quinta-feira,28 março 2024
ColunaDireito da SaúdeA auditoria médica e a responsabilidade civil

A auditoria médica e a responsabilidade civil

A auditoria médica é uma especialidade da medicina que compreende na avaliação da adequação e do custo dos serviços médicos prestados por entidades públicas ou privadas.

Essa atuação médica teve início nos Estados Unidos da América em 1918 e começou como um sistema de acreditação de hospitais pelo Colégio de Cirurgiões, colocando especial ênfase no aperfeiçoamento das histórias clínicas.

No Brasil, a Lei nº 12.842 de 10 de julho de 2013, no art. 5º, inciso II, dispõe como ato privativo de médico a “perícia e auditoria médicas; coordenação e supervisão vinculadas, de forma imediata e direta, às atividades privativas de médico” (grifo nosso).

A auditoria médica tem correlação com a garantia da qualidade do atendimento e um dos seus objetivos específicos é sua melhoria e, portanto, pode ser definida como exposto por Guido Osório e colaboradores: “uma avaliação crítica e periódica da qualidade do atendimento médico recebido pelos pacientes, por meio da revisão e estudo de prontuários e estatísticas hospitalares”.

O trabalho da auditoria médica possui relevância nos aspectos da assistência médica, administrativa e financeiro-contábil como, por exemplo, jurídico (prevenção de ineficiência da prática médica e garantia do cumprimento das normas legais); regulatório (elaboração, revisão e readequação de normas, diretrizes e manuais de procedimentos); éticos (cumprimento das normas éticas e morais na conduta das pessoas); financeiros, administrativos e de mercado (conciliação na relação adequada entre eficiência, custos, qualidade e segurança da assistência prestada) e de ensino (busca da melhoria contínua, com efeitos educativos e preventivos que permitam obter aprendizagem e experiência).

Para a atuação do profissional é essencial a análise do prontuário clínico, mas também são relevantes as estatísticas hospitalares, normas, protocolos, padrões e o trabalho do auditor, somente assim permite-se uma análise minuciosa do trabalho.

Além de atuar como instrumento de gestão, a auditoria médica realiza uma fiscalização independente, faz avaliação criteriosa das contas, serviços e procedimentos de um hospital, consultório, clínica e outros serviços de saúde.

No Sistema Único de Saúde (SUS), a auditoria pode ocorrer com o objetivo de verificar a destinação correta de recursos e a atenção ao usuário. No sistema privado é um indicador de qualidade e de equilíbrio financeiro do hospital, da clínica etc.

A auditoria médica tem impacto na responsabilidade civil quando é analisada a possibilidade de responsabilização da entidade hospitalar, ou do plano de saúde, por ato praticado pelo auditor quando sua atuação causa danos ao usuário, o que pode ocorrer quando se nega a cobertura a determinadas doenças ou a determinados procedimentos.

Uma das situações mais corriqueiras é a recusa pelo plano de saúde em disponibilizar uma órtese[1] ou prótese[2] recomendada pelo médico do paciente, pois geralmente aquela indicada possui custo mais elevado do que o comumente utilizado pelo plano de saúde.

Essas questões, quando são judicializadas, tem levado os juízes a analisar se o produto com o preço menor possui a aprovação da ANVISA, o que geralmente ocorre, e a manifestação do médico do paciente sobre os dois produtos, ou seja, aquele recomendado por ele e o de menor valor. O médico deve indicar as características técnicas e os motivos pelo qual o de menor custo não é recomendado ao usuário.

Em alguns julgados, o Poder Judiciário tem entendido pela recusa indevida da administradora do plano de saúde quando a prótese indicada pelo médico, mesmo importada, for a mais adequada ao tratamento e ainda quando o tratamento estiver entre aqueles autorizados no contrato.

Outra situação comum é de o auditor recusar o procedimento/tratamento, pois está excluído da cobertura do plano de saúde contratado. É importante esclarecer que na contratação com o beneficiário, é dever das operadoras ter uma redação contratual que seja plenamente compreensível pelo consumidor. Também é dever da operadora garantir que o contratante tenha integral ciência dos termos contratuais.

