sexta-feira,29 março 2024
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A ADPF 324: a terceirização à brasileira e a atomização da pessoa humana

Coordenação: Francieli Scheffer

Antes mesmo de se resumir e de se adentrar na problemática que se pretende apresentar de forma sucinta neste artigo, há de se problematizar a questão central da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 324, pois, após a adoção e promulgação de reforma trabalhista, no âmbito da Lei 13.467 de 2017, poder-se-ia pensar que a possibilidade de se terceirizar de forma absoluta e irrestrita, toda e qualquer atividade laboral, está sedimentada e não representa mais nenhum problema.
De fato, poder-se-ia compreender que toda e qualquer questão decidida pelo STF coloca um ponto final nas controvérsias jurídicas existentes sobre um tema. Todavia, não se pode reduzir certas questões ao âmbito da jurisdição brasileira, pois, o Brasil insere-se ao concerto das Nações, participa de Tratados e de organizações internacionais que o obrigam.
Apesar de representar um motivo suficiente, considera-se que, muitas decisões polêmicas do STF, tomadas a despeito dos compromissos internacionais firmados pelo Brasil, com o único intuito de preservar os interesses de grupos dominante, revelam falhas, comprometimentos e inefetividades jurisdicionais para com as regras e costumes internacionais.
Assim, de forma recorrente, as belas intenções internacionais do Brasil não passam de impulsos metafísicos que não resistem à realidade da biopolítica e psicopolítica nacional, assim como à construção histórica da sociedade nacional.
Aqui, na esteira de outros trabalhos desenvolvidos por este autor, a exemplo da análise das graves consequências trazidas pela decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no contexto da ADF 153, sobretudo em relação à Justiça de Transição, às questões memoriais e à confirmação da anistia dos crimes contra humanidade perpetrados durante a Ditadura Militar que assolou o Brasil de 1964 a 1985, percebe-se claramente que a questão da terceirização ampla e irrestrita permitida a partir da ADPF 324 ultrapassa a simples discussão jurídica sobre um ponto ou outro das Leis Trabalhistas nacionais.
Afirma-se peremptoriamente que essa ADPF, que se insere no projeto mais amplo de desregulamentação trazido pela “reforma” trabalhista de 2017, representa uma quebra de paradigma em relação ao Direito Constitucional, aos Direitos Fundamentais e Humanos, assim como uma clara submissão da mais alta Corte nacional à “nova razão do mundo” (DARDOT, 2010), subordinação que colide frontalmente com o Direito Internacional humanista e regulador representado, in casus, pela OIT.
Entretanto, antes de continuar essa breve análise crítica, o autor dessas linhas considera que é de suma importância, para que se evite qualquer mal-entendido, enviesamento, recuperação ou simplificação do seu pensamento, sobretudo quando se conhece as teses demasiadamente perigosas e nauseabundas em curso no Brasil do século XXI, que os ataques e as críticas feitas às decisões dos Ministros, não são ataques às instituições ou pedido de fechamento do STF e/ou Congresso, e, muito menos defesa de um sistema repressivo ou de uma necessidade de se impor uma censura e um amordaçamento de quem não está de acordo com um ou outro posicionamento.
Muito pelo contrário, defende-se veementemente um direito de expressão responsável e um debate construtivo, único meio de se evoluir enquanto pessoa e coletividade.
Em relação ao exame do caso da terceirização, começar-se-á com uma asserção do Professor Maurício Godinho Delgado:

“Para a Constituição, em consequência, a terceirização sem peias, sem limites, não é compatível com a ordem jurídica brasileira. As fronteiras encontradas pela experiência jurisprudencial cuidadosa e equilibrada para a prática empresarial terceirizante, mantendo esse processo disruptivo dentro de situações manifestamente excetivas, atende, desse modo, o piso intransponível do comando normativo constitucional” (DELGADO, 2019).

