quinta-feira,28 março 2024
ColunaDiálogos Constitucionais1964: Da Comemoração ao Esquecimento

1964: Da Comemoração ao Esquecimento

O Presidencialismo tem o seu charme democrático. O Presidente concentra a Chefia de Estado e a Chefia de Governo. Representa o País – uma nação constituída sob forma de Estado Soberano, com território, finalidades próprios – perante a comunidade internacional e, na ordem jurídica interna exerce a direção do Poder Executivo a nível federal.

A Constituição da República Federativa de 1988 confere, expressamente, no art. 84 os poderes de Sua Excelência, o Presidente da República, entre os quais, destacamos para a presente ocasião, aquela inscrita no inciso XX, qual seja “celebrar a paz”.

Para atônita surpresa de todos, no dia 25 de março de 2019 o presidente então recém empossado no cargo, Jair Bolsonaro, por meio de seu porta-voz, Otávio Rego Barros, anunciou que as instâncias militares devem comemorar no dia 31 o golpe militar de 1964.

O que há de perplexidade com o golpe/reforma/reestruturação de 1964?

Para que não se diga que a análise daquele episódio pode ser objeto de interpretação extremista para qualquer um dos lados do poder, mister asseverar que a nível internacional a questão já foi juridicizada.

O Brasil se vinculou o Pacto de São José da Costa Rica por meio do Decreto Presidencial 678 de 1992, porém apenas por meio do Decreto Legislativo 89 de 1998 reconheceu expressamente sua submissão à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH.

A CIDH tem em seu repertório análise de casos envolvendo guerra civil, anistia e prescrição de crimes militares. O que ocorreu com o Brasil em 1964 não foi um ato isolado no mundo e na América do Sul.

No julgamento do Caso Almonacid Arellano e outros Vs. Chile em 26 de setembro de 2006, a Corte Interamericana de Direitos Humanos sentenciou no sentido de não ser compatível com a ordem jurídica internacional de proteção aos direitos humanos a utilização de lei de anistia para apagar responsabilidade por crimes deste jaez:

O mesmo acontece em relação à segunda recomendação da Comissão, que consiste em “adequar estas medidas legislativas ou outras medidas, de maneira que deixem sem efeito o Decreto Lei nº 2.191, conhecido como a lei de ‘autoanistia’”, dado que “este Decreto Lei data do ano 1978, e, por esta razão, trata-se de um fato que permanece amparado pela Declaração formulada”.

Já por sentença prolatada em 24 de novembro de 2010 a Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou o Caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, ocasião em que de forma pioneira aquela corte se debruçou a analisar as consequências funestas do período militar no Brasil, e o episódio conhecido como Guerrilha do Araguaia, resultado de operações do Exército brasileiro empreendidas entre 1972 e 1975, no contexto da ditadura militar do Brasil (1964–1985).

Na ocasião mais uma vez a CIDH trouxe à lume que:

Desse modo, a Corte Interamericana deve decidir, no presente caso, se a Lei de Anistia sancionada em 1979 é ou não compatível com os direitos consagrados nos artigos 1.1, 2, 169 8.1170 e 25171 da Convenção Americana ou, dito de outra maneira, se aquela pode manter seus efeitos jurídicos a respeito de graves violações de direitos humanos, uma vez que o Estado obrigou-se internacionalmente a partir da ratificação da Convenção Americana.

Concluindo que:

Este Tribunal, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, os órgãos das Nações Unidas e outros organismos universais e regionais de proteção dos direitos humanos pronunciaram-se sobre a incompatibilidade das leis de anistia, relativas a graves violações de direitos humanos com o Direito Internacional e as obrigações internacionais dos Estados.

Derradeiramente, a condenação sepulcral do Brasil referente ao assunto da anistia se deu no Caso Herzog vs. Brasil, sentenciado em 15 de março de 2018, no qual se reconheceu a responsabilidade da do Estado Brasileiro pelo caso fraudulento conduzido pela justiça brasileira, no qual se constatou que o jornalista Vladimir Herzog não se acometeu suicídio, mas foi severamente torturado.

Antes de ascender à Corte, a Comissão Interamericana buscou a solução da controvérsia, porém identificou que a Arguição de Preceito Fundamental ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil permanecia pendente de julgamento perante o Judiciário Interno, destacando que novamente a lei de anistia estava sendo aplicada para impedir a apuração de grave violação aos direitos humanos:

Além disso, a Comissão recordou que a aplicação de leis de anistia ou outras que eximem de responsabilidade e impedem o acesso à justiça em casos de graves violações de direitos humanos gera um duplo dano. Por um lado, torna ineficaz a obrigação dos Estados de respeitar os direitos e liberdades reconhecidos na Convenção Americana e de garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa sujeita à sua jurisdição, sem discriminação de nenhuma natureza.

