quinta-feira,28 março 2024
ColunaElite PenalTráfico de Pessoas (Artigo 149–A, CP)

Tráfico de Pessoas (Artigo 149–A, CP)

INTRODUÇÃO
O Tráfico de Pessoas é um dos crimes mais repugnantes e assume dimensões transnacionais.
Segundo o artigo 3º., alínea “a” do Protocolo de Palermo, constitui “Tráfico de Pessoas”:
“o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos”.
A Lei 13.344/16, por seus artigos 13 e 16, alterou o Código Penal Brasileiro, inserindo o artigo 149 – A com o “nomen juris” de “Tráfico de Pessoas” e revogando expressamente os artigos 231 e 231 –A, CP que anteriormente tratavam da matéria.

O TIPO PENAL DE TRÁFICO DE PESSOAS

O artigo 149 – A, CP é um crime de ação múltipla, conteúdo variado ou tipo misto alternativo, pois contempla vários núcleos verbais, sendo eles: agenciar, aliciar, recrutar, transferir, comprar, alojar ou acolher.
O sujeito ativo do crime é qualquer pessoa, pois se trata de infração penal comum. Quanto ao sujeito ativo, também é qualquer pessoa. Em alguns casos que se verá mais adiante, a especial condição do sujeito ativo ou passivo ensejará aumentos de pena.
A prática dos verbos deve se dar mediante meios especialmente elencados na norma: grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso.

Não há previsão de conduta culposa, o que realmente seria um tanto quanto inimaginável. Quanto à conduta dolosa, é informada por dolo específico consoante uma das finalidades arroladas nos incisos I a V do artigo 149 – A, CP:

I-remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo;
II-submissão a trabalho em condições análogas à de escravo;
III-submissão a qualquer tipo de servidão
IV-adoção ilegal;
V-exploração sexual.
Observe-se que em cada um dos dolos específicos arrolados nos incisos supra elencados, poderá haver concurso material com outros crimes acaso a finalidade prevista para o Tráfico de Pessoas se perfaça. Ou seja, a consecução do fim específico do Tráfico de Pessoas não configura mero exaurimento do crime.

No caso do inciso I, se houver efetiva remoção, poderá haver também incidência, em concurso material dos crimes previstos na Lei 9.434/97 (Lei de Transplantes) – Artigos 14 a 20). Quanto aos incisos II e III, obviamente haverá também o mesmo concurso com o crime de “Redução à condição análoga à de escravo”, previsto logo antes no artigo 149, CP. No inciso IV, poderá se configurar –se “Crime contra o Estado de Filiação”, também em concurso material, de acordo com os artigos 241 a 243, CP. Finalmente, no que diz respeito ao inciso V, haverá a possibilidade de concurso material com os artigos 227 a 230, CP ou, dependendo da condição da vítima (acaso vulnerável), com os artigos 218 a 218 – B, CP. Isso sem contar a possibilidade de outras infrações, tais como o Estupro (artigo 213, CP) e o Estupro de Vulnerável (artigo 217 – A, CP).

No caso de não estar presente algum dos dolos específicos previstos nos quatro incisos, poderá haver outra modalidade criminosa como, por exemplo, sequestro ou cárcere privado (artigo 148, CP), constrangimento ilegal (artigo 146, CP), fraude de lei sobre estrangeiros (artigo 309, Parágrafo Único, CP) ou mesmo reingresso de estrangeiro expulso (artigo 338, CP).

A pena é de “reclusão, de 4 a 8 anos, e multa”, de modo que é mais gravosa do que a anteriormente prevista para os crimes dos artigos 231 e 231 – A, CP, ora revogados pela Lei 13.344/16. Antes as penas eram respectivamente de reclusão de 3 a 8 anos e de reclusão de 2 a 6 anos. Assim sendo, o artigo 149 – A, CP não pode retroagir, porque se trata de “novatio legis in pejus”. Não se trata de infração de menor potencial ofensivo, nem cabe suspensão condicional do processo. O procedimento aplicável é o ordinário (vide artigo 394, I, CPP). A competência para julgamento será, em regra, da Justiça Comum Estadual. Acaso o tráfico de pessoas seja internacional, então a competência será da Justiça Comum Federal (inteligência do artigo 109, V, CF).
Há previsão de aumentos de pena da ordem de um terço até a metade:

a) se o autor for funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, o que equivale a dizer que sempre que a condição de funcionário público for utilizada para facilitar ou perpetrar o crime de Tráfico de Pessoas, haverá incremento da reprimenda, ainda que o agente não esteja efetivamente no exercício da função. Exemplificando: se um policial pratica tráfico de pessoas quando de serviço ou quando fora de serviço, mas usando sua funcional para facilitar passagem por fiscalização. O aumento de pena realmente se justifica, pois se espera dos funcionários públicos o combate a essa espécie de perversidade, jamais sua prática ou qualquer espécie de colaboração.

b) se o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência. Aqui o aumento da pena se deve à condição mais vulnerável dessas espécies de vítimas.

c) se o agente se prevalece de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função. Nestes casos, o temor reverencial da vítima e a condição de ascendência do autor sobre ela, justificam o incremento penal, pois que facilitam a prática do crime e o tornam ainda mais repulsivo.

d) se a vítima for retirada do território nacional. Haverá então o tráfico internacional de pessoas ou ao menos transnacional, o que torna a conduta mais gravosa por sua amplitude territorial. Anote-se, porém, que o ingresso (e não a retirada) da pessoa no território nacional não conduz ao aumento de pena, mas tão somente a eventual concurso material com os crimes dos artigos 309, Parágrafo Único, CP ou 310, CP, que dizem respeito ao ingresso irregular de estrangeiros no Brasil.

