quinta-feira,18 abril 2024
ColunaCorporate LawA autonomia privada e alocação de riscos em contratos paritários

A autonomia privada e alocação de riscos em contratos paritários

As mudanças por que passou o direito contratual na segunda metade do século passado tiveram o condão de alterar as bases da teoria clássica dos negócios jurídicos. Na teoria liberal, o contrato sempre foi vislumbrado como exteriorização da liberdade individual conferida aos particulares de, em igualdade de condições, regularem seus interesses econômicos, pelo que se privilegiavam a autonomia da vontade e da força obrigatória dos contratos.

Com a transformações sociais e o advento da sociedade de massa, os contratos passaram a ser celebrados sob a técnica da adesão, em que normalmente o sujeito com maior poderio econômico define previamente todo o conteúdo do contrato, e o outro sujeito limita-se a aderir, ou não, aos seus termos, de sorte que a liberdade contratual revela-se absolutamente mitigada ou rarefeita.

Neste novo contexto sócio-jurídico, passou a ser difundida a noção de dirigismo contratual em que o conteúdo mínimo do contrato passou a ser previsto na lei civil com incidência obrigatória, sem o poder de os particulares afastarem a sua aplicabilidade, assim como, na mesma medida, a legislação de direito privado ampliou substancialmente as hipóteses de interferência do Poder Judiciário para a proteção da justiça contratual.

O Código Civil anterior de 1916 era de feição nitidamente individualista, privilegiando-se a autonomia da vontade e a força obrigatória dos contratos. De outro lado, o direito privado moderno, que adveio no cenário do dirigismo contratual, passou a privilegiar valores sociais em face do individual, com ênfase na função social, na boa-fé objetiva e na justiça contratual.

A propósito, nas relações contratuais de consumo o consumidor é reputado como hipossuficiente em presunção absoluta, e as normas proteção previstas no Código do Consumidor são reputadas como de ordem pública e de interesse social, conquanto não é lícito aos particulares afastar a sua incidência e, pois, a sua aplicação.

Por sua vez, apesar da ocorrência de tais alterações na teoria geral dos negócios jurídicos, ainda subsistem contratos em que a vontade das partes é manifestada em um ambiente de igualdade ou paridade, tal como pode ocorrer, em regra, nos contratos empresariais e civis.

Mesmo antes da edição das alterações introduzidas no Código Civil pela Lei da Liberdade Econômica, a doutrina e a jurisprudência já ressalvaram o entendimento de que, em negócios jurídicos cujas manifestações da vontade fossem paritárias, em linha de princípio deve ser respeitada a autonomia privada dos particulares, consoante a lição de Paula A. Forgioni (Contratos Empresariais. São Paulo: RT, 2020, p. 55).

Observadas as limitações legais explicitamente previstas na legislação civil, no ambiente de negócios jurídicos em que, existindo a paridade ou a igualdade, os particulares exercem na plenitude a liberdade de contratar, especialmente na definição das regras jurídicas de conteúdo econômico, deve-se privilegiar o princípio constitucional da autonomia privada, que é consectário da liberdade do indivíduo.

De outro lado, importa destacar que o simples fato de o contrato ser civil ou empresarial não o torna, obrigatório e automaticamente, paritário ou simétrico. O contrato será simétrico ou paritário, quando a análise do seu conteúdo e das tratativas negociais revelar um ambiente negocial pautado pela isonomia ou plenitude da liberdade individual.

Destaque-se que, no âmbito de contrato civil, cuja técnica se operou pela mera adesão de vontade, a declaração de vontade não pode ter o mesmo beneplácito do Poder Judiciário como se estivesse em um ambiente de igualdade. Privilegiando-se efetivamente a proteção da autonomia privada, já se decidiu que a declaração posta em contrato padrão de prestação de serviços de reprodução humana é instrumento absolutamente inadequado para legitimar a implantação post mortem de embriões excedentários, cuja autorização, expressa e específica, haverá de ser efetivada por testamento ou por documento análogo (REsp 1918421, rel. Min. Luis Felipe Salomão). No mesmo sentido, já se aplicou a temática social dos princípios da boa-fé objetiva e da função social no contrato empresarial de franquia que tem natureza de adesão (REsp 1881149, rel. Min. Nancy Andrighi), como também já se decidiu que, em contrato de adesão, as cláusulas devem ser interpretadas em favor aderente (AgInt no EDcl no AREsp 1610203, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze).

Assim, não revelando relação jurídica norteada pela hipossuficiência de um dos seus sujeitos e/ou permeada pela desigualdade de um dos seus sujeitos frente ao outro, mas em se tratando de contrato regido pela característica da paridade ou simetria, convém que os particulares se submetam aos termos do contrato celebrado (AgRg no REsp 1518605, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino).

