sexta-feira,19 abril 2024
ArtigosA criminalização do "olhar 43”

A criminalização do “olhar 43”

Em meio à barafunda de absurdos jurídicos que assola o país, eis que surge a Senadora Rose de Freitas (MDB/ES), propondo a criminalização de um novo tipo de “assédio sexual”. Não o assédio físico já previsto no artigo 216 – A, “caput”, CP, mas agora uma espécie de assédio “visual”, consistente em um “olhar fixo e reiterado com conotação sexual e realizado de forma invasiva”.

A proposta toma a forma do Projeto de Lei 1314/2022 que, em resumo, apresenta as seguintes alterações do Código Penal.

a)Acréscimo de um § 2º., no artigo 216 – A, CP (“Assédio Sexual”) com a seguinte redação:

“§ 2º Se a conduta do caput deste artigo for praticada por meio de olhares fixos e reiterados, com conotação sexual e de forma invasiva, a pena é de detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa.”

A pena é a metade da prevista para a conduta física do “caput” com acréscimo de multa. Não é compreensível por que o simples olhar deve ser objeto de reação com multa cumulativa e o assédio sexual físico não conta com penalidade pecuniária.

b)Acréscimo de um Parágrafo Único no artigo 233, CP (“Ato Obsceno”), com o seguinte teor:

“Parágrafo único. Se a conduta do caput deste artigo for praticada por meio de olhares fixos e reiterados, com conotação sexual e de forma invasiva, a pena é de detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um ano), e multa.”

No caso do assédio, o projeto ainda teve pelo menos a noção básica de proporção para prever uma pena privativa de liberdade menor no simples olhar, embora tenha acrescentado uma multa sem que houvesse justificativa plausível para tal distinção. Já no crime de “Ato Obsceno”, a pena para o “caput” é de “detenção, de 3 meses a 1 ano, ou multa”, enquanto que o mero olhar tem pena prevista de “detenção de 6 meses a 1 ano, e multa”. Significa dizer que se um indivíduo em plena via pública praticar ato de exibicionismo, expondo o pênis ereto para uma mulher, terá pena menor em seu patamar mínimo cominado e a multa será alternativa, podendo ser aplicada somente a penalidade pecuniária. Mas, se apenas olhar de forma considerada lasciva para tal mulher, sem nada fazer, sua pena mínima será o dobro e a multa é prevista de forma cumulativa, não sendo possível receber apenas a pena pecuniária! Isso não é somente desproporcional, é a proporcionalidade virada de ponta – cabeça!

A parlamentar proponente conseguiu justificar sua proposta, citando a fixação de cartazes pela Prefeitura no metrô londrino, coibindo o chamado intrusive staring (olhar invasivo de natureza sexual), o que certamente não serve de fundamento para nada, mas comprova que a insanidade tomou conta da Terra e não só do Brasil, bem como que Nelson Rodrigues tinha razão ao dizer que “os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos”. Aliás, pode-se dizer que o escritor brasileiro captou com maestria o tema da idiotice e seu domínio quase absoluto. É dele também a observação seguinte:

“Hoje, tudo é possível, tudo. Há idiotas liderando povos, fazendo História e fazendo Lendas”.

E ainda:

“O idiota é uma ‘força da natureza’. Ele chove, relampeja, venta e troveja”.

O projeto em destaque não merece maiores aprofundamentos jurídicos a mencionar que o Direito Penal é um instrumento de “ultima ratio”, devendo-se criminalizar apenas condutas que realmente constituam graves violações de bens jurídicos e, portanto, não sendo adequado banalizar seu uso para frivolidades e suscetibilidades exageradas. Seguindo nessa senda, um olhar carrancudo será talvez incluído como um parágrafo do crime de lesão corporal ou de ameaça! Talvez “Dom Casmurro” de Machado de Assis, passe a ser uma obra útil para estudos criminológicos de uma espécie de “serial” sorumbático de maus – modos ou sombrio! E vamos nós aos PMs e às Delegacias de Polícia reclamar que nos olharam de “cara feia” ou de “cara sensual”!