Havendo concomitância de mais de uma causa de aumento de pena, deverá o juiz utilizar essa circunstância para a dosimetria da exacerbação que varia entre um terço e metade.

Finalmente, prevê a lei uma causa de diminuição de pena, a que se poderia chamar de “Tráfico de Pessoas Privilegiado”. Haverá redução de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa. A primariedade de que trata a lei é aquela técnica, não afastando o privilégio a mera existência de maus antecedentes, processos em andamento, condenações que não geram reincidência, conduta social reprovável etc. No entanto, somente a primariedade não serve para obtenção do benefício. É preciso que adicionalmente o agente não integre organização criminosa. Isso se fará mediante análise do disposto na Lei 12.850/13 (artigos 1º. e 2º.). Note-se que no caso de integrar o agente organização criminosa, poderá também responder em concurso material pelos crimes previstos na Lei 12.850/13, sem prejuízo do Tráfico de Pessoas.
A previsão da redução de pena se assemelha àquela prevista para o Tráfico de Drogas (Tráfico Privilegiado – artigo 33, § 4º., da Lei 11.343/06).

Não obstante, a redução neste caso é estranha porque o Tráfico de Drogas, que ao menos não implica no comércio de pessoas como se fossem coisas, recebe esse redutor numa pena de reclusão de 5 a 15 anos, enquanto o Tráfico de Pessoas tem uma pena de somente 4 a 8 anos. Na verdade a própria diferença a maior para o Tráfico de Drogas certamente fere o Princípio da Proporcionalidade.

Um detalhe chama também à atenção: o Tráfico de Pessoas, embora não alçado a crime hediondo (o que também é estranho, já que o Tráfico de Drogas é equiparado – nova violação da proporcionalidade), foi incluído no rol de infrações penais que recaem no regime extraordinário do livramento condicional, conforme artigo 83, V, CP (vide artigo 12, da Lei 13.344/16.

Previsto o Tráfico de Pessoas Privilegiado, tal qual ocorre com o Tráfico de Drogas e diante da decisão do Pleno do STF no HC 118.533, afastando a hediondez do Tráfico de Drogas Privilegiado, é de se concluir, por um mínimo de coerência, que a interpretação de alcance do disposto no artigo 83, V, CP, deve se restringir ao Tráfico de Pessoas não privilegiado. O Tráfico de Pessoas Privilegiado, tal como o Tráfico de Drogas Privilegiado não deve se submeter à aplicação do regime extraordinário para concessão do livramento condicional, sob pena de nova violação ao Princípio da Proporcionalidade, agora na aplicação da lei. O afastamento é imperioso, pois que se no crime de Tráfico de Drogas, que em sua forma não privilegiada, é equiparado a hediondo, afasta-se a hediondez na presença do privilégio e, consequentemente, a aplicação do artigo 83, V, CP. Com mais razão, no Tráfico de Pessoas, que na raiz já não é hediondo ou equiparado, não se deve aplicar à figura privilegiada uma situação similar àquela com que se tratam crimes hediondos propriamente ditos e equiparados. Assim sendo, para o Tráfico de Pessoas privilegiado, aplicam-se os regimes ordinário e especial do livramento condicional, ou seja, respectivamente, a exigência de cumprimento de mais de um terço da pena para não reincidentes em crimes dolosos e a exigência de cumprimento de mais da metade da pena para reincidentes em crimes dolosos, afastada a exigência extraordinária de cumprimento de mais de dois terços da pena.

Outra questão que deve surgir é a da possibilidade ou não de haver um Tráfico de Pessoas concomitantemente majorado e privilegiado, ou seja, a combinação do artigo 149 – A, § 1º., I a IV com o § 2º. do mesmo dispositivo. Certamente a doutrina e a jurisprudência irão se dividir. Alguns afirmarão que não há possibilidade porque se tratam de regramentos contraditórios e excludentes. Ou bem uma conduta é mais gravosa e merece um aumento de pena ou bem é menos desvalorada e merece uma diminuição de pena. No entanto, outro pensamento, diametralmente oposto deve surgir. Entende-se ser este o correto e o que deve prevalecer: não há incompatibilidade entre as majorantes e o privilégio no Tráfico de Pessoas. Em primeiro lugar porque se tratam de condições objetivas que não se excluem na prática. Vejamos: um funcionário público no exercício da função pode cometer o crime e ser primário e não integrar organização criminosa. O crime pode perfeitamente ser cometido contra uma criança e o autor ser primário e não integrar organização criminosa. São fatos objetivos não excludentes entre si. Outro motivo para a conclusão a respeito da compatibilidade entre privilégio e majorantes é a topografia do § 2º., em termos de técnica legislativa. Ocorre que se o legislador quisesse afastar a aplicação do privilégio aos casos de aumento de pena, deveria ter colocado o privilégio no § 1º. e os aumentos no § 2º., uma vez que, por regra de técnica legislativa, todo parágrafo se aplica para aquilo que vem antes dele e não se aplica para o que vem depois. A topografia dos parágrafos indica uma escolha legislativa, revela a “mens legislatoris”.

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós Graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.

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