Diante disso, percebe-se que, conforme avançado na contextualização nacional e internacional da terceirização ampla e irrestrita enquanto fenômeno disruptivo, há de se apontar, entre outros, três problemas:
Em primeiro lugar, a tese defendida pela jurisprudência e doutrina trabalhista nacional e internacional está em clara oposição com o teor do pedido da Associação Brasileira de Agronegócio (ABAG) e a decisão do STF, sobretudo dentro de uma visão coerente de Estado Democrático de Direito humanista e social.
Em segundo lugar, uma leitura atenta do inteiro teor da ADPF 324 permite apontar incoerências, enviesamento, distorções e inexatidões nos votos dos Ministros do STF, em particular dos Ministros favoráveis às teses pró-terceirização irrestrita.
Em terceiro lugar, há de se tentar entender que o conjunto da decisão traz consequências para com os Direitos Humanos e Fundamentais, tanto em relação ao âmbito nacional quanto internacional.
Tudo isso transparece claramente da nítida oposição entre duas leituras da constituição a respeito desse tema.
Com efeito, de um lado a requerente sustentou que a tese da Justiça do Trabalho, sintetizada pela Súmula 331 e o Enunciado 331, ambos do TST, violaria:

“i) o princípio da legalidade (CF/88, art. 5º, II); ii) a liberdade dos agentes econômicos de contratarem e de estabelecerem estratégias racionais de produção; iii) a livre iniciativa (CF/88, arts. 1º, IV, e 170); iv) a livre concorrência (CF/88, art. 170, IV); v) a valorização do trabalho humano (CF/1988, art. 1º, IV); vi) o tratamento isonômico entre concorrentes (CF/1988, art. 5º, I); vii) a atuação do Estado como agente normativo e regulador da economia (CF/1988, art. 174)” (ADPF 324/DF).

Aliás e em aparte, essa interpretação, seguida pela maioria dos Ministros do STF, tem cunho interpretativo nitidamente jurídico-econômico.
Por sua vez o TST, após ter requerido a inépcia da petição inicial, argumentou que as referidas Súmula e Enunciado foram editados para “[…] proteger os trabalhadores terceirizados e assegurar a igualdade de tratamento entre os jurisdicionados” (ADPF 324/DF).
Da mesma forma, a Advocacia-Geral da União (AGU), em parecer, sustentou que a ADPF haveria de ser julgada como improcedente, pois, as decisões proferidas no âmbito da Justiça do Trabalho, fixam “limites à terceirização, com a finalidade de valorizar o trabalho e a relação de emprego, assegurando a dignidade humana e, por conseguinte, não causando ofensas aos preceitos fundamentais evocados pela arguente”( (ADPF 324/DF).
Resumindo a questão da terceirização, desta vez a partir de uma visão de cunho fortemente jurídico, social e humanista, Maurício e Gabriela Neves Delgado, nos seus comentários sobre a lei 13467/2017, consideram que:

“Os limites da Constituição ao processo terceirizante situam-se no sentido de seu conjunto normativo, quer nos princípios, quer nas regras assecuratórias da dignidade da pessoa humana (art. 1º, Ill), da valorização do trabalho e especialmente do emprego (art. 1º, Ill, combinado com art. 170, caput), da busca da construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, 1), do objetivo de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, Ill), da busca da promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV)” (DELGADO; DELGADO, 2017).

E os doutrinadores continuam:
“Todos esses dispositivos constitucionais, a propósito, também formatam o princípio da centralidade da pessoa humana na ordem jurídica, de nítida origem e destaque na Constituição da República” (DELGADO; DELGADO, 2017).
Aqui, é interessante também chamar atenção sobre o fato de as duas leituras trazerem à tona os art. 1º e 170 para justificar os seus requerimentos.
Consequentemente, resta ainda há se analisar as duas visões para sair desse impasse, pois, está-se diante de uma nítida oposição de valores.
Em resumo, a tese da requerente opera uma dualização da pessoa e do trabalhador recorrendo ao viés da omissão, por não fazer uma leitura integrativa da liberdade ou dos Direitos Humanos e Fundamentais de primeira dimensão, com a igualdade, fraternidade (solidariedades) ou direitos da segunda e terceira dimensão.
Ontologicamente, há uma atomização que conforme relata Jacques Rancière:

“[…] foi denunciada por críticos, de Burke a Agamben, passando por Marx e Hannah Arendt, a partir de uma lógica simples: ‘se a política precisar de dois princípios em vez de um só, é porque existe algum vício ou enganação. Um dos dois há de ser ilusório, senão os dois juntos. Os direitos dos homens são vazios ou tautológicos, dizem Burke e Hannah Arendt. Ou eles são direitos do homem nu” (RANCIÈRE , 2005).