Note-se que o contrato pode conter cláusulas restritivas, mas essa informação deve ser redigida de forma clara e inteligível. Quando o contrato contiver cláusulas dúbias ou obscuras, a interpretação deve ser à luz da boa-fé e, dessa forma, deve ser analisada a capacidade de compreensão pelo contratante.

O Código de Defesa do Consumidor (CDC), no art. 51, reputa como nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que impliquem renúncia ou disposição de direitos (inciso I) ou ainda que estabeleçam obrigações consideradas iníquas e abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade (inciso II).

Outrossim, os contratos com as operadoras de planos de saúde são típicos contratos por adesão e, dessa forma, nos termos do §4º do art. 54 do CDC as cláusulas que prevejam limitação de direito do consumidor deverão ser redigidas com destaque, permitindo sua imediata e fácil compreensão.

Caso determinada cláusula contratual leve a alguma dúvida quanto ao seu entendimento, a interpretação deve ser a favor do consumidor.

É importante destacar que o médico auditor não pode interferir na atuação do médico responsável pelo tratamento do paciente. Caso tenha que ser feita qualquer alteração em algum procedimento por qualquer motivo, este deve ser comunicado de forma imediata.

Em caso de constatação de irregularidade pelo médico auditor, este deve ouvir o médico do paciente e depois tomar a medida que entenda necessária.

Essa disposição consta no art. 9º da Resolução CFM nº 1.614/2001: “O médico, na função de auditor, encontrando impropriedades ou irregularidades na prestação do serviço ao paciente, deve comunicar o fato por escrito ao médico assistente, solicitando os esclarecimentos necessários para fundamentar suas recomendações”.

Pelo art. 52 do Código de Ética Médica, é vedado ao médico “desrespeitar a prescrição ou o tratamento de paciente determinados por outro médico, mesmo quando em função de chefia ou de auditoria, salvo em situação de indiscutível benefício para o paciente, devendo comunicar imediatamente o fato ao médico responsável”.

Nos processos-consulta nº. 5.544/95, 5.566/96 e 3.305/98 do Conselho Federal de Medicina (CFM), há menção expressa sobre não ser função do médico auditor a autorização ou não de exames e procedimentos, que deveriam ser assumidos pelo sistema de regulação:

 

“Usar de auditores para a função de autorizar ou não exames e procedimentos é, enfim, expô-los a riscos desnecessários que deveriam ser assumidos pelos próprios sistemas através de sua regulação, pois uma vez denegado um determinado procedimento e desta negativa advir prejuízos, responderá o auditor, e somente ele, por aquele ato”.

 

A Resolução do CFM nº 1.614/2001, regula no art. 8º que “é vedado ao médico, na função de auditor, autorizar, vetar, bem como modificar, procedimentos propedêuticos e/ou terapêuticos solicitados, salvo em situação de indiscutível conveniência para o paciente, devendo, neste caso, fundamentar e comunicar por escrito o fato ao médico assistente”.

Por esta mesma resolução, ao médico auditor é possível examinar o prontuário e quaisquer documentos, desde que respeitado o sigilo médico (art. 7º da Resolução nº 1.614/2001) e realizar o exame físico do paciente (art. 7º da Resolução nº 1.614/2001).

Referências:

FRANÇA, Genival Veloso. Direito Médico, 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, v. 4: Responsabilidade Civil, 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade Civil dos Hospitais: Código Civil e Código de Defesa do Consumidor, 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018.

OSORIO S, Guido et al. Auditoria médica: herramienta de gestión moderna subvalorada. Rev. méd. Chile, Santiago, v. 130, n. 2, p. 226-229, fev. 2002. Disponível em: https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-98872002000200014&lng=es&nrm=iso.

 

[1]Aparelhos de uso provisório que permitem alinhar, corrigir ou regular uma parte do corpo.

[2]Componente artificial que tem por finalidade suprir necessidades e funções de indivíduos sequelados por amputações, traumas ou deficiências físicas de nascença.

Advogado e professor. Doutorando em Ciências Farmacêuticas, Mestre em Direito da Saúde e especialista em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário.

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