quinta-feira,28 março 2024
ColunaDireito da SaúdeA ética na formação médica

A ética na formação médica

Ética tem origem na palavra grega ethos originalmente significando “lugar acostumado” e passou a denotar a forma usual de agir e ser, ou seja, o caráter.

Esta ideia de um modelo a ser seguido está ligada tanto à pessoa propriamente dita quanto à sua profissão. Enquanto os conceitos sobre ética, quando miram a pessoa, estejam espalhados pela educação, cultura, bom senso etc., a ética profissional por vezes está escrita, seja na forma de lei ou de resoluções.

Reinaldo Ayer de Oliveira, referindo-se ao pensamento de Cohen e Segre menciona que ninguém nasce ético, pois é na interação entre a natureza do ser biológico com o processo de cultura do ser social que carrega conflitos, que vão manter permanente a reflexão sobre o que é ser ético[1].

A medicina é uma das profissões que possui um código de ética bastante robusto, em razão da complexidade da atuação médica a sua relação com a sociedade. Até mesmo por esta razão o juramento de Hipócrates, escrito entre os séculos IV e I a.C., é referido como o primeiro código de ética médica ocidental. Dentre as afirmações podemos destacar a seguinte frase: “Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém”.

O professor Genival Veloso França afirma que a inserção dos Códigos de Ética na prática médica brasileira sempre foi inspirada na tradição da medicina ocidental que tem no “Juramento” sua sustentação e o seu ideário. Aponta ainda que dentro dos padrões hipocráticos, qualquer que seja sua versão ou a sua estrutura, autoritarista (1931), paternalista (1945), humanitarista (1953), paternalista-humanitária (1965), autoritarista (1984) ou humanitarista solidário (1988, 2009 e 2018), não deixe sufocar o frêmito da sensibilidade da velha Escola de Cós[2].

No entanto, foi o médico britânico Thomas Percival que em 1803 redigiu o Medical Ethics, sendo o primeiro código de ética médica moderno, tanto por sua forma codificada como por seu conteúdo (NEVES, 2003).

No âmbito das faculdades de medicina, o ensino da ética vem sendo cada vez mais relevante, fazendo jus ao que afirmou André Hellegers, primeiro diretor do Instituto Kennedy de Bioética, no início da década de 1970, que os problemas que se apresentariam aos médicos nos anos subsequentes seriam cada vez mais de natureza ética e menos de ordem técnica[3].

José Eduardo Siqueira, citando Herbert Marcuse faz crítica à fragmentação do ensino médico, que empobreceria o fazer acadêmico. Como o homem não é unidimensional, para ser bom médico, enfermeiro, psicólogo ou físico nuclear, em uma sociedade plural e carente do exercício de cidadania, não basta dominar técnicas especializadas do fazer científico, mas ser igualmente competente em áreas do saber humanístico[4].

No entanto, as escolas médicas, somente a partir da década de 1970, introduziram o ensino da deontologia e diceologia (ética médica) como disciplina autônoma e obrigatória, muitas vezes ministrada pelo professor de filosofia moral ou teologia. Anteriormente, “o ensino se baseava na transmissão passiva e informal de valores e práticas dos professores para os alunos[5]”.

A formação ética influencia a conduta do médico e a relação que este estabelece com os pacientes e, dessa forma, professores médicos e estudantes de Medicina consideram ética médica importantes, apesar das evidências de baixo interesse, atualização e conhecimento[6].

Um dos maiores cardiologistas do século XX, Bernard Lown, declarou que as escolas de medicina e os estágios em hospitais preparam os profissionais para tornarem-se “oficiais maiores da ciência e gerentes de biotecnologias complexas. Muito pouco se ensina sobre a arte de ser médico”[7].

Com esta visão, o Conselho Nacional de Educação Câmara de Educação Superior, na Resolução nº 3 de 2014, dispõe que “O graduado em Medicina terá formação geral, humanista, crítica, reflexiva e ética, com capacidade para atuar nos diferentes níveis de atenção à saúde, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde, nos âmbitos individual e coletivo, com responsabilidade social e compromisso com a defesa da cidadania, da dignidade humana, da saúde integral do ser humano e tendo como transversalidade em sua prática, sempre, a determinação social do processo de saúde e doença”.