O trecho inicial do romance machadiano, quando o personagem narra, em primeira pessoa, seu encontro com um rapaz conhecido de vista que quis ler-lhe versos e acabou levando-o a dormir, ficando irritado com sua pouca sociabilidade, poderia agora ser a introdução de uma narrativa literária policial:

“No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou”.

E o pior disso é que quem vai decidir se o olhar é isso ou aquilo, adivinhando o que se passa no mais íntimo de seu próximo será a sedizente “vítima”. Uma vítima que se autoconstitui e, a partir desse momento, não haverá “Presunção de Inocência” que possa resistir ao irrefutável veredito daquele que se sentiu invadido. O que passa a importar é o “sentimento”, a “subjetividade” da suposta vítima, pois é a ela que cabe afirmar a ofensa e a natureza do olhar.

Num mundo em que a subjetividade suplanta a realidade em vários aspectos; na filosofia quando tudo é reduzido ao pensamento ou a jogos de linguagem em detrimento da realidade circundante concreta e presente; nas questões chamadas de “gênero”, quando a biologia e até a morfologia e a anatomia são afastadas em nome de um “sentimento”, uma “vontade”, criticando uma suposta “criação cultural”, mas dando mais valia para uma impressão subjetiva do que para caracteres biológicos e genéticos concretos. Num mundo como esse, não é de espantar que simples olhares sejam considerados tão ou até mais graves (como se viu no ato obsceno) do que condutas físicas realmente invasivas. A barreira entre um controle social informal (etiqueta) e o controle formal mais gravoso (Direito Penal) foi totalmente apagada e a conduta humana passa a ser milimetricamente regulada pelo Estado com base em teorias tresloucadas de grupos identitários suscetíveis e caprichosos. É bem verdade que o projeto não criminaliza o olhar lascivo somente dirigido a mulheres, mas também é sabido que esses arroubos de microcriminalização (chamo de microcriminalização a criminalização de condutas insignificantes que até podem ser desagradáveis, mas que não são suficientes para integrar a seara penal) são típicos de um feminismo radical, altamente marcado por um puritanismo pequeno – burguês que entra até mesmo em conflito interno com suas outras pautas de liberação sexual.

Há uma Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90). E agora há também Projetos Hediondos de Lei, capazes de transformar o convívio social em algo impraticável e fazer do Direito, ao invés de um instrumento de construção de paz, uma ferramenta ideológica causadora de conflitos e rivalidades infindáveis.

Espera-se que essa absurdidade não seja aprovada e não se criminalize o conhecido “Olhar 43” da Banda RPM dos saudosos anos 1980. Fica, em encerramento, um trecho da música para que, talvez, as pessoas relaxem um pouco:

E pra você eu deixo apenas
Meu olhar 43
Aquele assim, meio de lado
Já saindo, indo embora
Louco por vocês
Que desperdício!

 

 

REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 1995.
FREITAS, Rose de. PL 1314/2022 Senado Federal. Disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9159782&ts=1652983077175&disposition=inline , acesso em 10.06.2022.

RODRIGUES, Nelson. Frases Inesquecíveis de Nelson Rodrigues – Só os Profetas Enxergam o Óbvio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2020.

RODRIGUES, Nelson. Pensador. Disponível em https://www.pensador.com/frase/MjAzMDU1OA/ , acesso em 10.06.2022.

SCHIAVON, Luiz, RICARDO, Paulo. Olhar 43. Banda RPM – 1985. Disponível em https://www.google.com/search?q=Olhar+43+letra&oq=Olhar+43+letra&aqs=chrome..69i57j0i512l2j0i22i30j0i15i22i30j0i22i30l4.6478j0j15&sourceid=chrome&ie=UTF-8 , acesso em 10.06.2022.

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós Graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

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