De fato, essa tese, reitera-se mais uma vez, defendida pelo Ministro-Relator e aqueles que o acompanharam nas suas decisões, se não destrói por completo o construto normativo e principiológico da centralidade da pessoa humana da Constituição de 1988 e do Preâmbulo da Carta das Nações Unidas, termina por mitigá-lo de forma perigosa.
Como muito bem compreendido por Delgado, essa centralidade é a dimensão única em torno do qual o Direito se estrutura e se movimenta, o que leva à sua plenitude a tese da irradiação principiológica do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, para quem, conforme Alexy:

“as normas fundamentais contêm não apenas direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra o Estado, elas representam também uma ordem objetiva de valores, que vale como decisão constitucional fundamental para todos os ramos do direito, e que fornece diretrizes e impulsos para a legislação, a Administração e a jurisprudência” (ALEXY, 2006).

Logo, diante desse verdadeiro programa normativo e principiológico da centralidade da pessoa humana e da sua dignidade, tanto nacional quanto internacionalmente, não resta nada a não ser refutar a tese da requerente e optar pela segunda tese, defendida pelo TST, AGU e os Ministros e Ministra do STF que votaram contra a terceirização ampla e irrestrita.
Com efeito, eles entenderam que a pessoa humana e sua dignidade são o alfa e ômega da organização interna da Constituição de 1988 e da ordem internacional em vigor desde 1945.
De fato, a pessoa e sua dignidade se apoiam logicamente, além dos outros princípios fundamentais, sobre os direitos e garantias fundamentais do título II, com, em destaque no capítulo II, os direitos sociais.
Finalmente, é importante registrar que a organização do Estado (Título III) e a organização dos poderes (Título IV) vieram depois e foram colocados ao seu serviço, os elementos dos outros títulos estando presentes para retroalimentá-las.
Em suma, e à guisa de conclusão, o STF, com a ADPF 324, deu carta branca à terceirização ampla e irrestrita a partir de uma visão radicalmente jurídico-econômica, retomando as análises dicotômicas do mercado, isto é, de uma reforma trabalhista desarticuladora capaz de responder ao medo da recessão e do desemprego. As estatísticas e os números mostraram claramente que esse discurso não tem fundamentação séria, independente dos impactos da pandemia.
Opondo a ordem normativa social e trabalhista à ordem econômica, ambas partes integrantes das ordens do Direito Constitucional e do Direito Internacional Público, gerou-se uma esquizofrenia jurídica que, em vez de enxergar a pessoa humana e a sua dignidade de forma holística, atomizou o ser individual e coletivo do Brasil.
Aparentemente, muitos não entenderam que o mundo é complexo e que, é sempre bom lembrar que uma pessoa digna e emancipada, além de trabalhadora é consumidora, cidadã, sujeito de deveres e direitos, e, com certeza, muito mais que tudo isso!

* Esse artigo retoma parte do trabalho final da pós-graduação que esse autor teve a honra de apresentar na Pontífica Universidade Católica de Minas Gerais sob o título de “ESTUDO E ANÁLISE DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL: A Terceirização e a realidade da biopolítica e da psicopolítica brasileira à luz das normas e princípios infraconstitucionais, constitucionais e internacionais”.

REFERÊNCIAS:

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores LTDA, 2006. P. 524 e 525.

BRASIL. Superior Tribunal Federal (plenário). Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 324/DF. Brasília, 2019. P. 08.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. La Nouvelle raison du Monde – Essai sur la société néolibérale. Paris: La Découverte, 2010.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprudenciais posteriores – 18. ed. – São Paulo: LTr, 2019. p. 554.

DELGADO, Mauricio Godinho e DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei n. 13.467/2017. São Paulo : LTr, 2017. P. 201.
Idem.

RANCIÈRE, Jacques. La haine de la démocratie. Paris : Éditions la Fabrique, 2005. « Cette dualité a été dénoncée par les critiques, de Burke à Agamben en passant par Marx et Hannah Arendt, au nom d’une logique simple : s’il faut à la politique deux principes au lieu d’un seul, c’est en raison de quelque vice ou tromperie. L’un des deux doit être illusoire, sinon les deux ensemble. Les droits des hommes sont vides ou tautologiques, disent Burke et Hannah Arendt. Ou bien ils sont les droits de l’homme nu » (Versão Epub – Tradução nossa).

Bruno Louis Maurice Guérard

Servidor Público Federal (Polícia Federal – Academia Nacional de Polícia, PF/ANP), professor, tradutor, bacharel em Direito Pelo Centro Universitário do Distrito Federal - UDF (Brasília - Brasil), mestrando pela mesma instituição e pós-graduado Em Direito Internacional e Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas.

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