Em que se baseiam os casos de condenação do Brasil perante CIDH: Na premissa de que 1964 foi golpe militar e que os anos que se sucederam são marcadamente registrados por graves violações de direitos humanos, incluindo tortura, genocídios, fraude processual, fraude à justiça, exclusão de reparação moral ou patrimonial etc.

Breve resumo dessa quadra sombria da história do Brasil pode ser assim sintetizado a partir do julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, excerto retirado do Caso Lund vs. Brasil:

Em abril de 1964, um golpe militar depôs o governo constitucional do Presidente João Goulart. A consolidação do regime militar baseou-se na Doutrina da Segurança Nacional e na promulgação de sucessivas normas de segurança nacional e normas de exceção, como os atos institucionais, “que funcionaram como pretenso marco legal para dar cobertura jurídica à escalada repressiva”. Esse período foi caracterizado “pela instalação de um aparelho de repressão que assumiu características de verdadeiro poder paralelo ao Estado”, e chegou ao seu “mais alto grau” com a promulgação do Ato Institucional nº 5 em dezembro de 1968. Entre outras manifestações repressivas nesse período, encontra-se o fechamento do Congresso Nacional, a censura completa da imprensa, a suspensão dos direitos individuais e políticos, da liberdade de expressão, da liberdade de reunião e da garantia do habeas corpus. Também se estendeu o alcance da justiça militar, e uma Lei de Segurança Nacional introduziu, entre outras medidas, as penas perpétua e de morte.

Se alguém ainda duvidar que existiu golpe, tortura, guerrilha, é recomendável o exame de todos esses  julgados da Corte Interamericana, como órgão internacional e isento, para aqueles que não confiam no sistema interno de apuração da verdade.

O discurso de que 1964 não foi golpe é belo ao que lhe sustenta por enquanto, porque ainda pende na ordem jurídica interna a ADPF 153 ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil perante o Supremo Tribunal Federal.

Dito de outro modo, no plano internacional já se sabe que a anistia é uma grande cartada em defesa dos criminosos de guerra que não se sustenta no plano de proteção dos direitos humanos, porém, o judiciário brasileiro insiste em aplicar de forma irrestrita a lei de anistia.

Hoje a situação é vergonhosa ao Brasil, naquilo que a doutrina denomina de mobilização da vergonha (blame and shame), pois todos sabem que a lei da anistia esconde a atrocidade praticada pelo regime militar inaugurado em 1964.

Poder-se-ia argumentar que o Presidente da República está apenas exercendo a liberdade de expressão.

Esta análise exige cautela. Para citar exemplo, a União Europeia discutiu e conseguiu aprovar em 2007, autorização para que os países integrantes do bloco punam aqueles que neguem o holocausto. Em caso recente divulgado, a alemã Ursula Haverbeck foi condenada a seis meses de prisão por negar o holocausto.

Significa dizer que a liberdade de expressão encontra limites, como todo direito fundamental, não é absoluto, de modo que não pode contrariar a obrigação humanitária nacional e internacional de proteção e prevenção à prática de crimes daquele quilate.

Voltemos ao início. O Presidente da República é o Chefe de Governo e o Chefe de Estado. Será que perante a ordem jurídica internacional, na qual o Brasil já foi condenado por crimes praticados durante a ditadura militar, calha a comemoração do golpe militar?

Ao tomar posse,  o Presidente da República jura respeitar a Constituição da República. Rapidamente, o art. 1º, III, enuncia a dignidade da pessoa humana como fundamento da república e o art. 4º, II, a prevalência dos direitos humanos.

E, será que na ordem jurídica interna na qual pende de apuração ação de preceito fundamental envolvendo dezenas de crimes, vítimas, calha que a cúpula da administração federal faça gracejo valseando sobre as memórias dos familiares? A resposta fica por conta do leitor, pois o que a Constituição prescreve já transcrevemos no parágrafo anterior.

A conclusão que se coloca é a de que realmente a data do golpe de 64 não deve ser comemorada, nem deve cair no esquecimento da população nacional e mundial, porque são episódios como este e outros genocídios que demonstram como as coisas podem acontecer de forma rápida e o status quo ser extinto.

É preciso vigilância, porque sempre haverá pessoas que julgam ser aquela data uma mera normalidade, um fruto do movimento da conquista democrática, a salvação pelo militarismo, objetivando que aquela “normalidade” de 64 seja restabelecida.

Cristiano Quinaia

Mestre em Direito - Sistema Constitucional de Garantia de Direitos (Centro Universitário de Bauru). Especialista LLM em Direito Civil e Processual Civil. Advogado.

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