Confira-se diversos precedentes do STJ em que foi reconhecido o predomínio da autonomia privada no campo dos contratos paritários ou simétricos: (i) validade da cláusula de eleição de foro em contrato de famoso jogador com empresa multinacional (REsp 1518604, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino), (ii) a apuração dos haveres em sociedade empresária se processa da forma prevista no contrato social (AgInt no AREsp 1679027, rel. Min. Luis Felipe Salomão), (iii) legalidade da tarifa de emissão de boleto bancário no segmento em que o contrato é paritário, excluído o setor bancário (REsp 1580446, rel. Min. Luis Felipe Salomão), (iv) legalidade da cláusula limitativa territorial de contrato de consultoria e de intermediação de negócios (REsp 1830304, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino), (v) a validade da extensão de cláusula de arbitragem a contrato acessório em ambiente de coligação contratual empresarial (REsp 1834338, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze), (vi) validade de cláusula que ajuste honorários advocatícios em contrato atípico de locação de espaço em shopping center (REsp 1644890, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva), (vii) validade de aplicação de cláusula que ajusta a incidência de lei estrangeira em contrato de empréstimo internacional (AgInt no REsp 1343290, rel. Min. Luis Felipe Salomão), (viii) a prevalência do valor do aluguel em contrato atípico de locação em shopping center frente a situações ordinárias de mercado (EDcl no AgInt no AREsp 1149602, rel. Min. Luis Felipe Salomão), (ix) legalidade da cláusula que prevê hipóteses de vencimento antecipado da dívida em mútuos feneratícios (REsp 1489784, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva), (x) a legalidade de cláusula que ajuste solidariedade em negócio empresarial (REsp 1415752, rel. Min. João Otávio de Noronha), (xi) a legalidade da cláusula em instrumento de cessão de crédito que se ajusta a transferência de titularidade para a prática de atos, inclusive perante a Receita Federal (REsp 1645719, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva), (xii) inaplicabilidade da teoria da onerosidade excessiva em contrato de compra e venda empresarial (REsp 936.741, rel. Min. Antonio Carlos Ferreira), (xiii) validade da cláusula em contrato empresarial de agência e de distribuição de bebidas que prevê a resilição unilateral (REsp 11112796, rel. Min. Conv. Honildo Amaral de Mello), (xiv) validade de cobrança de dívida emantada de instrumento de aposta em corridas de cavalos (REsp 1070316, rel. Min. Massami Uyeda), (xv) a validade da cláusula de resilição unilateral prevista em contrato empresarial de longa duração (REsp 972436, rel. Min. Nancy Andrighi).

Em relação às modalidades de contratos empresariais e civis, a Lei de Liberdade Econômica preceitua que a autonomia privada dos particulares alcança (i) a adoção de parâmetros objetivos para a interpretação das suas cláusulas, e (ii) a alocação de riscos que envolvem a revisão e a resolução do contrato, ao introduzir nova disciplina nos arts. 421, parágrafo único, e 421-A do Código Civil.

Vale dizer, nos contratos simétricos ou paritários, em que haja igualdade na regulação dos interesses patrimoniais e econômicos, os particulares podem ajustar determinadas cláusulas, a título de interpretação da manifestação da vontade e de alocação de riscos em hipóteses de resolução ou de revisão, que consubstanciam um núcleo essencial de proteção da autonomia privada, a cujo respeito devem prevalecer a intervenção mínima do Poder Judiciário e a excepcionalidade da revisão contratual, nos termos dos arts. 421, parágrafo único, e 421-A Código Civil.

Com efeito, no direito imobiliário têm surgido novas figuras contratuais em que exigem uma adequada compreensão do papel da autonomia privada e do grau de revisão pelo Poder Judiciário.

É o caso da figura contratual Sale and lease back que envolve a venda e a locação na sequência. O proprietário ajusta a venda do imóvel, sob a condição de que, na sequência, o referido bem lhe seja cedido a título de locação. A figura contratual híbrida proporciona ao proprietário a obtenção de recursos a serem empreendidos, em regra, na sua atividade econômica, assegurando-se, ainda, a permanência no imóvel. Pelo dispêndio com a aquisição do imóvel, que não é o propósito econômico final dos contratos, o comprador deve ter a previsibilidade e a segurança de que as condições da remuneração e do prazo da locação sejam reputadas válidas e eficazes.

Assim, a compra e venda somente foi celebrada em razão da locação, isto é, o aluguel e o prazo da locação foram motivos determinantes para que se ajuste a compra e venda do imóvel. Neste contexto, torna-se comum a previsão de cláusula que estabeleça (i) a renúncia ao direito de pleitear a revisão da remuneração da locação e (ii) a previsão de multa compensatória de valor a ser levado em consideração o prazo total do contrato.

Por isso que a doutrina e a orientação jurisprudencial do STJ têm assentado a importância da autonomia privada em contratos paritários/simétricos em que efetivamente exista igualdade de condições dos particulares na regulação dos interesses econômicos, devendo ser conferido especial prestígio aos princípios da liberdade contratual e do pacta sunt servanda. Afigura-se alvo de proteção legal a cláusula contratual que, em contrato regido pela simetria e paridade entre os contratantes, venha a regular a alocação de riscos definida pelas partes em relação à revisão e à resolução do contrato.

Mestre e Doutor pela PUC-SP. Professor da graduação e do Mestrado na UFRN. Advogado.

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