Desde 2018, até mesmo os estudantes de medicina possuem um código de ética próprio[8]. Entretanto, não basta a inserção no currículo os temas relacionados às humanidades, como disciplinas isoladas, sendo preciso integrá-las na prática[9].

O contato com a história clínica do paciente já deve despertar a instigação no estudante, mas seu interesse surge na experiência da graduação, quando se conscientiza a dimensão humana da profissão médica, sendo o ensino da ética fundamental para o desenvolvimento da reflexão crítica necessária para a formação humanística[10].

Em pesquisa realizada com 24 estudantes de universidade pública resultou que os alunos consideraram deficiente o ensino de ética, apontando carência de profissionais capacitados para ampliar a reflexão e discussões ligadas ao tema. Para os entrevistados, a graduação abrange o funcionamento do corpo, da embriologia e do metabolismo, mas não a discussão de implicações éticas[11].

Nesta mesma pesquisa, quando propostas sugestões de estudantes de medicina para melhorar o ensino da ética, as respostas apontaram para maior aprofundamento e cobrança do conteúdo de ética em todos os períodos da graduação e ainda para a melhor qualificação dos professores, uma vez que estes acabam servindo de exemplo aos discentes[12].

Em um estudo ocorrido ente 2001 e 2002 na Faculdade de Medicina de Marília/SP, foi apontado que quanto antes for introduzido o estudo sobre aspectos éticos e deontológicos, maior será a possibilidade de reflexão sobre o tema pelos estudantes[13].

O Código de Ética Médica do Brasil passou por uma atualização em 2019 quando incluiu abordagens pertinentes às mudanças como inovações tecnológicas, comunicação em massa e relações em sociedade. Este documento, portanto, regula os regramentos éticos existentes na profissão médica e devem ser respeitados por todos os profissionais.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) e os Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) são os órgãos supervisores da ética profissional sendo julgadores e disciplinadores da classe médica, conforme o art. 2º da Lei nº 3.268/57.

Dessa forma, quando ocorre uma possível transgressão ao código, ou seja, quando a postura do médico é posta em dúvida perante as disposições éticas, a entidade de classe tem o dever e todo o interesse na apuração e eventual punição do profissional.

No entanto, a formação ética durante toda a caminhada do estudante e a sua plena conscientização e atuação, pavimentará o profissional o exercício de sua atividade sem percalço.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[1] OLIVEIRA, R. A. O julgamento simulado do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo: processo de ensino da ética médica— Comunicação, Saúde, Educação, v.1, n.1 1997.

[2] FRANÇA, Genival Veloso. Comentários ao Código de Ética, 7ª edição. Editora Gen, 2019.

[3]https://portal.cfm.org.br/images/stories/biblioteca/a%20medicina%20para%20alm%20das%20normas.pdf

[4] SIQUEIRA, José Eduardo. O ensino da ética no curso de medicina. O Mundo da Saúde São Paulo: 2009;33(1):8-20. http://www.saocamilo-sp.br/pdf/mundo_saude/66/8a20.pdf

[5] ALMEIDA, et al. Conhecimento e Interesse em Ética Médica e Bioética na Graduação Médica. Revista Brasileira de Educação Médica, 32 (4) : 437 – 444 ; 2008, https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/3547/1/v32n4a05.pdf

[6] Idem.

[7] Lown B. A arte perdida de curar. São Paulo: JSN; 1997.

[8] Código de ética do estudante de medicina / Conselho Federal de Medicina. – Brasília, DF: CFM, 2018.

[9] Menezes, Márcia Mendes et al. Percepções sobre o ensino de ética na medicina: estudo qualitativo. Revista Bioética [online]. 2019, v. 27, n. 2, pp. 341-349.

[10] Idem.

[11] Idem.

[12] Idem.

[13] Figueira, Eliandro José Gutierres et al. Apreensão de tópicos em ética médica no ensino-aprendizagem de pequenos grupos: comparando a aprendizagem baseada em problemas com o modelo tradicional. Revista da Associação Médica Brasileira [online]. 2004, v. 50, n. 2.

Advogado e professor. Doutorando em Ciências Farmacêuticas, Mestre em Direito da Saúde e especialista em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário.

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