletivas pela Universidade Santa Cecília (2018). Palestrante, Professor Assistente em Curso de Direito nas cadeiras Direito Material e Processual do Trabalho e em Direito Processual Civil.

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